12/04/2016

As Pequenas Memórias de José Saramago

- Já lhe deixei lá o livro.

A dona Esmeralda devolveu-me o livro.

- Já vi. Então, já o acabou.

- Sim. Mas olhe que aquele final não tem pés nem cabeça, digo-lhe já!

A dona Esmeralda diz que o final não tem pés nem cabeça e está a parecer-me zangada. Comigo.

- Ah, não?...

- Então alguma vez?! Tem algum jeito?! Está bem, pronto, é a infância dele, tudo certo, cresce, lá com os pais e tudo, muda de casa, muda de rua, eu até conheço uma das ruas, mas o final.... ah, menina! Muito estranho, aquele final! Ficou assim, assim (as mãos ilustram o assim assim com muita veemência, por cima da sua cabeça) sem jeito, pronto! E olhe que ele era muito pobre, a família, tudo. Muito pobre.

A dona Esmeralda abana a cabeça e continua a limpar o chão da cantina enquanto diz muito pobre, a família, tudo, muito pobre.

- Sim, muito pobre. Mas já viu, dona Esmeralda, uma pessoa nascer assim, dormir com as baratas e depois, um dia, ganhar o prémio Nobel?! É um prémio muito importante, é O prémio!

- Eu sei, eu sei.... por isso é que eu digo... olhe, ele havia de ter chegado aos dezoito, dezanove anos, arranjava uma namorada e assim. Isso é que era! E depois então acabava o livro! Com uma namorada! Não era isto... só vai até aos dez, onze anos... é a infância dele, está certo.... mas o final não tem pés nem cabeça!

Desta vez eu não sei mesmo o que dizer, só sei ouvir. Hesito, ela não: continua a limpeza que tinha começado, é vigor, é determinação. E vai continuar.

- Mas era um maroto, ah isso era! Sabe que ele via as pernas das pessoas a passar na rua, lembra-se dessa parte? Vivia assim naqueles quartos com as janelas em cima, era uma cave, uma espécie de cave, via as pernas das pessoas... e lá se metia com uma moça ou outra... pronto, mas só isso.

A dona Esmeralda encolhe os ombros, eu continuo ali especada, a chávena vazia na mão.

- Dona Esmeralda, vou trabalhar. Até amanhã.

E de repente ela endireita-se, parece ganhar ânimo. Eu também. E remata.

- Mas quer dizer, gostei, pronto. Gostei do livro. Um homem daqueles... gostei. E olhe, logo à noite já começo o outro que me emprestou, pela capa acho que vou gostar.

(o outro é um livro de contos da Isabel Allende que eu li há quase trinta anos; e a seguir acho que o melhor é passar diretamente para A Amante Holandesa)

11 comentários:

  1. Pois. Pelo menos não devolveu e disse que não conseguiu passar do meio, como fizeram comigo, 3 vezes consecutivas.

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    1. Uma das razões pelas quais eu gosto tanto da dona Esmeralda é o facto de ela ser absolutamente franca quando dá opiniões.

      Mas querida Loira, eu espero que não deixes de emprestar os teus livros por causa dessas 3 devoluções, tu és uma leitora tão assídua (não me esquecerei dos teus 72 livros em 2015!) que de certeza há muita gente por aí que pode beneficiar das tuas leituras.
      :-)

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  2. A Dona Esmeralda tem uma determinação invejável. Ando para aqui emperrada num livro, não ata nem desata, o Viver para Contar do Gabriel Garcia Marquez, perco-me em tanto pormenor e não consigo avançar. Gostei tanto dos outros...

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    1. Quando isso me acontece, paro de ler. Decido que para mim o livro acaba ali. Custa um bocado fazer isso, é verdade, mas o nosso tempo é tão precioso e há tantos milhares de livros para ler... :-)

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  3. Como simpatizo com essa Dona Esmeralda franca e inspiradora de tantas histórias à solta...

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    1. Ainda bem que falas nisso, luisa. Assim digo-te já de rajada que eu também simpatizo contigo. E muito. :-)
      (toda a gente gosta da dona Esmeralda, ela é mesmo especial)

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  4. As Pequenas Memórias de José Saramago(que não li)demasiado inocentes para a dona Esmeralda? Mas estou mesmo contente por ter sido persistente e não ter desistido (talvez na expectativa do surgimento da tal namorada que nunca apareceu). Também não conheço esse livro de contos da Isabel Allende, temo que a dona Esmeralda se decepcione de vez com os livros, talvez devesse estar já a ler "A Amante Holandesa"... Isto é delicioso, Susana, obrigada por partilhares.

    Beijinhos :-)

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    1. Acho que a dona Esmeralda precisa de um livro que a faça viver um sonho ao qual nunca se deu o direito nem de imaginar ao de leve.
      Também admirei a persistência dela. (eu fui-lhe dizendo, por causa da demora na leitura, que ela podia parar e que não se sentisse na obrigação de continuar, mas ela...)
      Beijinhos, Cláudia. Obrigada eu pela tua contribuição.

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  5. Suspeito que a dona Esmeralda vai é gostar de ler as "grandes" memórias de Lady Chatterley...

    Beihjinhos Susana, como me diverti com o teu post!

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    1. Há ali um agá muito giro a cumprir bem a sua função. É a minha vingança por não deixares comentar o bei(h)jo do dia. :)

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    2. Muito querida Teresa, um beijo com agás é um beijo aspirado ou suspirado, o que é o mesmo que dizer que é mais valioso. Eu vi logo que era essa a tua intenção. :-)
      E eu às vezes dou folga aos comentários, eles gostam :-)

      Essas grandes memórias de que falas eu não li, mas vou registar caso seja preciso "alimentar" a dona Esmeralda com mais e mais livros.

      Um beihjinhho, Theresa, e um excehlente fim de sehmana.
      (ficou um bocado bojudo, mas a intenção é boa)

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