31/07/2014

Uma espécie de mota

O Professor tem, agora, o dobro da minha idade.

Costumávamos, duas vezes por ano, ou três, almoçar.
Eu, muito direita na cadeira com as pernas firmemente posicionadas para que o guardanapo não me escorregasse do colo, mantinha o trato formal que a ocasião pedia. Mas, ao mesmo tempo, não escondia completamente uma dose de deslumbramento enquanto ouvia as suas histórias.

Certa vez contou-me como tentou levar uma embarcação de Peniche à praia da Consolação, ou vice versa, e quase morreu afogado naquele mar revolto, tendo terminado a viagem na praia de onde tinha saído, muitas horas e muitos mergulhos depois.

Por vezes esquecia-se de comer, ou talvez comesse as recordações que lhe iluminavam as histórias, os novos não se interessam por estas coisas, dizia-me, sabe qual é a diferença entre um país desenvolvido e um país subdesenvolvido como o nosso? É que num país desenvolvido, se a tarefa não foi realizada, apresenta-se alternativa, as pessoas buscam soluções, num país subdesenvolvido justifica-se o incumprimento com desculpas e ficamos assim. Disse-me isto tudo a olhar-me por cima dos óculos, como se avaliasse em qual dos lados eu me encaixo.

De uma outra vez, no restaurante do Museu do Azulejo, local eleito para os almoços, com a carta das sobremesas na mão, fruta da época, mousse de chocolate não, pudim, hum, doce da avó, não, pausa, e depois, outra vez por cima dos óculos, quase em surdina, sabe o que me apetece mesmo? E eu a arregalar os olhos, o Professor vai-me dizer o que lhe apetece mesmo, vai?, pensei. Vai: era outro prato de tostas fininhas com manteiga, daquelas que serviram no couvert.

- Parece-lhe despropositado?

Ora eu, para quem a vida é com as cores todas que se vive e o mais intensamente possível, chamei de imediato o empregado e fiz o pedido, acenando com a cabeça para confirmar, quando vi os olhos do rapaz abrirem-se mais, interrogativos.

- Só isto? - perguntou o Professor perante o pratinho parco de fatias fininhas de pão tostado que lhe puseram à frente.

- Mais, traga mais, se faz favor.

- Muito mais! - corrigiu ele, com um sorriso que eu não lhe conhecia.

Deixámos de almoçar depois do engasgo. O arroz de bacalhau não quis descer, nem a água que ele bebeu ajudou a empurrar, voltou o arroz para trás, o bacalhau e a água, o guardanapo fez as honras da casa, recebeu tudo, ele correu à casa de banho e eu apanhei um grande susto.

Quando saiu trazia os dentes na mão, um sorriso de menino envergonhado, a cabeça curvada, parecia mais baixo. Na minha garganta formou-se um nó mas guardei as lágrimas para depois.

Primeiro, conduzi-o a casa no carro dele.

Hoje, passados um par de anos, telefonou-me. Disse-me que os engasgos passaram por completo porque foi ao médico e o médico tirou-lhe os bloqueios. Que está velho, que não lhe renovaram a carta de condução, que a vista piorou muito.

- Mas comprei um veículo com quatro rodas e cinto de segurança, uma espécie de mota, sabe?

- Uma mota?!

- Uma espécie, não é bem uma mota, tem quatro rodas - repetiu. Mas para irmos almoçar eu apanho um táxi. Está cá para a semana ou vai de férias?

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