16/08/2014
Azul claro
Acordei ainda estava escuro.
Lembrei-me, antes que viesse a insónia, do miúdo gordo que iniciava a custo o percurso para chegar à cascata.
Doze ou treze anos metidos em noventa quilos, talvez mais, que em passadas trôpegas mal progrediam, enfiados entre a rocha a fazer de parede e o riacho lá em baixo. A água corria sobre as pedras caídas no leito descontínuo, salpicando os fetos, espumando nas curvas, carregando memórias de um inverno muito chovido.
A mãe da criança vinha atrás, colada ao filho, passos pequenos, aflitos; empunhava um pacote de Lays dos grandes, aberto ao céu e mantido à altura do ombro do menino, não fosse dar-lhe a fome de repente e não haver uma raiz de árvore por perto que o saciasse.
Ao cruzar-se comigo o miúdo parou, mal cabíamos ali os dois sendo um tão avantajado. O menino, enquanto espera que eu passe, volta a cabeça para trás, para a sua solícita mãe, que eu ouvi tão bem, e diz-lhe, isto é muito mais fácil na playstation, sentado na minha cadeirinha! Meu rico filho, fez o risinho tolo da mãe.
Saí da cama e aproximei-me da janela, que está aberta. O luar banha a serra lá fora, os grilos já se calaram, as estrelas estão acordadas. A cascata também, entoa alto o seu borbulhar que atravessa o vale e vem embater-me na face; perguntei-lhe se o menino dos noventa quilos a visitou. Não lhe distingui a resposta, pareceu-me que deu uma gargalhada.
Voltei para a cama e não pude dormir. O meu peito parecia produzir flores por dentro, vindas de uma primavera triste. Flores que ao luar parecem a preto e branco. Cerrei os olhos com força, mas as flores não queriam parar de brotar de mim e eu tive de sucumbir a este fluxo que deve ter nascido na cascata lá fora, enlacei-as o melhor que pude, uni-as nos ramos mais bonitos de que fui capaz, são para ti.
Só não lhes vi a cor, quando o sol raiou o céu de azul claro e os primeiros pássaros cantaram a sinfonia da alvorada, eu adormeci contigo nos braços.
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