Escrevo, polvilhada num texto
sério, a mesma expressão uma e outra vez e mais outra. Tantas que, após um
certo número, a expressão se escreve autónoma, isto é, ao comando fica ela, de muito
se repetir ganha vida própria, sabe o caminho. Por instantes, confiando à
expressão a condução do trabalho, a minha mente solta-se e vai, de novo, aterrar
no troço de estrada onde tentei encaixar uma vida sonhada, repetidamente. O
troço de estrada tem uma ciclovia vermelha que parece real e lhe faz a
companhia que o tráfego lhe nega, pois ali escasseia. A ciclovia vê-se, porém, também deserta: toda
a infraestrutura ali estendida ao sol foi deixada às contrações sazonais do
frio e do calor, sem aparente serventia, a tomar do ar costeiro as salinidades
e as brisas sem que alguém a tome por sua. Eu, está visto, quero-a. Sou de
lugares vazios, abandonados, rejeitados pelas massas, sou de espaços livres. No
fim do troço de estrada há uma curva que convida a contornar a rotunda, a curva
servindo de morada à única loja, que parece uma barraca de feira, é ambulante. Uma
das últimas vezes em que lá passei, parei. Para apanhar um punhado daquele lugar, fazê-lo meu, entrei
na loja, que é de cestos de praia, de baldes e forminhas, de pulseiras com
pedras para todos os signos, de espanta-espíritos, de livros de bolso com as
capas curvas da humidade e descoradas do sol, de cremes protetores de muitos índices, de panos com palmeiras estampadas a esvoaçar pendurados, de toalhas de praia com ocasos longínquos de vários tons, de chapéus de
sol às riscas e eu destes vou e compro um, azul e branco, para condizer com o
mar. Assim me fiz dali pertença, assim introduzi uma palavra minha no lugar, podia
ser bom dia, que deixei colada ao
verso da capa curva de um livro. Talvez tenha sido por isso que, quando lá quis
voltar num verão seguinte, a loja não estava. Ninguém tomou a ciclovia, ou mesmo
sequer o troço de estrada estendida ao sol, oferecida às salinidades e às
brisas costeiras, e a loja mudou-se. No seu lugar a poeira escurecida no chão, sombra
da vida que ali não vingou, uma vontade em cinzas. Na curva da estrada deserta,
batida a vento marinho, sinto o arrepio nos ossos, estremeço, tantas vezes para aqui chamada, forço-me a emergir à superfície, os meus dedos esperam-me; passaram segundos, a expressão
repetida polvilhada no texto sério está pronta e eu primeiro inspiro fundo,
depois expiro e continuo a trabalhar.
A mim deu-me para o suspiro.
ResponderEliminarBoa noite, Susana, que fui onde me levaste.
Uma das belezas de ler, e de escrever, é irmos juntos aos lugares que só existem na cabeça de alguém. (mas este existe mesmo :-) e não deve estar muito longe de ti)
EliminarQuerida Teresa.
...isto num intervalo de texto (sério), olha se não fora.
ResponderEliminarAH, bea, às vezes lê-se por aqui muito disparate... é uma especie de purga dos textos sérios da vida :-)
EliminarQue maravilha de texto, querida Susana. Com as tuas palavras, leva-me aonde quiseres que eu gosto :)
ResponderEliminarUm beijinho e um domingo feliz :)
E eu - escusado será dizer - gosto tanto que venhas comigo, querida Miss Smile!
EliminarUma semana feliz e um beijinho para ti :-)
partilhas essa ciclovia vermelha connosco e vou já buscar a bicicleta. gosto, onde nos levas :)
ResponderEliminarflor, diz-me lá se não podíamos fazer ali na ciclovia vermelha ao vento agreste que sopra por entre os cardos, uma investida de guerreiras em bicicleta e roubávamos outra vaca com muito estilo... (ou não fomos nós que roubámos a vaca?... ai já não me lembro...)
Eliminar:-)
foi a Cuca, pá!
Eliminar(bem... eu tentei surripiar-ta... mas era a brincar... cof... cof...)
exatamente! e eu esquecida de que no meio de tudo aquilo fui a vítima! bem me parecia que faltava qualquer coisa grande e castanha na varanda...
EliminarPois eu gosto quando te nascem os posts durante os pensamentos que correm soltos enquanto fazes as limpezas e gosto quando interrompes a seriedade da superfície e dás estes mergulhos que te levam onde te apetece a nadar em estilo livre e nós a seguir-te. Sabes, gostei mesmo muito destes últimos três posts, mesmo daquele que achaste patinho feio que cá para mim é um cisne. :-)
ResponderEliminarEste post esteve mesmo mesmo para ir para o caixote do lixo, que engraçado. Mas depois lá o meti na montra, queria expurgar esta memória que me está sempre a voltar. (andei um dia inteiro com ele às voltas) :-)
EliminarQuerida Cláudia, muito obrigada.
Desejo-te uma ótima semana.
Primeiro tenho de emendar uma coisa ali no comentário, aquele "onde" deve passar para "aonde".
EliminarDepois quero dizer-te que ainda bem que este post veio parar aqui, parece que tenho tendência para gostar muito dos posts que estiveram prestes a ir para o lixo. Não ponhas coisas destas no lixo, por favor, Susana :-).
Uma ótima semana também para ti.
Ainda bem que o post sobreviveu aos meus ímpetos auto-destrutivos. Nem preciso dizer porquê.
EliminarIsto dos blogues às vezes é bom, muito bom.
Um abraço nessa tua alma luminosa, Cláudia.