27/04/2013

Fado na praia

Combinámos sair de Lisboa às oito horas daquele Sábado de Julho. A Marina levava o carro e eu levava o almoço para as duas, era o acordo. Rumámos direito ao Sul. Queríamos chegar à praia antes de a areia se ter libertado das sombras que se quedam, lânguidas, no fresco macio, enquanto o Sol se espreguiça.

Depois da autoestrada, seguimos pela via secundária. O percurso tem, aqui e ali, casais de cegonhas que ainda não levantaram voo para a caça do dia. Os ninhos estão todos ocupados e eu tenho vontade de inventar um poema, acontece-me sempre que passo por aqui.

Para trás fica o museu do arroz, não o vejo, mas lembro-me bem de lá ter estado, há quanto tempo foi?

À nossa frente a estrada desenrola-se, os ramos das árvores que a ladeiam projectam as suas sombras no asfalto.

O poema está mesmo a querer brotar, mas o terreno que eu sou não é fértil. Devia ser fácil fazer rimar sombras com... com quê? Com cegonhas? Nada. Não sai. E um poema nem tem de rimar, pois não?

Na verdade, não me importo. Quero sentir a areia a meter-se-me entre os dedos dos pés e deitar os olhos naquele azul que me lembro ter três tons.

Amo tanto o meu Portugal! Pedaço de beleza que remata a Europa do lado de cá, com o pesponto desenhado na praia. Já sei porque o fado escolheu nascer português. É para ser cantado à beira mar e assim purgar as tristezas lusas, reduzi-las a cinzas deitadas ao azul sem fim. E sem ninguém ver.

O parque de estacionamento já estava ali, a pulsar de lugares vazios. E finalmente o abrandar do motor arrancou-me ao meu poema, antes mesmo de o ter começado.

A maré estava baixa e não se via quase ninguém. O areal é tão extenso que o espaço nos podia engolir.

Antes que o fizesse, a Marina instalou-se a ler. Não sei se foi o Gabriel García Marquez que se estendeu com ela ou se um daqueles autores que, não fosse a minha amiga, eu não conheceria. Como o Nikolai Gogol. Esse eu ainda não soube ler sem sair das trevas. Mesmo com todo este Sol.

Por isso, lancei-me praia abaixo até ao limiar que separa o sólido e o líquido do pesponto português. O constante vai-vem da água, ficas tu ou chego-me eu. Toma lá dá cá.

Perscrutei a espessura líquida e transparente que a maré trazia baixa. E então vi-os. Muitos. Tantos. Peixes minúsculos, de cor indefinida e idade muito tenra, em alegre arraial de volta dos meus pés. Deixei-me ficar a observá-los por um instante dourado. Como é belo este meu Portugal.

Não urgi a chamar a Marina, roubá-la ao Gabriel, ou ao Nikolai, para lhe mostrar aquilo. Não tinha a certeza, podiam ser restos do meu poema não começado que se vingava da minha infertilidade e me povoava a imaginação, essa, fértil.

Pus-me, em vez disso, a caminhar. A linha de peixes minúsculos acompanhou-me, eu a deitar-lhes o olho. Sim, ali estavam. Nadavam e os corpinhos lisos iam brilhando com os raios de sol filtrados pela água, à vez. Pareciam estrelas no chão. E eu pés na areia, e a água nos meus pés.

E foi neste vibrar de luz que o meu fado começou a sair. Cantei-o em silêncio, um pedaço a cada pegada que imprimia e que era apagada de seguida. Cantei-o até se esvair a minha tristeza em cinzas. E a essas deixei escorrer, ofereci-as aos peixes.

Quando o meu fado calou a voz, não sei quanto tempo tinha passado, voltei para junto da Marina e da sua leitura. Ela viu-me sem fado e eu vi a areia sem sombras. Enquanto o Sol brincara com os peixinhos, arrancara as sombras da areia, que já não se podiam esconder mais.

A praia tinha-se, entretanto, vestido de famílias. Cada qual com o seu chapéu-de-sol a completar a fatiota. E a maré naquele vai-vem, a chegar-se a elas, a espessar, devagarinho, a querer oferecer-lhes o seu manto líquido, azul.

Afastei da ideia os peixes que me levaram o fado e foi a minha vez de mergulhar. Foi no José Rentes de Carvalho, e nos seus, e nos meus, holandeses, o primeiro livro que li do autor. Andei por lá umas horas, calcorreei a Amesterdão de há tantos anos e vivi as aventuras de negócios que não deixavam vislumbre de saída airosa e me chegaram a suspender a respiração.

Entretanto, a brisa da tarde tinha-se aproximado e o calor alentejano, alheio aos frios do meu livro, não se fez rogado. Pus Amesterdão de lado e decidi visitar os peixes, refrescar a pele. A Marina não largava o seu Gabriel (já me lembro, era ele, se fosse o Nikolai ela teria vindo comigo à água) e eu não insisti. Sei bem como é ter um dia livre de filhos e cheio de leitura.

Cheguei à beira da linha azul, do vai-vem, das ondas, dos três tons aquosos em degradé até ao horizonte. Olhei para baixo mas a transparência já não estava lá. E os mil peixinhos também não. Terá sido, afinal, imaginação?

Entrei na água e deixei-a roubar-me o calor. Nadei um pouco, não muito. Os holandeses estavam à minha espera. Que contraste. Aqui na costa alentejana tanto azul, lá em cima nos países baixos tanto frio. Pus os pés no chão e caminhei para fora de água, ainda à procura dos peixes no azul denso e espumoso abaixo de mim. Onde se terão escondido?

Levantei a cabeça para descobrir o local, na areia branca, onde estaria o meu livro em ânsias de me voltar para as mãos. Mas o que vi foi uma parede de gente em pé, no topo da rampa de areia que a praia esculpia desde a água. Até a Marina lá estava, distingui o seu biquíni branco e os caracóis castanhos saltitantes que parecem sempre acabados de lavar. Mas que agora estavam quietos, os seus caracóis e toda a gente.

Não, de certeza que eu não estava assim em tão boa forma, não a ponto de ter a praia inteira em pé, à minha frente, virada para... mim. Não.

Voltei-me para trás. E então vi-os eu também.

Eram mais de vinte, consegui contar. Ali mesmo, tão perto de nós. Aos saltos. Corpos enormes fora de água, uma e outra vez. Pretos, brilhantes, lindos. Os roazes do Sado.

Agora já sei. Os peixinhos fadistas foram cantar aos roazes o meu fado. E se calhar outros fados cantaram.

É por isso que estão os roazes tão felizes. São eles que mandam os peixinhos à praia, para ouvirem os fados na maré baixa.

Só lhes faltavam esses na sua colecção de cantigas. Já têm as de amor, as de amigo, as de escárnio e as de maldizer. E agora os roazes querem os fados, colhidos na ocidental praia lusitana.

As outras cantigas, aprenderam-nas há muito tempo. Vinham nos versos que Camões perdeu no mar.

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