O ex-vizinho inglês, aliás, um dos ex-vizinhos ingleses da
aldeia da serra, é de notar que sendo esta uma aldeia de Portugal, quando cá
estou sou a muito única portuguesa se não contarmos com o padeiro mas só à hora do padeiro, óbvio, o ex-vizinho inglês, dizia eu, voltou. Tinha sido o último habitante permanente,
logo depois da mulher checa sem dentes e com um cão louco que me metia cá um
medo, portanto o último a abandonar a aldeia à intempérie, seja aos ventos seja ao sol, aos pássaros, às martas, sim, há martas, javalis, veados, pirilampos em
junho e gafanhotos nesta altura do ano. Voltou e trouxe a família que,
entretanto, aumentou. Mulher, filho que já começou a ir à escola e uma filha
novinha. Tem um problema de bronquite a menina e os ares de Portugal são mais
favoráveis a pulmões frágeis do que os daquela ilha que ou sai ou não sai da
Europa, dá-me a mim ideia que no fundo no fundo não quer sair mas finge que
quer, estes nativos de que falamos não saem, pronto, até voltaram para ela.
Está mais gordo, o vizinho inglês. Nem o reconheci quando, há dias, o vejo
passar na rua com uma cabra agarrada por dois pés, a cabra de cabeça para baixo
chateada que eu sei lá, a avaliar pelos gritos que vinha dando rua abaixo. Parecia
a aflição de um gato mas era a aflição de uma cabra (só que a dos gatos é mais
conhecida). O vizinho é bastante forte de força, agora não digo forte de gordo,
é de força que digo, porque erguia a cabra acima do seu ombro, que a bicha de
pequena não tem nada, ou seja, para não vir a cabra a varrer a rua com o
focinho, coitadinha. Mas fiquei na dúvida. Na altura recolhi a minha espreitadela
para dentro e hoje é que soube que o vizinho é ele, o mesmo, o John, olá John, então
de volta? E a cabra?
- Ah, as cabras estão finas, não são para comer nem nada,
são de estimação.
- As cabras?!
- Sim, já temos quatro, ontem fui buscar mais duas.
O vizinho inglês faz portanto coleção de cabras e não vamos ficar
por aqui.
- E cinco cães.
- Cinco?!
- Sim, mas são mínimos – John dispõe as suas mãozorras em
prancha vertical, paralelas e próximas entre si – são Chihuahua.
- Ah.
Está, então, uma família bastante composta a repovoar esta
aldeia quase sempre toda deserta.
Mais tarde, após a noite cair em cima das cabras e dos Chihuahua
(fui ver como se escreve Chihuahua), fiz uma sopa e o jantar. Então veio de repente a mim uma ternura proveniente da coleção de cabras do vizinho e pus-me a guardar
as cascas todas da sopa. Oh c’amoooor!, como diria a minha irmã Ana, que me faz
sempre rir quando imita as suas alunas. Batata, cenoura, curgete, alho francês, o alho
francês não tem cascas mas eu fiz por lhe arranjar uma espécie dalgumas,
alface, idem relativamente a cascas, e ainda coentros, novamente idem. As
cabras vão gostar. As da cebola reservei para o caixote do lixo, colam-se a
tudo e esvoaçam, podem engasgar as cabras, de maneira que lixo. Depois fui e juntei as cascas
da maçã que compôs a salada para o jantar, acho até que inclinei a cabeça com a
ternura que me bateu. Oh c’amor!