04/11/2015

Um nó horrível na garganta

Já vamos no dia três, faltam doze minutos para o dia quatro e eu com duas histórias para contar e nada até agora. Mas esta noite fiz sopa. E fazer sopa dá-me vontade de escrever. Mais vontade.

Artur tem quinze anos e na escola em que andava no ano passado e no outro ano e no outro antes desse, era gozado por alguns colegas. Sovado, pontapeado, esmurrado. Uma vez foi visto no chão, sem se conseguir levantar, com sangue na cara. Artur tem quinze anos e mudou de escola. Continua um menino calado, isolado, que puxa sozinho a sua mala com rodas e se enfia no canto oposto ao grupo de colegas. Os colegas da nova escola.

Na primeira aula de Física, o professor pediu aos alunos da turma do Artur que dissessem que estudos pretendem seguir depois do secundário. Chegou a vez do Artur.

- Quero ser médico, professor.

Mas o futuro médico manteve-se calado e afastado dos colegas nos intervalos, dia após dia, apesar de um ou outro terem tentado que ele se aproximasse. Ninguém lhe bateu, ninguém o tratou mal na nova escola. Ainda não, pelo menos.

Na semana passada, na aula de Inglês, alguns alunos apresentaram o trabalho que a professora tinha mandado fazer em casa.

O do Artur era sobre bullying. Não precisou de traduzir a palavra, que se enquadrou na mesma língua das outras; o Artur conhece-lhe bem o significado. A apresentação do Artur decorreu no silêncio absoluto, prendeu toda a turma. E terminou assim.

Do you think I enjoy being out of the group? Lonely?

Or do you think I'm shy? Or against my class mates?

Perhaps you think I'm awkward? Selfish? Feeling special?

No. I am only a boy who has a voice inside saying permanently: be careful. Be very careful.


- Mãe... no fim da apresentação do Artur, eu tinha um nó horrível na garganta; não chorei, mas estavam cinco meninas da turma a chorar...

A minha filha andou na mesma escola que o Artur e continua com ele nesta nova escola, desta vez na mesma turma. Hoje perguntei-lhe, ela respondeu: o Artur agora já se chega mais a nós, sim, havemos de conseguir, aos poucos vamos conseguir. Ele vai ficar bem, mãe.

Enquanto passava a sopa com a varinha mágica, pensei se um dia este futuro médico, doutorado em vítima de bullying, não irá por acaso salvar a vida a um dos cobardes que o sovaram.

20 comentários:

  1. Provavelmente irá. Sem a menor hesitação.

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    1. Também aposto que sim, Cuca. Pelo menos a humilhação por que já passou não lhe tirou a vontade de tratar de pessoas. É valente, o moço.

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  2. Se tal acontecer, fá-lo-á certamente com competência e dedicação - não como uma espécie de “vingança honrada”, mas porque não se sente mais vítima, se regenerou dos maus tratos infligidos pelos colegas e porque os verdadeiros heróis – aqueles de que não reza a história – não se alimentam do mesmo combustível que os cobardes. Prosseguem com a sua vida, consolando-se com os seus sucessos e superações e não com a fraqueza dos outros. Este menino tem demonstrado uma grande dignidade. Oxalá continue a ser inteiro, pois é isso que o torna tão especial.

    Um beijinho triste

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    1. Oxalá, sim, Miss Smile. Se ele conseguir ser grande assim, não recorrer à "vingança honrada" mas antes preferir a competência e dedicação, então talvez a história venha a rezar dele.

      Outro beijinho, mas mais alegre, tenho sabido que a cada dia ele está melhor, desde aquela aula de Inglês. :-)

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  3. Texto fantástico! Bom dia, Susana, e um beijinho!

    (tiro ao chapéu ao Artur! a força dele torna-o - sem dúvida - menos vitima e o elo mais forte desta história, ainda que não o saiba e ainda que, hoje, sofra com ela!)

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    1. Boa noite, Carla :-)
      Uma vez li num livro de Daniel Sampaio que há miúdos que inexplicavelmente, nas situações mais adversas, conseguem conquistar uma vida grande, boa, realizada e feliz. Talvez este seja um desses casos.
      Outro beijinho, Carla querida, e obrigada. :-)

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  4. Susana, se um profissional de saúde ou de outra área for competente, não faz qualquer diferença as pessoas, o público, que atende. Não me parece que seja questão relevante. E não falo em abstracto...
    Um relato triste, mas que é bom saber. "Ele vai ficar bem.", como disse a tua filha.
    Beijos

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    1. Também acho que sim, Isabel. Ele vai ficar bem e há de ser um bom médico, feliz.
      Beijos de volta.

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  5. Eu também sofri muito de bullying na escola, foram 6 anos horríveis da minha vida. Hoje sou uma pessoa revoltada e à mínima ameaça respondo logo com duas pedras na mão... penso que seja um "efeito secundário". Ainda tenho desejo de vingança, um dia esses covardes vão pagar por tudo aquilo que me fizeram passar. Sei que é errado pensar assim, mas penso que seja uma autodefesa que encontrei para mim mesmo.
    No meu blog falo muito sobre isso e escrevo muitas passagens pessoais.
    Obrigado pelo post. Nunca é demais falar disto, há sempre alguém que ainda vamos a tempo de ajudar.

    www.pensamentoseepalavras.blogspot.pt

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    1. Hélder, lamento tanto que tenha passado por isso! Imagino que tenham sido uns horríveis e longos 6 anos. Essa sua revolta é natural, mas penso que se conseguir encher o seu coração de alegria, se conseguir colher carinho dos que o amam, de forma a reparar pelo menos em parte os estragos que os maus tratos fizeram, talvez possa apaziguar a sua sede de vingança, libertar-se dessa dor. Desejo que consiga superar definitivamente esse passado. As pessoas que atormentam outras dessa maneira não merecem a nossa energia, são pessoas cobardes, pequeninas, pobres, parasitas.

      Já estive a ver o seu blogue, obrigada por o ter partilhado.

      Um abraço, Hélder, e bem-vindo!

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  6. Sabes bem como o Universo é inteligente. Um dia conto uma história (minha) igualzinha ao futuro desta história (do Artur).

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    1. Uvinha, sei exatamente que o Universo é inteligente, eu bem ando atrás dele a tentar entender um milionésimo de um milionésimo de um milionésimo, etc (repete mil vezes), e mesmo assim, muito pouco sei. Mas uma coisa já entendi, essa mesma que tu referes, e que posso reformular assim: a vida dá umas voltas mestras em ensinamentos para nós, pobres e meros mortais.
      Venha essa história, sou toda ouvidos (olhos).

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  7. Até eu chorei a primeira vez que li este excerto. Bolas!

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    1. Oh... é para chorar, mesmo. Detesto, abomino gente cobarde que maltrata os outros, abomino. Mas ao que parece, ele está a recuperar. :-)
      (e não é que tinha saudades tuas, querida Homónima?)

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  8. Tanto que lutamos, dia a dia, para que eles não agridam ninguém... Tão absurda, essa violência. É bom que se fale. É bom que a escola debata o tema. Felizmente que a disciplina de Inglês tem os problemas dos adolescentes como uma das áreas temáticas a abordar.
    Haja quem os oiça e os entenda!

    Beijos, Susana.

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    1. Sabes o que te digo, Maria? benditas professoras (e professores). Alguns são de facto admiráveis e impulsionam o mundo do s miúdos. E portanto o nosso, dos pais.
      Obrigada. :-)
      Um beijinho.

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  9. O Artur parece ser um rapazinho muito bonito, espero que nunca mais seja vítima de bullying e que possa ajudar a que outros não o sejam.

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    1. Também sinto que é essa a linha dele. "poder ajudar a que outros não sejam"
      É bom ver que ficamos aqui tantos a torcer por ele.
      Um beijinho, redonda.

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  10. Escreve-se tanta coisa sobre o bullying, e está aqui um texto sobre o assunto que devia ser lido pelo maior número de pessoas possível. E não, não estou a ser tendenciosa por gostar muito de ti, acho-o mesmo eficaz. Sem nada a mais nem a menos.
    Perco um bocadinho as estribeiras (e sim, isso também não é solução) com esse tipo de valentões que, normalmente, só o são em grupo, em manadas de muitos contra um. Acho o bullying o expoente máximo da cobardia.
    Impossível não se sair daqui a torcer pelo Artur, e por todos os outros Artures que continuam por aí a ficar marcados no corpo e na alma, muitas vezes, para o resto da vida.
    Beijinhos, Susana.

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    1. Oh... Cláudia, uma vez mais, muito obrigada pelas tuas palavras que são beijos na minha alma. Eu também gosto muito de ti.
      Essa tua expressão é perfeita "...bullying o expoente máximo da cobardia".
      Obrigada por torceres pelo Artur. A minha filha vai contando que as melhoras são visíveis de dia para dia. "Até os rapazes", diz ela, estão a acolhê-lo e a ser amigos dele, "os rapazes são piores, mãe, tu sabes". Esta história parece que vai acabar bem. :-)
      Quem me dera outras também.
      Beijinhos, Cláudia querida.

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