Hortaliça.
Foi a palavra que a dona Esmeralda, que serve o almoço na cantina da empresa, hoje pronunciou, em jeito de esclarecimento quando alguém perguntou o que é isso.
Como gosto desta palavra! Normalmente vem-me aos lábios couves. Depois mastigo e engulo, que também são boas. Mas hortaliça é muito melhor.
Vou progredindo na fila, chegando-me lentamente à frente, sonolenta, empurro o tabuleiro com a mão, devagarinho, pelos varões corridos que me conduzem todos os dias ao prato que vou comer. A palavra soa-me ainda, hortaliça, que linda. Chega a minha vez, sou servida. Gosto dessa palavra, dona Esmeralda. Ela olha-me por cima dos óculos a pensar se vou outra vez chamar ervilhas às azeitonas, que é das verdes, ou se agora é a sério.
Sorrio-lhe, gosto desta mulher. Desenfiei-me para o meu lugar, com o tabuleiro nas mãos, o almoço a fumegar à minha frente. À hortaliça chamei-lhe um figo, ou dois, comi-a toda.
Até ao fim do dia dispus-me a encontrar mais duas palavras que com esta compõem uma ode ao Português. Para serem três que é a conta que Deus fez e a rima também veio, senta-te aí, toma mais um copo.
Numa pausa dos ensaios, a meio da tarde, escorreguei nela. Assim, no plural. Algerozes. Guardei-a no bolso, fica para quando surgir o momento, a necessidade. E vão duas.
Mais tarde, já no fim do dia, arrumava os despojos do trabalho e vem o sol empastelado, cansado de brilhar, pousar-me nas mãos. Trouxe-me a palavra que faltava. Interstício. É pelo insterstício da arquitectura da escada do piso de cima, projectada num plano imaginário por cima de mim, que o raio de sol me visita. Ah, mas esta é uma velha amiga, uso-a muito, forço-a, imponho-a, meto-a a martelo, gasto-a, tanto me apraz dizê-la. Interstício.
Se eu soubesse escrever, escrever mesmo, compor a melodia que a leitura faz soar mentalmente, entrelaçar as palavras em bordados literários, proporcionar autênticas massagens neuronais, inventar novos termos graciosamente, sem doer, se eu pudesse em linhas simples, direitas, inculcar emoção, medo, paixão, pressa, pausa, se eu pudesse fazia um livro.
A hortaliça, os algerozes e um ou outro interstício entoariam o refrão da história do meu livro.
A capa havia de ser em tons pastel, daqueles que o sol aconchega antes de se deitar.
À falta do talento, que não chegou para mim, fico-me a pensar o que será amanhã o almoço.
(A minha filha veio encostar-se, diz que gosta de me cheirar quando cheiro bem.)
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