29/10/2014

Corações de Portugal

Não sei onde eu estava com a cabeça quando aceitei o copo que me ofereceram há anos na estação de serviço da BP.

Beber água, leite ou mesmo cerveja num copo alto com o logótipo da BP não mata bem a sede, nem que haja um prato com tremoços por perto. Também tentei chá, vinho tinto e só falta sumo de dióspiro, mas não acredito. Beber por copos a invocar combustíveis para automóveis, motociclos ou carrinhas de caixa aberta não é boa ideia, isso qualquer pessoa vê.

Digo que não sei onde estava eu com a cabeça, porque geralmente não aceito ofertas do tipo quer-aproveitar-a-promoção-e-com-quarenta-litros-de-combustível-leva-uma-caixa-de-pastilhas-elásticas-que-lhe-dão-para-a-vida, claro que não. Cartões de pontos ou outras inutilidades que nas lojas se oferecem com entusiasmo, sacos de praia, chinelos cor de rosa, óculos muito feios e bolsas que não servem para nada. Detesto. Rejeito tudo.

Tirando isto costumo ser pessoa razoável. No entanto, como já tenho dito, há limites.

Continuo a não compreender a ideia que animou pessoas com a responsabilidade de tomar decisões sobre frutas, de se colarem etiquetas em forma de coração ou outras, mas a de coração é pior porque se rasga sempre, nas maçãs que nascem em Portugal e depois vendem aquilo assim, com chancela à laia de pedigree que não tem graça nenhuma. Havia de se poupar papel, tinta, o trabalho de colar aquelas porcarias, o trabalho de as descolar e ainda os efeitos secundários que a ingestão de cola terá na população que come maçãs com casca e que se irão reflectir após muita maçã; parece que já estou a ver a abertura do jornal das oito lá para dois mil e vinte e três, os jornalistas hão-de chamar-lhe um figo, apesar de terem sido maçãs.

Maçãs mas não só e é isto que me traz aqui hoje.

Ao fazer alegremente uma salada para o jantar, descubro que a ideia que animou as pessoas mencionadas acima já se espalhou por mais áreas de intervenção. Isto traduzido por miúdos e não para miúdos, ou vindo do todo para a parte, corrijo, partes, que não foi só um, é o mesmo que anunciar não sem indignação que também já se colam corações de Portugal nos tomates.

Coisa muito engraçada de se fazer, não digo que não, no caso de lhe reconhecermos préstimo. Os tomatinhos são lindos, doces e suculentos sem coraçõezinhos colados, como toda a gente sabe. Portanto eu agradecia imenso a quem puder informar, que me esclarecesse sobre esta matéria, não sendo incómodo de maior.

Eu cá, a seguir ao próximo ponto final levanto-me, vou ao armário, pego no copo da BP e ponho-o no contentor do vidro, acabou-se.

26/10/2014

O presente

Preciso de te encontrar. Saí de casa, entrei no centro comercial e subi ao andar que tem o café de que gosto mais. Tomei um mas pedi dois, o outro é teu, comi um chocolate em forma de caracol que se derreteu um bocadinho nos meus dedos e o que tinha forma de flor embrulhei e meti-o no bolso.

Saí do café e entrei na loja em frente. Dentro, já está o natal a chegar em construções coloridas, luzes a piscar e jingle bells a soar. Toquei no brinquedo que tinha bonecos de coro com bocas abertas e pessoas a deslizar para dentro da igreja e a sair do outro lado, num círculo inventado que me aqueceu as recordações dos natais da infância, onde tudo brilhava no meu pequeno mundo. A janela de quatro vidros na parede de massa fingida, descobre uma luz amarela que cintila dentro. Acolhedora na imaginação que teço, nas jarras já secaram as flores de um verão, mas as suas cores fazem o natal mais cedo. Em redor da igreja e do coro que não sai do mesmo acorde, há neve caída no chão e a noite caída aqui. Posso ajudar? não obrigada, vinha à procura de uma pessoa. Preciso de te encontrar.

Desci ao piso de baixo e sentei-me no banco de madeira ao fundo das escadas, entre uma família que dava papa ao bebé e outra família que dava papa a outro bebé.

Fico a olhar as pessoas que passam e o tempo também passou. Os bebés comeram as papas, cresceram, as famílias mudaram, alguns velhos morreram, outros, velhos ficaram. Eu continuo sentada, são dias ou serão meses, talvez o infinito esteja aqui; tenho medo que seja natal outra vez e eu ainda não te vi.

E então, para descansar da saudade, fecho os olhos. Na minha mente tão presente, está o presente que és para mim.

25/10/2014

Gordura antiga disfarçada com lixívia ou a marcha nupcial

Pus a tocar "Spiegel im Spiegel" de Arvo Part (Part leva trema em cima do "a" mas o meu computador não tem, já me fartei de procurar), havia ainda tanto trabalho para fazer e o cansaço anda a correr atrás de mim, mas tenho conseguido desviar-me.

O problema é que o Arvo Part é coisa para nos soltar a alma cá de dentro se não nos pomos a pau e eu esqueci-me disso. À laia de aviso, adianto que tão nucleares são estes acordes que se entra em modo zen num instante, há que ter cautela em situação de condução de máquinas ou outras que requerem estado de alerta, como por exemplo na caça ao javali. É que começa a desenvolver-se cá dentro, por causa da música, uma espécie de construção que se enrola devagar no centro nevrálgico das células primordiais e depois se transmite às outras, entorpece primeiro as mãos e o pescoço e eu levantei-me e fui tomar um café.

A cantina está vazia a esta hora da manhã. Sentei-me a uma mesa qualquer com o meu café a fumegar, a tentar em vão aromatizar a atmosfera que cheira sempre a gordura antiga disfarçada com lixívia, coisa que na minha idade já se aceita. A dona Esmeralda esmera-se mesmo, lá limpas estão as mesas, muito postas em ordem a reflectir a luz da janela do lado oposto a este em que me sentei e que as faz parecerem brancas, o pior é que agora não me lembro de que cor são. Se tivesse sido eu a decorar esta cantina não faria assim. Havia de haver Armanda Passos na parede, e José de Guimarães, ao centro uma cópia da última ceia de Da Vinci para estimular o apetite, havia de tocar Mozart e Mendelssohn durante a refeição, em vez de se ouvir a televisão aos gritos. E eu já não precisaria de me curar com Arvo Part, a verdade é essa.

Mas há outra: estou muito contente por ter acabado a semana. Amanhã vou dormir até acordar e depois vou comprar um vestido muito bonito.

(sobre Mendelssohn, descobri que muita malta se casa com a marcha nupcial e não sabe quem foi o seu compositor, pode, isto?)

22/10/2014

Esplendor de implantação

Fiz uma lista e depois dobrei a folha de papel. Meti-a no bolso.

Olho pela janela e noto uma fileira de luzes vermelhas ao longo da pista onde o avião acabou de aterrar. Não me lembro de as ter visto antes, serão certamente arranjos para decorar o natal, se é que o natal se pode decorar. Eu decoro muito bem as matrículas dos automóveis, tenho esta mania desde os cinco anos e ainda não me livrei dela, às vezes cansa imenso, detesto automóveis.

Dói-me a barriga. Devo ter engolido um montão de neutrinos quando fotografei o nascer do sol. Estava cansada outra vez e irrita-me estar cansada, fico com tendência para me queixar e fazer listas de coisas que não gosto. Volto a tirá-la do bolso, ainda dá tempo de a reler. As hospedeiras da TAP dizem Ladies and "Gémen" (ponho maiúscula, mas é capaz de ser sem), só uma vez é que ouvi uma pronunciar bem a difícil palavra gentlemen. Sorri-lhe com uma inclinação de cabeça muito respeitosa antes de sair, boa noite.

Também seria tão bom se os jornalistas da rádio dissessem legislação, "leslação" enerva.

Mas não são só eles. Uma vez perguntei a uma pessoa que gosta de contar as suas aventuras a conduzir no auto-estrada (sim, no auto-estrada) se também de vez em quando gosta de conduzir no estrada; a pessoa olhou para mim como se eu fosse um borrego morto ou tivesse dito frigorífico em grego e não respondeu, desconfio que me odeia um bocado.

Não nos deixemos ir no engano de pensar que eu não meto argoladas, meto muitas, até costuma ser uma especialidade que não fica nada atrás do caril indiano, mas ao menos digo constitucional muito bem.

Por exemplo, não combino a mala com os sapatos a menos que esteja distraída, e também não compro mobílias a condizer umas com as outras a não ser que goste mesmo muito de as ver juntas. Combinar tudo é monótono.

E para terminar, que estou mesmo a precisar de sair daqui e respirar ar puro, fica esta a fazer fé no que afirmo acima, para compor o post que está nuzinho nuzinho (não, não me envergonho, só me dói a barriga):

Tinha nove anos de idade e como toda a gente de nove anos de idade à época, fui levada pela minha mãe ao arquivo de identificação tratar do bilhete, agora já és crescida, vês, treinaste a assinatura? Eu um bocado nervosa com medo de rasgar o papel como já me acontecera no caderno da escola, assinei devagarinho e de repente reparei numa coisa muito interessante, que me fascinou. O papel amarelado que eu estava a assinar chamava-se Bilhete de Identidade. Li duas vezes para confirmar: era mesmo Bilhete de Identidade.

E não Bilhete "Dentidade" como eu sempre ouvira pronunciar (mãe, nem tu dizes isto bem, confessa) e que eu vagamente achava estar ligado à questão da segunda dentição que, aos nove anos de idade, estava em pleno esplendor de implantação em toda a gente.

Aborrecido, não é?


(a fotografia do nascer do sol confirma tudo e está grande para se ver muito bem)

21/10/2014

A aula

Na minha nova aula de dança há mães que levam os filhos pequenos. Recomendam-lhes silêncio e permanência no canto onde os depositam, por hora e meia, quietos. Enfiam-lhes um tablet na mão e mostram o indicador vertical em frente aos lábios.

Dez minutos depois o menino Serafim, que há-de andar pelos seis anos, precisa de passar de nível ou qualquer coisa do género lá no tablet e invade o campo onde nos esforçamos para alongar o pescoço; a mãe respectiva acode a correr, acocora-se, fazes assim, querido, olha, ensina-o como fazer e torna a suplicar pela dose de silêncio que se esgotou em menos de um fósforo. O miúdo regressa ao banco dos suplentes a caminhar devagar, rosto paralelo ao chão e ao tablet, vai cansado.

Agora vem ali a miúda a quem perguntei a idade ao chegar, tenho sete anos, em rota de aproximação apontada a outra mãe, com o respectivo aparelho electrónico que lhe causa espanto e leva bloqueios, traz a urgência da idade, para não falar em outras urgências que não me assistem, mãe como se põe naquilo de ontem, e a mãe acorre, solícita, afaga-lhe o cabelo, já está de cócoras, é assim, já te disse, clicas aqui, vês, agora vá, volta para o pé da tua irmã.

À terceira invasão do campo, a professora dá um grito de comando ao Serafim, que vem a rabujar e ainda falta uma hora de aula, o relógio de parede só marca vinte e trinta, ó mãeeeeee, a mãe acode a esta nova aflição, ignora o grito de comando autorizando o filho a ignorá-lo também, abraça o petiz, meu amor, é só mais um bocadinho, olha, joga este, vai lá.

Agora a professora falou alto para a mãe e disse que se está a irritar. Com olhinhos tristes e cabeça enfiada nos ombros, corre a mãe do Serafim de volta à sua posição, com passinhos pequenos, como se criança fosse.

Olho em volta para as outras, as não-mães, ninguém parece importar-se. Devem estar habituadas, aqui a recém-chegada sou eu.

Portanto fiz mal. Em vez de ter esperado tantos anos que as minhas filhas crescessem antes de regressar aos ginásios, podia tê-las levado comigo, haviam de me ter dado um jeitão a costurar uma meia, a pregar um botão ou, em dias mais apertados, a adiantar ali mesmo a preparação do jantar com as dicas que eu lhes podia ir gritando.

Hoje seria uma mulher muito mais em forma.

E talvez não me inquietasse com o futuro de uma sociedade desfocada pela ausência de fronteiras que delimitam os lugares de uns e de outros, que preservam os tempos para as refeições e o sono das crianças, que mantêm firme o direito à não interrupção de uma aula, seja ela de que natureza for.

Por isso não se admirem, mães, se os professores dos vossos filhos vos disserem que eles são insubordinados, que interrompem, que falam constantemente, que não sabem respeitar uma aula.

14/10/2014

Bebe-se bem

Estou aqui estou, não a almoçar, que já não são horas disso, mas a vender o carro e acabou-se.

Aborrece ter muitos quilómetros a percorrer e depois um avião para apanhar e o raio do raio que caiu em cima do veículo, vindo do céu aos ziguezagues, que até lhe ouvi o zumbido, verdade que ouvi, destruiu a ponta da antena. Por conseguinte música agora nem vê-la, por acaso vê-la sempre foi difícil neste carro, mas pelo menos ouvi-la é que era, e depois foi a bateria que estava a dormir a sesta aconchegada debaixo do capot e o raio do raio, como digo, comeu-lhe a carga inteira, só deixou as cascas, e agora? Agora chove o céu todo de uma vez, o homem do reboque liga a dizer estou com medo de ir aí, não percebo nada desses carros, ai a minha vida, está com medo o quê, venha lá pela sua saúde e pela sombra que agora nem há outra hipótese, temos um avião para apanhar, está a ouvir não está, e ele então veio, apareceu na estrada a um palmo do meu nariz que a visibilidade deixada pelo nevoeiro não era mais nada, isto é capaz de estar um bocado confuso, mas é a verdade praticamente toda, ficando apenas a faltar a matrícula da viatura que eu punha aqui se me apetecesse.

Portanto estou aqui estou, não a comer, que é a beber um chá calmante que me encontro, mas a vender o carro. Chá marroquino, é novo.

Na sexta feira, por exemplo. Foi preciso comparecer em sítios bons para ir de metro e eu compareci. De metro, metro e mais um bocadão se me encontrar de pé.

Mas sentei-me, havia lugar. No colo dele, à minha frente, atenção à pontuação, é ler direitinho, repito, no colo dele, à minha frente, um bloco de desenho, ou melhor, em cima da perna um bloco de desenho, na mão um lápis, na ponta do dedo uma borracha incorporada na pele. Catorze anos tem este miúdo, não lhe dou mais. Tem um rosto negro, sereno, está concentrado, alheado de aqui e de agora, veste uma sweat-shirt que tem estampado o nome de uma universidade americana. Está um olho desenhado no papel. Sendo daqui um olho ao contrário, parece-me bem desenhado. Olho, agora eu, em redor, a tentar reconhecer o modelo. Vejo muita gente mas vejo ninguém, não está aqui. À minha frente, a cabeça ligeiramente inclinada, concentrado no desenho que progride avenida fora, debaixo do chão, nascido nas entranhas de Lisboa, vejo aparecer um nariz. Este nariz é de alguém? apeteceu-me perguntar. Não. Fico quieta a observar o quadro e vejo que é amor em desenho. Agora estão a aparecer os lábios e ele finge que apaga um risco a mais, com o dedo desliza-lhes por cima, mas eu sei o que é, a cabeça inclina-se para o outro lado, ligeiramente, observa melhor. A rapariga que para mim está ao contrário parece ter os olhos a brilhar e desejo intimamente que ela também desenhe assim os lábios de chocolate dele. O rosto transferido da memória para o papel está quase completo quando me levanto para sair. Levo para a rua um sorriso neste rosto que alguém um dia fez para ser meu, um sorriso que me foi posto aqui na alma, dentro do metro, como se acaba de ler. Portanto agora digo umas coisas.

O chá marroquino bebe-se bem é uma delas. A outra já sabemos.

(a parte mais difícil de escrever num blogue é arranjar títulos para os posts - fica mais esta, que ainda não tinha dito)

10/10/2014

Nada científico

O meu problema não é acreditar no que me dizem.

O meu problema é estar debaixo do chuveiro, abrir o frasco do gel de banho, pensar que frasco parece aplicar-se a vidro e o do gel de banho é invariavelmente de plástico, mas isto não passa de um detalhe nada científico embora ligeiramente irritante, e lembrar-me das promessas de sensação de frescura, de relaxamento com mel de amêndoa ou outro mel qualquer, de experiência suave e aveludada, se bem me lembro com um toque de pérolas de abacate, que de pimento vermelho não é, até o estado zen já para aqui é chamado e isto para não falar no roçar subtil do tema sensualidade, vejamos bem, sensualidade, o desplante; em suma, construírem sem pestanejar, esses rapazes do marketing, uma expectativa de momento transformante envolvente e depois nada. Mas como uma pessoa debaixo do chuveiro está com pressa para ir para o trabalho, vai sem pérolas de abacate, sem mel e sem amêndoas, vai nada sensual e nem dá por isso, não é?

É certo que o creme deslizante tão bom para a pele não cheira a elefantes, embora eu goste do cheiro a elefantes mas isso sou eu, nem a peixe, deste já não tanto, aquilo até cheira bem embora ninguém saiba a quê, o que sinto mesmo, vamos lá a levantar o véu, é a água quente a escorrer-me pela pele, bem podem vir os cremes todos que quiserem vir. Sabão azul e branco também era capaz de dar o mesmo resultado que é a pessoa, qualquer pessoa, ficar bem lavada. Mas o meu problema também não é isto, aliás o problema nem é meu.

Já se percebeu, não já? É a deixa para a companhia das águas. Isso sim, câmaras municipais, a acordar, vá lá ver! É acrescentar na factura, oiçam isto, ao lado dos consumos ao metro cúbico ou ao litro, agora é que não sei, as promessas das quenturinhas que oferecem às pessoas mesmo ali na aurora dos dias, no construir da beleza diária, que cada um tem a sua, isso vê-se bem em todo o lado, a água cristalina que acabou de passar por ali e os efeitos que deixa, e depois então o suminho de laranja e o café com torradas, não sei quê, ou então o relaxar ao final do dia, aí já se pode carregar ao de leve na sensualidade, vá lá coragem, há uma imensidão de hipóteses giras, até podem juntar uma fotografiazinha, na internet há muitas e são de graça, é só dizer que vem de lá e está tudo bem.

A ver, não tinham pensado nisso, pois não? Aposto que a intervenção criativa até vos vai libertar dos atrasos nos pagamentos e consequentes custos adicionais, é experimentar. E vai-se a ver o problema deixa logo de ser vosso, hã? Uma riqueza.

(queria dizer que não gosto da voz do Ricardo Carriço, mas como não ficava bem no texto nada científico que se lê acima, vai aqui e vai muito a tempo)

09/10/2014

A noite não foi

Às vezes parece que a vida se aborrece do sentido único e segue em todas as direcções ao mesmo tempo. Fica o ar turvo e as horas mortas. Fica a cabeça revestida a cortiça por dentro, por fora parece igual mas os ombros descaem, tenho a certeza.

Olho para o relógio, já passa das sete e meia da tarde. Ainda não escureceu, só daqui a algumas semanas muda a hora e então será noite a sério. Mas eu já a trago, à noite, aqui dentro por isso vou até ao rio deitá-la fora na corrente, mesmo ali debaixo da ponte onde as águas são contadas ao passar.
Doem-me as pernas e os braços por causa da nova aula de dança, mas nem isso hoje me amaciou a estopa, é assim que estou.

Não te encontrei no rio, evidentemente, ó sentido único. Nem mesmo a corrente te trouxe para aqui, o meu colo costumava ser bom mas já está vazio.

Encontrei antes, vê bem, um sentido proibido que me deu uma trabalheira a dar a volta ao carro. Portanto fui para casa mais cedo e estacionei na garagem. Esperei que a luz apagasse para abrir os olhos e ver tudo preto, gosto muito de ver tudo preto quando tenho a noite aqui. Adormeci outra vez contigo nos braços vazios, único sentido que te foste. Mas foste.

E que palavra estranha, foste, no entanto é o sino da igreja a dar as oito horas que me acorda, não és tu. Horas que são de ir fazer o jantar, dar corda à vida para ela andar. Ó rima já te disse que não gosto de ti, vai-te embora e volta lá só em junho nos papelinhos espetados nos manjericos, que isso agora não temos.

Fiz um jantar mau e depois sentei-me ao piano. O livro das pautas está aberto no "The Entertainer" do Scott Joplin, toquei várias vezes uma parte da mão direita até sair o mais perto possível do que devia ser. Apaixonei-me por esta música quando tinha uns cinco ou seis anos e a ouvi numa coreografia de patinagem artística no gelo, na televisão. Depois passou muito tempo até a ouvir outra vez, naquela altura não se voltava com programas atrás e eu não sabia o nome daquela que passou a ser a minha música preferida para a pedir pelo Natal.

Hoje também não se volta com os passados atrás, isso é na ilusão das tecnologias que dizem muitas coisas e não. Enganam.

Estou cheia de sede. Parece que sempre deixei cair qualquer coisa ao rio, mas a noite não foi.

05/10/2014

Dias mais pobres

Não sei se foi de estar o fim de semana quase todo a trabalhar entre relatórios e gráficos com cores lindas escolhidas por mim nos dois primeiros e cores sem graça escolhidas pelo computador nos seguintes, não tem mão nenhuma para a estética, o computador, mas pelo menos as contas ficam muito bem feitinhas num instante, e disso é que eu preciso, se fosse fazê-las à mão levava uma vida, ou se foi de acartar com dois metros cúbicos de lenha de um lado para o outro, não sabemos do que foi, mas deu-me a esta hora para me sentar no terraço a captar os últimos raios de sol. O vento de outubro vai pondo nuvens ali em cima e está a tentar varrer-me daqui para fora, coisa que não vai conseguir nem que a vaca tussa. Mas já voltamos à vaca.

Primeiro é preciso registar que foi um prazer escrever sobre o vento de outubro, o outono é a minha estação preferida e como está mesmo a começar, anima-me normalmente, por exemplo mais que o verão.

Não é o caso de hoje: ao saber que esta fonte de boa leitura de há anos foi encerrada, fico também a saber que os meus dias ficarão um bocadinho mais pobres. Desejo felicidades ao Patrão da Barca agora atracada, José Rentes de Carvalho, e quem agradece sou eu por tudo o que ali aprendi (felizmente há os livros).

Retomando então a vaca que não chegou a tossir, fotografei hoje de manhã, quando ainda havia sol, por isso é que a sombra também ficou, uma bicicleta holandesa que me fez lembrar bloggers que gosto de ler e que também já fotografaram bicicletas, embora numa versão muito mais útil que a minha, que é de enfeitar.

Aqui fica, para a Carla e para a Loira.


Não vá elas fecharem os blogues de repente e eu não ter tempo de lhes oferecer nada.

03/10/2014

Sobras

Deitei-me em cima da cama depois do jantar. Sinto-me cansada e deixo-me ir sem rumo, mergulhada nos meus sonhos que sobraram da infância, ficaram fora deste tempo onde já não cabem. Talvez lá te encontre de novo.

Não acendi a luz, deixo que a claridade que é sobra dos candeeiros eléctricos da rua entre pela cortina translúcida que cobre a janela e se instale livremente. Traz-me a tranquilidade para dentro deste espaço vazio.

Deixo que a luz entre assim, ténue, e fique se quiser a sobrar comigo. Vagueio com os olhos pelas sombras distorcidas que se formam na parede, algumas movimentam-se, sobem sem temor das alturas, também sobram dos carros que passam. Lembrei-me do reflexo da água da piscina no tecto do quarto da casa de verão, nas manhãs em que os meus sonhos acordavam grandes mas eram pequenos, como eu, e cabiam sempre.

Sabes o que respondeu a Marguerite Yourcenar, foi há tanto tempo que li isto, quando lhe perguntaram como chamava o gato dela? "Não chamo, ele vem quando quer."

Faço também assim, não quero torcer o mundo nem as coisas nem a ti, deixo a luz entrar quando quer, como quer, o gato também, mas eu não tenho gato. As pessoas deviam ser livres. E eu quero escrever-te agora e fazer de conta que sou livre, soltar estas palavras que se geram no que sobrou de mim este dia. Andaste pelos meus sonhos e agora andas onde?

Peguei no teu livro, o primeiro que me ofereceste. Pousei-o em cima do meu peito e ele quis ficar. Fechei os olhos e acariciei-o devagar. Senti a superfície fria e lisa, parece que pede que lhe sopre vida para acordar as palavras lá dentro, fazê-las respirar. O livro não se importa que eu seja assim, uma sobra. Peguei nele e beijei-o como se fosses tu ali.

Depois abri-o numa página qualquer e abri também os olhos mas está escuro. Soprei lá para dentro uma coisa que não ouviste, não sei, andas onde?, é um pedaço de vida para o coração do livro, como se fosse tocar o teu.

Acendi a luz. A página da esquerda está em branco. A da direita tem um título: "Aquele que dá a vida".

Ainda me sobrou um sorriso. Talvez te encontre de novo.

01/10/2014

Substituídos por porcos

Diz-me a Cristina hoje à mesa do café e a talhe de foice que viu um casal na Estação do Oriente com um porco pela trela, todos queridos e tudo.

- Mas de que cor é o porco? - eu preciso de saber estas coisas, não vá o bacorito ser castanho e eu imaginá-lo cor de rosa.

- Era assim branquinho e tinha malhas pretas (eu não disse?) e fazia assim assim (aqui a Cristina inclina a cabeça e desliza com ela debaixo de uma mão imaginária que afaga que afaga) assim, para levar festas. Era muito giro, remata.

Uma.

A minha irmã viu, no mês passado, em São Francisco, naquela cidade do lado de lá dos Estados Unidos que tem eléctricos a imitar o 28 e os outros, uma ponte a imitar a nossa Ponte 25 de Abril, algumas colinas a aspirarem às sete beldades aqui da nossa capital e muita gente gira (mas não tão gira como nós, evidentemente). Ora ela viu por lá, numa determinada zona, um homem passear um porco - outro porco, claro - num carrinho de bebé. Este imaginei-o imediatamente cor de rosa e foi com muita convicção que o imaginei, tanta que me esqueci de lhe perguntar a cor do bicho. Talvez dentro do carrinho de bebé não se visse bem, tenho ideia de que ia de touquinha com folhos, mas adiante, que agora o que está feito está feito. Ao lado desse homem caminhava outro, não tão digno de nota, ora vejamos: levava pela trela um cão. Um cão normal, pronto. Sem carrinhos, sem toucas, nada, um cão.

Duas.

Às vezes tenho problemas em chegar a tempo e depois fico no apeadeiro à espera do próximo comboio que pode até nem vir, nem haver próximo (está visto que me deitei a chapinhar no sentido figurado, e isto é perigoso, não vá afogar-me p'raqui, mas é de estar nervosa).

É que mesmo atrasada queria contar que uma vez salvei a vida a um bacorinho. E tinha só dez anos, eu.

Estávamos empoleiradas, eu e a minha vasta colecção de irmãs, todas a espreitar para uma pocilga onde moravam uma porca de dimensões generosas, imaginemos o tamanho de uma porca de dimensões generosas, e uma legião de bacorinhos com dias de idade. A porca estava deitada de lado e os porquinhos todos a mamar ao mesmo tempo, uma coisa rica de se ver! Nós continuamos empoleiradas do lado de cá da cerca, muito admiradas a observar a suculência da situação, a comentar a diferença dos tamanhos, o tom rosa da pele dos animais, que fofinhos (é daqui que vem o cor de rosa).
Nisto a porca farta-se da criançada, sacode-os, eles não querem, guincham uns acordes de bebés em protesto, o que nos fez a todas emitir um

- Ohhhhhhhh

e volta-se para o outro lado. Ao fazê-lo espalmou devagar, com o seu imenso e suíno corpanzil, um dos leitões, que por acaso era dos mais franzinos, mas que mesmo assim guinchou tanto, pobrezinho, com voz fininha, logo abafada pela própria mãe em menos de dois segundos, uma mãe completamente surda, é o que é.

Gritámos todas. Uma de nós - quase de certeza fui eu - correu a chamar o homem que tinha ar de homem que sabia salvar porquinhos.

E era mesmo: pegou num ancinho enorme e correu comigo - quase de certeza fui eu - de volta ao local da ocorrência. As outras apontavam e gritavam todas ao mesmo tempo, ali ali, debaixo da mãe está um!

Ele espetou várias vezes com o ancinho no lombo da porca de generosas dimensões, e surda, que vagarosamente e sem vontade nenhuma se levantou e deixou então à vista, à nossa vista, a sua cria acidentada.

(a parte que se segue pode ferir as pessoas mais susceptíveis, caso em que se aconselha a parar a leitura aqui)

Deitado de lado no chão sujo da pocilga, estava um leitãozinho espalmado, inerte, de um tom roxo-azulado, a lembrar uma aurora interrompida, e apresentava estoicamente a espessura de uma folha de papel. O homem, que tinha já entrado na área, pegou no bichinho e sacudiu-o com jeitinho, abanou-o um pouco, falou-lhe com meiguice e nós todas, empoleiradas na cerca, do lado de fora

- Ohhhhhhhhh

Esperou que o bacorito recuperasse espessura, o que se verificou mesmo ali, para nosso deleite, e a seguir tentou pô-lo em pé. As pernitas judiadas tremeram um pouco, mas depois começou a cambalear e foi com muito estilo que cambaleou. E nós todas, ainda empoleiradas na cerca, do lado de fora

- Ahhhhhhhh

Portanto missão cumprida. O porquinho sobreviveu e o homem garantiu-nos que a heróica celeridade do chamamento - quase de certeza fui eu - é que o salvou da morte por asfixia.

Espero que esta tenha sido, apesar de parecer em atraso, uma história que responde ao desafio por antecipação, aquele que é capaz de nos chegar de outras paragens dentro de uns dois anos, no meio de dicas para ter blogues de sucesso, dicas nas quais os cachorrinhos eventualmente salvos de morte atroz serão, está visto, substituídos por porcos.

Valeu?