31/05/2013

Pouca terra

Desta vez foi no teu jardim que nos sentámos. Ao sol.

Levaste duas cadeiras, chamaste-me. Eu levei o café para nos saborear a conversa. Era o nosso mundo, uma vez mais.

E uma vez mais antes de eu partir. Tu e eu, um pouco de tempo, ainda, antes de o comboio chegar. Com sol. Nesse dia estava sol.

Cada segundo que é nosso fica impresso na minha alma, desde o primeiro momento em que te vi. É uma foto, mais uma. E outra e outra, fotos do álbum da nossa vida. E tu deixas. Deixas-me ser assim.

Sorris quando te mostro a colecção de pérolas que vou fazendo contigo. Todas coladinhas, postas por ordem, sei a data de cor, tu já não te admiras. Sorrio a cada gesto teu e digo-te que quero viver duzentos anos contigo. Sem ter de partir. Tantas vezes.

Bebi o café muito devagar para alongar o nosso momento. Tentei empurrar a chegada do comboio para um instante mais longínquo, pouca terra. Talvez seguisse sem mim. Só desta vez.

Tu falavas. Contaste-me como construíste a tua casa. Mostraste-me as pedras envelhecidas do teu jardim. Foste tu quem as colocou lá, há tanto tempo. Levaste muitos dias, mas ficou lindo, olha.

Não venhas, comboio.

Vi a tua sobrancelha tremer, tão ao de leve, de emoção contida. Só porque eu te disse: que bonito é o teu jardim!

Pouca terra.

Ia deixar-te. Deixar-te entregue às pedras do teu caminho, ainda acredito que te protegiam. Conheciam-te bem, podiam acompanhar-te na minha nova ausência.

Ainda não aprendi a ser livre, meu amor. Para deixar o comboio seguir sem mim, ficar.

Pouca terra.

Ou nenhuma, já nem sei a qual pertenço. Era à minha, ou é à tua? Adeus, amor. Deixa-me limpar as lágrimas, as tuas, as minhas, todas caem nesta terra. Pouca. Lá vou eu.


Recebi hoje a foto que tiraste ao jardim, já sem nós. Mas ainda com sol. As pedras ficaram lá e o caminho desenha os nossos passos. Mão na mão, foi o que disseste?

E eu, que hei-de fazer? Escrevo-te de novo, nada mais faço sem ti.

Enquanto espero pelo comboio de regresso, colo a foto no nosso álbum.

Que tal aqui?


19/05/2013

Amanhã dão sol

Enquanto esperava que acordasses, sentei-me a uma mesa da sala de espera, no quinto andar do hospital. Sentei-me à janela, claro, junto à chuva. Adoro chuva, tal como tu.

Colei os olhos ao escorrer lento de uma gota que descia, do outro lado do vidro.

Lá em baixo, na rua, as pessoas passam. Algumas saem, outras entram pela porta giratória, dentro da qual o ar nos começa a aclimatar antes de nos lançar no interior luminoso do átrio. Ou na chuva que cai lá fora.

Aquelas duas mulheres que agora saíram embrulhadas nas suas vestes muçulmanas, não parecem estranhar esta chuva fria. Há quanto tempo aqui vivem? Quem vieram elas visitar? Que história é a sua?

Ali vem um homem novo, alto, apressado. Traz um balão metalizado, cor-de-rosa, com uma cegonha impressa, que assim à chuva brilha mais, como é possível alguém não gostar de chuva? Esse vem tão feliz nas suas passadas enormes!

E aquele senhor de cabelo branco, menos apressado, os seus filhos já terão nascido há muito, traz um vaso com flores também, claro, mais brilhantes. A chuva não descrimina.

Não, ninguém aqui está ou vem indiferente. Será por isso que o café da máquina ao canto do corredor é tão mau e ninguém parece importar-se?

Estou à espera que acordes. E esperava chegar aqui, sentar-me e carregar um fado enegrecido até te ver voltar a sorrir. Mas não é fado assim o que carrego, tenho de te dizer.

Sinto-me perto do céu e não é por estar num quinto andar e daqui ver a floresta que se estende ali à frente.

É toda esta energia que entra e sai do edifício, que passa no corredor, que cumprimenta e sorri e caminha apressada com flores e balões, é toda esta energia que me habita agora e que me faz sentir assim. Eu também não esperava isto.

A prova de amor alheio, aqui, em mil pedaços. É disto que te falo. Não ouves a ode que juntos compõem? É a mais bonita de todas. Esta não a tocam no Concertgebouw. É aqui que a tocam.

Quando acordares vais sorrir e dar-me um beijo, eu sei. Depois dás-me a mão e dizes vamos tomar café. E eu vou. Não me importo que seja este do canto do corredor.

Uma nova gota, recém-chegada ao vidro, está agora a descer.

Se algum dia me esquecer de como é a Humanidade, volto aqui. Mesmo que não esteja a chover.

Olha, encontrei esta foto no jornal. Diz que amanhã dão sol.

08/05/2013

Hermann Hesse

Adorava ser cientista e publicar imensas coisas, artigos. Científicos. Sobre curas, sobre soluções, encontrar respostas. Tentei enveredar por aí, mas o fluido da vida no qual me sentei ao nascer levou-me por outros caminhos.

Por enquanto.

Bem invoco o Hermann Hesse. Escritor de origens germânicas e Nobel da Literatura na década de 1940, escreveu, em Demian, um dos motes que adoptei para mim e que inscrevi no fluxo vivo em que me instalei. Diz ele qualquer coisa assim: eu queria viver exclusivamente o que de espontâneo brotasse do meu íntimo. Lindo, não é?

Imbuída deste espírito de espontaneidade exclusiva e ponto final, andava pelos vinte anos de idade e pelos laboratórios da universidade onde estudei a física das coisas. De muitas coisas (quem me dera todas).

A ideia era retirar o ar de dentro de uma câmara até conseguir obter o vácuo, ou seja, nada. Para isso estava operacional uma bateria de bombas - de vácuo - que actuavam à vez, em género estafeta, primeiro tu continuo eu. Em trabalho de equipa irrepreensível, sugavam devagarinho mas persistentemente toda e qualquer molécula que se quisesse ainda agarrar às paredes interiores do seu casulo de aço.

Verdade seja dita que retirar todas todinhas as moléculas de ar lá de dentro era  - ainda é? - tarefa impossível. Algumas, poucas, tinham mesmo de lá ficar, não havia bomba que lhes vencesse a teimosia.

A tarefa tinha sido já tentada por diversas vezes lá no nosso laboratório científico, pois as experiências estalavam de impaciência para se iniciarem. No entanto, por mais que tentássemos, havia sempre impurezas penetra que se metiam entaladas nos anéis vedantes das janelas da câmara. Nem Saturno com a sua experiência anelar nos podia valer e o vácuo não se fazia ao ponto que pretendíamos. Havia fugas pelas impurezas metediças e nada de vácuo inter-estelar; era este o que nós perseguíamos.

Após uma semana inteirinha de sugação ininterrupta, as bombas trabalhadoras conseguiram deixar dentro da câmara espaço suficiente para a nossa experiência científica. Mas ainda não me tinham dito nada. As safadas. Nem a mim nem aos professores que pacientemente me orientavam naquilo.

Entrei no laboratório e dirigi-me aos manómetros para mais uma vez verificar a pressão na câmara. Lá estavam eles, mas hoje a sua notícia era diferente das outras vezes todas. O quê?! Não acreditei logo. Esfreguei os olhos. Mesmo para os meus vinte anos de optimismo aquilo era demasiado.

Demasiado, mas verdade. Tínhamos mesmo atingido o vácuo inter-estelar!!!!

E foi então que a onda de espontaneidade que o Hermann Hesse me ofereceu se pôs em marcha directamente do meu íntimo e soltei a minha imensa alegria. Lancei-me - não sei dizer como - em direcção aos manómetros da boa nova e a todo o equipamento circundante, para verificar com as mãos o que os meus olhos me diziam. A todo o equipamento circundante, incluindo a válvula de entrada de ar.

De entrada de ar.

pssssssssssssssssssssss

Não, eu não fiz isto.

Fizeste, diziam os manómetros. E desta vez nem me deram tempo de esfregar os olhos.


De regresso à pressão atmosférica estava o interior da nossa câmara. E eu sem ar nos pulmões, o vácuo mudou-se para aqui, ai agora.

Informar a equipa orientadora sobre o resultado da minha espontaneidade, era a minha próxima tarefa.

Voltar a desmontar tudo, substituir os anéis vedantes (não havia outra forma, era mesmo assim) e tentar de novo - quantas vezes mais? - era a tarefa das próximas semanas. As experiências tinham de continuar à espera.

Feitas as contas, caro Hermann, espontaneidade sim, mas com limites. Digo eu.

No entanto, há quem pense como tu. Não sei se esta música a chegaste a ouvir. Se não, talvez a oiças agora e gostes dela.