02/06/2015

Montra de vestidos pendurados em manequins brancos e cappuccino é que nada

Ontem escrevi sete páginas à mão dentro do avião aos saltos (com esferográfica) a caminho de Lisboa. Para se ver perfeitamente que não estou a exagerar nem a fazer-me de aventureira sem medo, digo que me recusaram o cappuccino.

- Não servimos bebidas quentes com esta turbulência, deseja mais alguma coisa?

A tarde tinha-se vestido de branco e enfeitava-se da chuva esborrachada pelo lado de fora da janela do comboio que me leva ao aeroporto, cortamos o véu líquido na cápsula aquecida. As gotas de chuva já muita gente escreveu que batem nas vidraças e descem até encontrar o obstáculo vedante que as recolhe numa linha enquanto aguentam a tensão de superfície, a mim parecem-me sempre tristes por serem cegas, porém carregadas de uma poesia (que nem ler sei, quanto mais escrever). Saio na estação de Amsterdam Bijlmer Arena, por causa das obras no caminho de ferro que não permitem às composições continuar a colher gotas de chuva a oeste dali e pergunto onde se apanha o autocarro que completa o percurso.

Aos meus pés o saco de viagem que cabe debaixo do banco à minha frente. Também iria aos saltos não fosse estar retido no seu casulo que sobrevoa a França de certeza. Leva dentro o vestido que me chamou da montra de uma das lojas no aeroporto, atacando-me de repente o olho esquerdo (cappuccino é que nada).

Assim que entro no autocarro número trezentos, dois minutos depois do parágrafo da poesia ali em cima, bate-me na cara o cheiro a óleo de fritar imensas coisas que se pode facilmente encontrar a menos de quinhentos metros de qualquer bom restaurante MacDonalds. Um nojo este cheiro e sento-me a observar novas gotas de chuva, cada vez mais a poente.

Aqui por cima da França, gosto muito de dizer da França, os saltos da turbulência continuam agora com orientações laterais terríveis, não me lembro de uma endurance assim e estou quase a entregar-me ao medo, mas continuo a escrever.

Quando o autocarro finalmente abre as portas na praça central do aeroporto, liberto-me do cheiro do óleo cansado de fritar muito e saio para o fresco do fim da tarde. Sinto-me sempre feliz a viajar sozinha, de forma que acredito ser uma companhia extraordinária, e entro satisfeita na combinação de portas giratórias gigantescas que dão acesso ao edifício. No corredor que atravesso a caminho do terminal três, passa por mim a uma velocidade considerável a montra de vestidos pendurados em manequins brancos como a tarde lá fora. Um dos vestidos finta-me, ataca-me pelo olho esquerdo, ei tu aí. Travo, derrapo, viro-me para o olhar de frente e ligo à minha filha.

- Amor, já encomendaste o teu vestido?

Vou encomendar agora, mãe, aquele da internet, lembras-te, foi o que me disse a voz dela, conformada, a dois mil quilómetros de mim. 

- Não encomendes, acabo de o encontrar.

(temos um baile de finalistas e o décimo oitavo aniversário acumulados na mesma agenda para este mês e para os quais já se percorreram quilómetros quadrados de lojas lisboetas, eu envelheci bastante dentro de gabinetes de provas de vestidos muito bonitos, mas este não, mãe, muitas vezes, este não, mãe)

4 comentários:

  1. Respostas
    1. E eu a pensar que tinha viajado sozinha... :-) afinal tive boa companhia.
      Obrigada eu, G.

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    2. O texto traz agarrado um subtexto que me fez viajar, isso, querida Susana, garanto-lhe. Há sempre vida nos seus textos, faz-me bem, lê-la.

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    3. Muito muito obrigada... agora é a minha vez de dizer que esse comentário me fez tão bem. Fez o meu dia, querida G.

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