Passa pouco das duas horas da tarde, já toda a gente almoçou. A dona Esmeralda aparece-me no gabinete, coisa que muito raramente acontece.
- Então?... Está tudo bem consigo?
- Está sim, dona Esmeralda, apenas me dói a cabeça.
- Quer uma aspirina?
- Já tomei, obrigada. Agora mesmo.
- E café? Não tomou café?
- Não, por acaso não tomei café.
- Então venha, eu pago-lhe um café.
Pela primeira vez em mais de uma década tomei um café com a dona Esmeralda e foi ela a convidar. Enquanto tira os dois cafés da máquina, o seu é normal, menina? é sem açúcar, se faz favor, vejo-lhe no braço o grande penso branco que ostenta desde que se queimou no forno industrial, há dois dias. O penso estende-se do pulso ao cotovelo.
- Está melhor do braço, dona Esmeralda?
- Olhe – e exibe o penso – está assim como vê.
- Só vejo o penso...
- Pois, só vê o penso... mudo-o todos os dias. Estes pensos são muito bons, meto os braços na água e nada, não entra nada. A cabeça do homem é espetacular, do homem quer dizer, de quem inventou isto.
- Pois, pode ter sido uma mulher, não sabemos.
- Pode. E olhe que o penso não deixa mesmo entrar água nenhuma, está muito bem feito, é espetacular. Só que custa muito a tirar, sabe, à noite quando o tiro tem de ser à bruta, senão não sai.
Quando tirou da máquina o segundo café, veio sentar-se ao meu lado no banco corrido junto à parede, feito com metades de paletes.
- Eu gosto de me sentar um bocadinho e conversar um bocadinho - respondeu a dona Esmeralda à pergunta que não fiz.
Depois continuou.
- Quando o meu marido era vivo eu nem podia andar com moedas.... ele chegava a casa, já lá vão quase seis anos que ele morreu, menina, chegava a casa e tirava as moedas do bolso, punha-as todas alinhadas em cima da cómoda, todas alinhadas, e contava-as (a dona Esmeralda conta moedas no ar, com o dedo). Depois eu ia limpar o pó e assarrapava-lhe uma ou duas... mas daí a bocado já o ouvia..... Eh!! havia aqui mais moedas!! já tiraste moedas!! E eu dizia-lhe que não, que tinham caído quando andava a limpar o pó... mas menina eram só vinte cêntimos que eu tirava, ou assim, não era mais...
- Mas a dona Esmeralda não tinha o seu dinheiro?!
- Tinha, mas ia para o banco, era todo para o banco, não podia andar com nada. E às vezes apetecia-me ir à rua tomar um café, para isso é que era as moeditas... (suspira)
Lembro-me bem de quando o marido da dona Esmeralda adoeceu e depois, uns meses depois, morreu. Vi-a sofrer durante muito tempo. Ela amava o seu marido. Vestiu de preto o corpo e a alma durante alguns anos e só tirou o luto do corpo a mando das filhas e a custo. Olho para ela e vejo uma sombra nos seus olhos escuros. Não digo nada. Ela acaba de beber o seu café e amachuca o copo de plástico.
- Sabe – continuou, enquanto se lhe perdia o olhar para além dos vidros que nos deixam ver os carros estacionados lá fora – eu agora vivo mais, deus me perdoe. Vivo mais, menina.
Quando me sentei à secretária e pensei que queria escrever este post, notei que me tinha passado a dor de cabeça.
Susana, saber das dores dos outros e senti-las pode ajudar a compreender e a balizar as nossas.
ResponderEliminarBom fim-de-semana!
Beijo
Ou uma conversa despretensiosa. Às vezes a mim basta-me :)
EliminarSem dúvida que sim, Isabel. As outras pessoas são a nossa maior fonte de aprendizagem. Se quisermos, claro. :-)
EliminarBom fim de semana para ti também e outro beijo de volta.
As conversas despretensiosas são, talvez, as que carregam mais sabedoria, sal. Sem saberem. :-)
EliminarBoa noite Susana,
ResponderEliminarA D. Esmeralda é uma antologia, uma seleta cheia de narrativas muito ricas. Ou até um compêndio filosófico, daqueles que não carece de revisão científica.
Beijinho e bom fim de semana,
Mia
Olá Mia,
EliminarMas que belo retrato fazes da dona Esmeralda! E assertivo.
Beijinho para ti também e bom fim de semana. :-)
Querida Susana, a mim também me passou, quando o li.
ResponderEliminarSou fã da dona Esmeralda emancipada. :)
Bom fim-de-semana.
Também te doía a cabeça, Teresa? Não será das belezuras imensas que te rodeiam? :-)
EliminarUm dia conto à dona Esmeralda que tem uma fã assim bonita como tu. Acho que ela nem vai acreditar. :-)
Bom fim de semana, querida Teresa.
Chegou-me via internetes airlines o som de algo familiar. Sim, essa. E a Dona Esmeralda, claro, que agora vive muito mais e melhor com toda a certeza. :)
ResponderEliminarBeijinho, Susana, tem um bom dia.
Um som voador, portanto. :-)
EliminarSim, ela vive melhor, querida Ava.
Outro beijinho e um ótimo fim de semana.
conversas analgésicas :)
ResponderEliminargostei pra lá de tanto.
E eu gostei para lá de tanto desse adjetivo "analgésicas" para conversas destas. Isso quase me instiga a escrever um post... analgésico também.
Eliminar:-)
Gostei muito. E gostei de te descobrir. Vou passando com toda a certeza. Miss Missguided
ResponderEliminarE eu gostei do teu comentário.
EliminarE do teu blogue também, já lá fui tomar um café.
Bem-vinda, Miss Misguided. :-)