25/09/2014

Nunca mais ter amor

O telefone não tocou todo aquele dia nem toda aquela noite.

Na manhã seguinte a empregada entrou com a chave, como de costume, e encontrou-a estendida no chão, um braço esticado num vão de horas para alcançar um interruptor, ou a vida que lhe fugia.

Numa poça de urina e solidão, metade do corpo ainda respirava e talvez tentasse acordar a outra metade, estática, tesa, morta.

Foi levada ao hospital. Tratamentos, drogas, repouso, mais solidão. A metade do corpo que não deixou de respirar emprestou um pedaço de vida à outra metade e ela voltou para casa. Em cadeira de rodas, que as pernas deixaram de responder ao cérebro e os olhos recusavam-se a ver mais que sombras.

Alguns anos depois mudei de casa e passei a ser sua vizinha. Um dia encontrei-a na escada, à entrada do elevador, a cadeira de rodas a ser manobrada pela pessoa que a acompanha.

- É a nova vizinha?

- Sou, sim, muito prazer em conhecê-la.

- Eu não vejo nada, querida, este amigo ajuda-me a recuperar, é um amigo, fiquei nesta cadeira depois do acidente, há dois anos. Chamo-me Idalina, mas tratam-me por Lina, já sabe. Para quando precisar de alguma coisa.

O meu coração saltou. A voz que saiu deste quadro encimado por uma cabeça descoberta, a pele rosa por baixo do cabelo quase inexistente, branco nos restos, a voz era doce e tratou-me por querida sem me ver, eu precisar de alguma coisa?! Agradeci-lhe sorrindo para que ela me visse o sorriso na voz, ofereci-lhe em retorno, de pronto, a minha ajuda.

- Para o que precisar.

Passaram-se, entretanto, quase dez anos. Ela nunca me bateu à porta. A cadeira de rodas deu lugar a uma bengala e até sei que vai sozinha ao supermercado, que fica perto; recuperou boa parte da visão.

À porta dela eu também não bati. Nem eu nem ninguém, que eu visse. Passaram-se natais e páscoas e verões e trovoadas e calor de quarenta graus e eleições e ambulâncias na rua e porcos no espeto e gente a chegar e gente a morrer e o prédio foi pintado e a garagem foi remodelada e o pátio teve obras e ninguém lhe bateu à porta. Que eu visse. Para além do amigo dos cuidados de recuperação, que entra com chave e que nunca largou a sua bem sucedida tarefa.

Um dia, por acaso, vim a saber.

- Ela era muito má, Susana. Tratava mal o marido. Ele morreu, não me admira, coitado. Os filhos nunca vêm, eu acho que toda a gente a odeia.

 A Maria José, que vive cá há muito mais tempo, sabe a história. E continua.

- Teve aquele acidente e se não fosse a senhora que lhe vinha limpar a casa, morria ali sozinha. Ela era mesmo má, e agora nunca ninguém a visita. Havia de a ter conhecido antes.

- Se calhar o acidente modificou-a - atrevi-me eu, lembrando-me da doçura da sua voz.

- Não sei, eu nunca a vejo. Mas não acredito nisso.


Lembrei-me de contar isto depois de ter lido duas vezes esta história aqui, que me comoveu. As pessoas que não amaram podem nunca mais ter amor.

E se amaram?

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