29/03/2016

Constelação

Admito que me apaixonei por um livrinho de poesia que tomei de um trago e depois de muitos, um de cada vez, ainda não me saciei. Ando com ele. Primeiro passeei-o dentro da mala durante muitas semanas. De vez em quando, à sorrelfa de alguma coisa séria, retirava-o, abria-o na página com vontade de ser lida e tomava o poema. Logo uma torrente de palavras me enchiam a cabeça de sons e alegrias cruzadas ou então de ecos vibrantes, logo me enchia de uma vontade para discorrer uma coisa nova qualquer. Fechava o livro com força; dentro da mala aí, silêncio! Depois de semanas nesta marmelada coada pela luz da tarde, eu tinha de acabar com aquilo. Tentei zangar-me e tirei-o da mala;  levei-o para o meu quarto. Ficou de castigo no topo da pilha mais alta na estante de parede, psiu, sossegado aí. Passaram mais semanas por ele e eu também por ele, eu e paixão por ele, nada. E como nada, julguei-me livre e convidei para jantar a família da minha irmã, de uma irmã, com marido e com dois sobrinhos grandes. No fim do jantar, enquanto corria o café, ouvi-o chamar baixinho lá do castigo, está bem. Fui buscá-lo mas avancei devagar pelo corredor comprido. Retirei-o da pilha mais alta na penumbra do quarto e ele logo se me aconchegou na mão, quieto! De caminho, apanhei os óculos da terceira idade que já preciso de usar muitas vezes e entrei na sala com ele aninhado, trago-o pelo beiço. Sentei-me no meu lugar, abri-o devagar e logo um poemazinho surgiu. Estava vivo. Toquei-lhe as poucas letras, sossega lá tu. Pedi silêncio às pessoas, li. Lendo, ouvi-me cantar, ou foi sussurrar que ouvi, uma voz saiu de mim que não é a minha. Continuei com a voz esquisita e não minha e lembrei-me que ainda não houvera antes enformado poesia para fora, ai mas o que é isto. Eles pareciam não notar (não notavam). Em silêncio ouviram e eu li outro, vivo. E veio outro aos meus lábios (na tal voz, muito estranho) e depois prometi que era o último sem cumprir três vezes. Deitei vários poemas como se beijos falados soprasse, mas isto é uma tolice (só se fosse poesia é que não). Larguei-o ali, abandonei-o, mudámos de assunto.

O livrinho de poesia ficou sobre a mesa desse jantar. Saíram as pessoas, saíram os copos e as chávenas de café, saiu a toalha. Vieram outras pessoas, outros livros, outras conversas e o livrinho continua ali. Encontramo-nos sempre que à mesa me sento, olhamo-nos. Toco a sua capa sem o abrir, suspira (suspiro). Se o abro encontro um poema vivo. Pode ser grande o poema ou pequeno. Está vivo. Abro-o agora. Pede-me para o pôr aqui, para ver quem passa; está bem.

(este livrinho abre-me a mim, hoje volta para o quarto)

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Ideal: I deal

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o peso do inútil no meu peito

o peso no inútil do meu peito

o peso do inútil do meu peito

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METAMORPHOSIS

You become what you feel.


Sónia Balacó, in Constelação

20 comentários:

  1. Agora fiquei com uma curiosidade....
    Tenho de ir procurar esse livrinho :)
    Boas leituras
    Beijinhos

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    1. Mafy, podes encontrá-lo aqui:
      http://amariposa.net/livros/constelacao/

      (não sei se se pode encontrar num outro ponto de venda)

      Obrigada, Mafy, beijinhos.

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  2. Susana, e não achas que devias pôr aqui uma foto catita do livro para ver se o conheço?
    Beijos

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    1. Na verdade, Isabel, é a ti que o devo. E é a ti que agradeço.
      Foi uma descoberta fascinante para mim. :-)
      Um beijo e bom resto de semana.

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  3. ...esse teu "livro do desassossego" tem sido uma excelente companhia, é só ler este post, estavas mesmo inspirada!
    Caíste, mais uma vez, caíste em poesia, adoro ler-te assim caídinha :)

    (obrigada, livro que desassossega a Susana desta maneira)

    Beijinhos e um resto de semana cheio de desassossegos, daqueles que nos fazem sentir muito, e de uma maneira tão boa que nos transformam, ou melhor, arrancam o melhor de nós lá das profundezas e trazem-no para a luz do dia, e também assim, em forma de post :)

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    1. Ah, Cláudia, que pena não me ter lembrado de lhe chamar desassossego! É isso mesmo que ele é. Quase enervante de tão simples e tão bom.
      É intrigante como há livros, ou quadros, ou filmes que se nos tornam tão poderosos, nos enchem sei lá, de luz! :-) E pessoas, também há pessoas assim. Mas isso já não acho intrigante.
      Um beijinho, minha querida Cláudia, e um resto de semana fascinante. :-)

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  4. Vou seguir o link para procurar o livro, também fiquei curiosa.
    E entretanto vinha perguntar como é a história, de onde veio o nome "Penela"?
    um beijinho
    Gábi

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    1. Conto também aqui a história, para os meus queridos leitores e leitoras saberem :-)
      Consta que quando D. Afonso Henriques conseguiu tomar o castelo da terra (que hoje é Penela), disse, vitorioso, para o seu companheiro de armas, ou conselheiro, que ia a seu lado: "Já tenho o pé nela!"
      Ora "pé nela" deu "Penela". Que antigamente se escrevia com dois "ll" Penella.
      :-)

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  5. Obrigada :)
    Gostei muito do meu mini-passeio pela Páscoa (sexta e sábado) e estou a pensar em voltar àquela zona :)
    um beijinho

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    1. Querida Gábi, então quando lá voltares, sugiro assim: almoças no Museu da Chanfana uma chanfana :-) em Mirando do Corvo, que é logo a seguir a Penela (ou antes, para quem vem do lado de Coimbra), depois visitas o Parque Biológico que tem animais domésticos da quinta e animais selvagens (se tiveres crianças e as quiseres fazer felizes, leva-as) - foi lá que vi os meus primeiros lobos:
      http://www.quintadapaiva.pt/

      (e depois conta como foi)
      Outro beijinho.

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  6. Os poemas precisam disso, de serem amados para ficarem vivos. Ao ler este teu texto pensei em com seria bom ouvir o poema a sair-te com som da boca, assim vivo, para nós. Que tal? Fico à espera. :)

    Boa noite, querida Susana.

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    1. Concordo, Teresa. E mais: acho que cada poema é um ser destinado a existir. E é ele - o poema - que escolhe o seu poeta. :-)

      Sobre esse pedido... bem, sei não. A poesia deve ser lida por quem sabe lê-la. E eu não sei. Apenas invento. Mas vou pensar, se o fizer, é para ti. Já é a segunda vez que dizes querer ouvir a minha voz. :-)
      Boa noite, querida Teresa.

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    2. Claro, gosto de vozes assim, soltas... :)

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  7. Poemas sentidos são lidos e ouvidos com alma, saem cá de dento com uma força, com um alerta especial para o som das palavras. Não conheço o livro. É assim, neste passa-palavra, que se constroem redes, neste caso, de afinidades poéticas. Infelizmente, conheço mal a poesia. Só a mais óbvia.
    Já a chanfana... é-me muito querida, há anos.
    Beijinho, Susana.

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    1. Precisamente, Mia. Os poemas precisam de quem os escreva e de quem os leia. Isto digo eu, que na maioria das vezes não entendo a poesia... :-) Mas se és como eu, Mia, uma principiante na poesia, talvez também gostes deste livro. o link está lá em cima e dá para encomendar.
      A chanfana descobri-a há cerca de um ano, eu não sou muito de apreciar carnes, mas dessa gosto, aliás adoro. :-)
      Um beijinho, Mia.

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  8. No que à poesia diz respeito considero-me uma iletrada, Susana. Talvez porque nunca tive nenhum caso com um livro de poemas, Susana, como tu.
    :P

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    1. Querida Ava, se quiseres ter um caso com este livro, vai em frente. O livrinho aguenta bem muitos casos, tenho a certeza. :-)
      Um bom dia para ti.

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