Cheguei-me ao rio. A lua reflecte-se ali a meio caminho
entre esta margem e aquela, mostrando-me um carreiro de gotas todas juntas e eu
escolhi uma, acolhi-a na mão, bebi-a. Sabe um nadinha a mar.
Começando a prosa com tanta poesia até parece que, em
ganhando balanço, vai derreter um ou outro coração mais adiante e mais natalício
ou mesmo distraído. Pois assim não será, que esta prosa serve-se azeda.
Hoje tinha pensado morrer. Para isso, fui comer uma refeição do tipo
porcaria servida em recipientes de cartão armado ou de plástico em cama de
tabuleiro revestido com papel total e visualmente poluído com tretas que não
valem nada e ainda a factura debaixo do copo da bebida açucarada, das piores.
Sentei-me na esplanada dando as costas ao sol, a carregar, a
ver se vem a mim um resto de energia e eu pego.
Uma mulher muito gorda fuma sentada no meu
campo de visão e enternece-se com os pombos, anda aqui uma legião deles a debicar nos restos deixados nos tabuleiros abandonados. Eu não me
enterneço com nada, como esta porcaria em cima dos materiais perecíveis depois
de mim e da factura, que é sem contribuinte, e acaba de voar o celofane onde
vinha metida a palhinha.
À minha frente está a revista do jornal de sábado que trouxe
comigo e que me quer dar ideias para presentes de natal, perfumes,
meias de lã, mas eu não quero estas, as minhas é que são boas ideias.
Entretanto, com o sol a carregar-me nas costas devo ter enfim
pegado, reparo que neste cenário nem os olhos mais benevolentes podem registar
uma centelha de beleza e uma batata frita desolada voa por cima da minha cabeça
e vai embater na mulher que fuma e se enternece muito, olha que lindos, vê-se
mesmo que gosta dos pombos. Eu era as gotas de água em carreiro a correr ao
luar junto ao rio, mas doçuras não são para hoje.
Acabei com aquilo, o meu lixo levei-o para fora do alcance
do vento e recolhi a casa com o saco do jornal na mão.
Pelo caminho percebi que afinal não podia morrer hoje, havia ainda a
árvore de natal para fazer e uma pilha de roupa a tratar.
Fica para amanhã, então. O tempo que me vou subtrair corto-o
em pedaços: anos para a família, meses para os amigos e semanas para o porteiro
lá da empresa, que fica sozinho na noite mágica a vigiar a entrada de ninguém.
Embrulho todos em papel muito bonito, ponho um laço vermelho com o brilho que
lembra o luar no rio e ofereço-os pelo natal, isso sim.
Cá perfumes e meias de lã. Da falta destes não se ouve alguém queixar.
Já da falta de tempo, sim.
Muito.
Muito.
Mas pouco espero que demore a reflexão do amigo Xilre. Muito grata estou eu e, não tarda nada, saudosa.
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