26/11/2016

Carro azul sem luvas

Não é que isto tenha interesse. Quer dizer, não a historiazinha em si. O que tem interesse, para mim, é faltar ainda uma hora para aterrar o avião em que sigo e eu puxar do computador para ver se sou capaz de fazer um texto antes de pousarmos no chão.

Ontem já o sol tinha descido abaixo do horizonte e deixado de breve herança uns braços azulados por cima da cidade, paro o carro na estação de serviço e dirijo-me sozinha ao edifício para fazer o pagamento prévio do combustível que pretendo consumir. Como é muito costume nestes lugares, está uma fila de pessoas unidas pela intenção de pagamento prévio, atrás das quais eu me posiciono, cada um terá a sua vez. Quando já falta pouco para a minha, ouço a mulher espanhola ali à frente dizer à funcionária da estação de serviço, “es el carro azul” (não disse coche, disse carro). Assim é identificada a bomba de onde vai sair o combustível para o carro azul, a combinar com os braços herdados do sol, após o pagamento prévio estar concluído. Nesta estação de serviço as pessoas têm de pagar previamente os combustíveis que hão de consumir, situação mais do que agradável, acho até bastante fofinha, já que assim ficamos todos livres de, uma vez o carrinho atestado, e quiçá fruto dos vapores à base de combustíveis fósseis, nunca mais ganha a eletricidade esta guerra, mas já não falta tudo, ai que confusão, se não me despacho daqui a pouco ainda mandam fechar os electronic devices que vamos aterrar, uma vez atestado o carrinho, dizia, a gente vai-se embora todos lampeiros e cheios de potência no carro e esquecemo-nos de proceder ao pagamento, falha que ninguém quer cometer. A nossa espanhola está agora a debitar os seus números de contribuinte, não sei onde contribui ela, mas que os disse, disse, dos, ocho, cuatro, uno e tal, não vou dizer os outros que é aborrecido para a senhora, já basta contar ao mundo que ela tem um carro azul. A funcionária registou tudinho, um a um, compreendeu o espanhol, uma lindeza aquilo, quem é o português que não compreende espanhol?, nenhum, esteja onde estiver o português compreende o espanhol, já o inverso não se verifica, mas adiante, paciência, a operação quase terminada, a espanhola arrumou a carteira, parecia mesmo o desfecho todo quase ali, vamos lá embora, não fosse ter a espanhola levantado a mão direita, sacudindo-a ligeiramente no ar, os dedos abertos, e dito guante?  Mas por esta não esperava a funcionária, que devia achar aquilo ser um adeus, boa tarde, disse, porém a mão espanhola no ar, guante? outra vez. Ao terceiro aceno de guante, boa tarde, próximo por favor, coitada da funcionária, a mão espanhola já a afrouxar, ela vai desistir, mas estou cá eu, que tenho a mania de preencher as lacunas que vêm ter comigo, e ligar dois fios para que dois entes comuniquem é coisa a que não me nego, luva! levanto a minha voz o suficiente para a funcionária ouvir e digo luva, a senhora quer uma luva!

- Luvas?… ah… não temos. – a funcionária tão admirada como eu, que sendo toda a favor da higiene, desde que sem exageros, nunca meti gasolina no carro com luvas.

A espanhola encolheu os ombros, deu meia volta e seguiu para o abastecimento do seu carro azul sem luvas.


Consegui. Ainda sobrevoamos uma data de nuvens.

19/11/2016

Ne pas oublier, o café e um recado

Hoje de manhã era sábado e eu levanto-me e vou pôr café na cafeteira, e água também e um filtro, que é de filtro este meu café. A cafeteira lembro-me que custou oito contos e uns quatrocentos escudos há exatamente vinte e quatro anos. Exatamente, porque foi num mês de novembro que a minha avó me perguntou, do que precisas para a tua casa, filha? (ela dizia filha), de uma cafeteira, avó, então compra à tua vontade e depois dizes quanto foi. Comprei a cafeteira. Escolhi um modelo branco, já disse de filtro. Uso-a ainda hoje todos os dias ou praticamente e todos os dias ou praticamente preparo o café pensando na minha avó. Ao escrever isto vêm lágrimas à minha garganta como se não houvesse razões mais atuais para chorar. Mas hoje o caso é outro.

Recentemente procedi a uma mudança de provedor de serviços de internet e claro que a palavra passe de acesso à grande teia do mundo (já alguém traduziu isto direitinho?) que estava há anos na primeira folha do bloco notas colado no frigorífico, para quem precisasse, ficou obsoleta. E então foi arrancada, e raac, e lixo dos papéis. Esta sequência de eventos tão simples fez emergir a segunda folha do bloco que, sem querer, foi dada à luz da cozinha, passou para a frente de mansinho, tanto que ninguém a viu. 

Enquanto o café corre, esta manhã de sábado, aquele cheirinho tão bom, as miúdas ainda a dormir e a minha avó no pensamento, compra à tua vontade, filha, e depois dizes quanto foi, ainda lhe oiço a voz, pousei ao acaso os olhos na segunda folha do bloco, agora primeira, e finalmente vi-a. Nela, um recado para mim. Um recado que veio em julho pelo punho de um amigo da minha filha Saminhas, que é a mais nova (ó mãe, porque é que me deste um nome se me chamas Saminhas?), o amigo cá ficou hospedado uma noite por razões inesperadas da vida dele (inesperadas mas não graves).

E eu, caramba, eu tenho um blogue. E um blogue é para estas coisas, não é? Eu vou mostrar o recado.



16/11/2016

"Sabes o que fizeste na Blogosfera?"



 De manhã, a primeira coisa que fazia era ler o post de José Saramago. Eu fui uma dessas pessoas.

excerto da entrevista de Pilar del Río a José Saramago, Revista Única, outubro 2008
(faz hoje 94 anos que José Saramago nasceu)

15/11/2016

O pequeno almoço grande numa alegria (mas tipo)

(Se alguém me pedisse para me definir numa frase, acho que me iria sair do tipo "sou uma entidade aprendente”. Portanto mastigar palha dá-me muito sono. Tenho precisado de ler uns manuais que têm uma grande quantidade de palha e eu ainda há pouco adormeci a páginas tantas, embuchada, que foi na página oito de um manual de cinquenta e uma, imensas. Acordei e entretanto já li até à trinta, mas muitos bocejos depois solto-me para aqui neste blogue que me faz um bem que deve ser mais do que eu penso e o postezinho que ficou esboçado ontem vai sair. Isto anda cá uma produção que nem parece minha. Entretanto, para quem ainda se aguentar, abaixo, onde se lê hoje deve ler-se ontem.)

Hoje o meu carro deu-me uma alegria. Conduzi-o até à oficina para o deixar lá a lubrificar as pecinhas, trocar o óleo, limpar tubinhos, afinar conjuntos, eliminar folgas, alinhar o rumo, dar um polimentozinho nos riscos que pessoas fizeram na minha ausência e eu não sei que pessoas são essas, só sei que foi com carros brancos que fizeram, agora há muitos, parece que os carros brancos é que são giros, pelo menos lá riscos nos outros carros fazem eles, e eu ia dizendo que o meu carro me deu a tal alegria hoje. Porque ficando sem ele tomei o serviço de transporte cortês da oficina e esse deixou-me à beira do rio, todo central, a uns passos de um pequeno almoço, caramba, um pequeno almoço que foi grande (é a alegria). Ainda se sentiam no ar, juro, as vibrações do crocante disruptivo (disruptivo agora usa-se muito, é tipo os carros brancos) psicadélico e estonteante Lisbon Web Summit (‘tamos uns vaidosos!), ao qual não tive o prazer de ir for reasons, ora ali viam-se esta manhã, sentados pela fresca na espécie de deck, o meu pequeno almoço e eu. E também as pombas, uma surpresa, mas de pé. Ou com os pés pendurados se em modo de voo, aqueles dedinhos encarnados fechados em pinça (as pombas não se sentam). Era eu em potencial produção de migalhas a estar ali um alvo e foi preciso defender o meu pequeno almoço, caramba, grande, a alegria que o carro me deu, foi por isso que cá viemos ao blogue, das pombas (defender das pombas). Até tirei uma fotografia toda indignada, para fazer prova tipo onde é que já se viu isto suas malucas, e naquele nano de segundo do disparo, houve que lançar o braço num golpe de rins muito bom para segurar o alimento no prato, que uma terceira pomba me atacava tipo pelo flanco direito e o resto da matilha captei, mal, mas captei. Ó.


(como se chama então um conjunto de pombas que querem roubar o pequeno almoço a pessoas num dia sem carro?)

13/11/2016

Mayday

Há bocado estava a pensar que tenho de pôr os pontos nos is aqui no blogue. Nos ii. Nos i’s. Não sei escrever o plural de i.

Para isso há que dizer então uma coisa que é esta. Tenho vindo sempre a ser uma chata. Desde os dezoito anos, pelo menos, sou uma chata. As minhas irmãs: tu és uma chata. Porque não vejo televisão. Porque não vou às compras e aos saldos. Porque estou sempre a querer impingir livros (agora é aos meus sobrinhos enquanto estão frescos). Porque não tenho um facebook para encontrar pessoas e ver receitas nem tenho bimby. Mas não ter bimby ainda é pior. Porque nunca faço festas de anos com pratos de plástico de deitar fora por causa do ambiente, mas eu também detesto comer ou beber em coisas de plástico. Porque não levo as minhas filhas ao McDonald’s nem lhes dei bolicaos nem bolachas oreos nem chocapics (acho que elas comeram em casa das tias sem eu saber) e os iogurtes cá em casa são brancos, coitadinhas, e não trazem açúcar. Entretanto soube há dias que o McDonald’s agora tem sopas muito boas e saladas!!! (uma esperança)

E chega. Que o alívio vem já já depois dos pontos nos… bem, depois da confissão. É que a minha vida está a mudar e em breve serei uma ex-chata (irmãs!!). Descobri um programa que gosto de ver na televisão! É que comecei verdadeiramente a ver televisão! (Mãeeee!!!! Estás a ver televisão???!!!) Acho que é uma série. Chama-se “Mayday” e é sobre desastres de avião. O que eu gosto na série não é o desastre, sou chata mas não sou louca. O que eu gosto na série, se aquilo for mesmo uma série, é a investigação das causas. Andar com os factos para trás até encontrar a falha. Ou as falhas. É que podem aprender-se ali razões para outros desastres que não aqueles. É uma escola, é a reengenharia, é as alterações ao projeto, é… e vou já já calar-me. Só falta isto: próximo passo, fazer um facebook (que a bimby, desculpem lá, é muito cara). Ou então ir ao McDonald’s comer uma sopa. Boa ideia. Vou comer a sopa.

12/11/2016

O mundo está esquisito

Vou à rua e encontro o rapaz que passeia os cães, sem cães. Vens sozinho?, venho, estás bom?, cansado. O rapaz que passeia os cães diz-me sempre que está cansado e eu compreendo o cansaço dele, sei-lhe a história que as cicatrizes no rosto contam, mal, constato-lhe o esforço para se encaixar num mundo que, curiosamente, tem sido muito cão para ele.
- Hoje já foram oito – orgulhoso do seu ofício, tem a sorte de trazer no coração tamanha paixão pelos bichos, muito lhe brilham os olhos. Porém estão os meus hoje baços e não me disponho a ouvir as oito histórias que hão de querer sair, por isso cortei - Bom fim de semana, Renato, gostei de te ver, eu também gostei de a ver. As histórias ficam para outro dia, prometi-lhe sem lho dizer.
Não sei onde ponho esta tristeza. O mundo está esquisito. As pessoas desaparecem, as boas, e as más tornam-se maiores. Liguei à minha amiga Marina, já não podia esperar mais.
- Tenho pensado em ti, desde ontem. – isto digo eu.
- Então porquê? Não me digas que é por causa do Leonard Cohen.
- Sim, é.
- Não imaginas a quantidade de pessoas que me ligam ou mandam mensagens…
- É como se ele fosse teu, Marina. Eu não me lembro de te ter conhecido outra música… o Leonard Cohen era teu…
- Ah… sim, era. Como diz o João Miguel Tavares, ficamos nesta ligação íntima com os músicos, eles fazem mesmo parte de nós… é exatamente assim que eu sinto... Leste?
Li. Aliás li uma data de coisas. Para ver se o mundo deixava de estar esquisito (e não deixou).
- Mas olha, não fiquei triste.  – continua a Marina - Quando saiu o álbum dele, há um mês, eu pensei: ele está a fazer o que o Bowie fez, está a despedir-se. E então decidi não o comprar. Talvez para adiar o inevitável... Assim que ontem ouvi a notícia, pensei que já podia comprar o álbum… Foi como se ele me tivesse avisado que se ia embora, tivesse falado para mim, para me preparar… e então, olha, não fiquei triste… percebes?...
Percebo. Eu também achava que aquela canção, Suzanne, era para mim. Mas isto não disse eu à Marina.

(e não era, que eu ainda estou triste)


(comecei o post no rapaz dos cães para fugir ao assunto mas o assunto veio ter comigo, paciência)

09/11/2016

O triunfo do porco

Eu já andava desconfiada disto. O que agora está na moda é o ódio. O ódio no geral. Dividir, desunir, desrespeitar, rebaixar. 

O ódio ganhou.

E agora? Será que um imbecil que julga ser o seu umbigo o centro do mundo sabe o que realmente tem nas mãos?

06/11/2016

Tapetes de ouriços

As casas desta aldeia serrana, beirã, estão todas vazias menos esta de onde escrevo. Havia uma vizinha checa, ali em cima, uma vizinha de Brno. Não sei o nome dela, vamos imaginar Sardska se faz favor. Sardska apareceu aqui na rua no dia de fevereiro em que nevou toda a manhã, e eu bom dia para ela. Vinha sem dentes Sardska, trazia uns três ou quatro, talvez, e vestia roupas muito velhas; a solidão, quando perdura, faz isto às pessoas, desarranja-as. Sorriu-me e respondeu-me em inglês. Há quinze anos não via nevar neste sítio. Com ela vinha um cão dando saltos estranhos, olhei-o. Ela: que ele nunca tinha visto neve e estava doido de alegria o cão. No verão soube que Sardska foi para uma clínica, para ter mais companhia. Também havia um vizinho britânico, aqui em frente. Costumava ir pescar ao rio levando uma caixa com larvas brancas que se contorciam – ele abriu a caixa para eu ver as larvas -  são de mosca, diz-me. As larvas parecem enormes para serem de mosca. Os peixes adoram isto, justifica-se (talvez eu tenha torcido o nariz às larvas sem querer), é o isco. John, vamos supor que se chama John, voltou no princípio do verão para o reino unido dele, depois de mais de duas décadas cá. Encontrei trabalho lá, explicou, e aqui só em Sintra, mas Sintra é muito longe. As casas estão, agora, todas vazias. John deixou ficar o carro, talvez pense voltar. Olho o carro de vez em quando. Penso que assim estou a tomar conta dele, um bocadinho: ser boa vizinha. Ou então para o carro não morrer aqui, também ele, como as casas, arruinado. A capota é de lona e já tem um rasgo, alguém o fez com uma faca, o vento não foi.

Mas nem tudo é triste. Há muitas castanhas no chão, fazem grandes tapetes de ouriços. Há muitos figos nas figueiras (ainda) que se podem colher. Há uvas nas videiras querendo talvez ser pisadas, subir a vinho, há tangerinas, há marmelos. Há esta vontade minha de escrever isto. Como se fosse para fazer viver a pequena aldeia que parece não querer morrer. De linda que é.