17/04/2014

Extractos

A radiação de fundo da sociedade está.

Está aqui, está aí, existe permanentemente, desliza através dos tempos, respira-se.

De vez em quando também a oiço. Ou vejo-a. Entra-me na existência de um momento e lima-me um bocadinho mais, esculpe-me. Constrói-me.

Às vezes dói. Parte uma ponta da minha alma que fica para reparar mais tarde, depois de chorar ou de pensar. Outras deixa-me a vibrar em ondas que me agitam de raiva ou de ternura.


Entrei no táxi no aeroporto. Sempre que aterro fora do horário do autocarro que me leva a casa, tomo um táxi.

O homem que me conduz pelas ruas da cidade pergunta-me se venho do frio ou do calor, se o voo vinha cheio, quer saber o que trago para dizer. E eu digo. Depois falamos da crise, que se mete na conversa, penso que vinha colada ao vidro que eu não abri.

- A crise, minha senhora, às vezes são as pessoas que a chamam, ora oiça. De vez em quando levo um rapaz ao centro da cidade. Ele diz-me que vai atrasado, vai sempre atrasado. E eu um dia perguntei-lhe: mas andas sempre atrasado, rapaz?

Faz uma pausa para me encontrar o olhar reflectido no espelho retrovisor, que com a penumbra da noite interceptada pelos candeeiros que passam à nossa velocidade, não mostra muito mas informa que sim, pode continuar.

- Diz que é de ir para a noite, para os copos, deita-se tarde. Anda na universidade, veja lá. E eu: mas vais para as aulas atrasado, rapaz? E sabe que mais? Vai atrasado é para o trabalho, que ele tem um trabalho! Ora, se vais trabalhar, deves chegar a horas, o patrão paga-te para estares a horas, não é?

- Com certeza, digo eu, pode entrar pela rua dos bombeiros que é mais directo, se faz favor.

- E sabe que me diz ele? Diz que a chefe é que ganha bom dinheiro e ela é que tem de trabalhar, não ele! Ah, minha senhora, e anda este jovem na universidade!


Dentro de um táxi ouvem-se extractos da radiação de fundo da sociedade.

De uma sociedade com gente que não quer trabalhar porque acha que ganha pouco dinheiro, mas gasta-o em táxis depois de noitadas nos copos.

Hoje ao almoço, o João perguntou-me se bebo café. E ia para lhe contar da radiação de fundo que se apanha nos táxis, mas em vez disso respondi-lhe. Sim, bebo, gosto muito de café.

Tanto, que depois é isto. Não tenho sono e ponho-me a escrever a história que não contei ao almoço.

Pode ser que o João a leia amanhã, no caminho para o trabalho.

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