30/06/2020
Geometrias
Casados fez sessenta anos em plena pandemia, os vizinhos da
casa em frente estão atarefados a cuidar do seu jardim holandês. As folhas do
chão são varridas e reunidas. Não utilizam máquinas, fazem eles enquanto acenam
a quem passa, ou a mim, que estou a espiá-los detrás da janela da cozinha. A
sebe poliédrica perimétrica é aparada mantendo as superfícies lisas, os ângulos
retos. As ervas supérfluas, indesejadas, são removidas com mãos
experientes dentro de luvas de entre as flores escolhidas em amarelo, lilás,
branco. Os canteiros de novo intactos. É um jardim bonito e bem cuidado, como
era de esperar, mas falta-lhe uma coisa para ser promovido a quintal: a roupa
estendida entre a qual se vê uma toalha de piquenique aos quadrados
vermelhos e brancos a esvoaçar na brisa da tarde como nos livros de histórias. As
toalhas deste tipo têm a especialidade de não ficar estiradas, hirtas, em
direção ao chão. Elas atraem a brisa da tarde de propósito para ficarem bonitas
nas ilustrações dos livros. Não há roupa estendida em toda a rua, aliás; feito que
terá origem na proliferação já antiga das máquinas de secar. O contentor de
tampa verde informando sobre a sua espécie de conteúdo está ali por perto,
aberto e quase cheio, bem alimentado pelos resíduos colhidos no jardim da casa em frente. Deve
estar para breve o dia de passar o carro-camião-mas-limpinho que com o seu
braço mecânico vai, apanha e vira os contentores da tampa verde de rodas para o
ar, dois a dois, agita-os esvaziando-os e volta a pousá-los. É só preciso, na
véspera, colocá-los alinhados lado a lado, estimando razoavelmente o alcance do
braço mecânico, direitinhos. Todos os moradores da rua sabem isto e eu
também, que venho de passagem. Eles não falham: eu só me enganei uma vez.