Acabo o meu trabalho já depois da uma hora da madrugada mas
como amanhã é sábado, aliás hoje é sábado, e eu quero escrever, ponho-me a
escrever. Não é sobre os temas medonhos da atualidade, é sobre coisas
pequenas que escrevo. Desta vez foi um certo apaziguamento de alma que se me meteu hoje (ontem) no supermercado.
Geralmente eu tenho medo de ciganos. O medo é na
sequência de uma oferta para uma tareia completa que me fizeram certa vez, eu uma,
se não contarmos com a minha filha que era pequena, eles quatro e todos bem gordos
(eu também já fui mais magra) e unânimes nas variantes que a tal oferta
compreendia, declamadas em muito alto som enquanto me expunham alternativas, filha
queres assim ou filha assado como é que preferes. Dessa vez safei-me, mas aconteceu perder o empenho que tinha em corrigi-los quando me passam à frente na fila do
supermercado.
Hoje, quer dizer, ontem, estou eu admirando a cor dos
pimentos e os folhos das alfaces mas decido-me pelo tomate com rama que me encanta
com o seu cheiro verdinho, quando por mim passa isto assim, gritado ao telefone: aquilo é o melhor cigano que deus pôs ao
mundo, ‘tá lá a trabalhar p’ra ela e dá aqui p’ra nós todos, ela diz que faz’a
lembrar o mê pai que deus tem!
Agrada-me particularmente o faz’a lembrar e tento
memorizar a frase (escrevo outra vez no presente do indicativo). Mas não preciso
de me esforçar muito, que a pessoa do outro lado da linha não
percebeu bem a mensagem e dá-me uma ajuda sem saber, de modo que a mulher deste lado repete, gritando, ela diz que
faz’a lembrar o mê pai que deus tem!
Fala, orgulhosa, de um filho que faz boa figura num trabalho recente e ali, no supermercado, leva duas: uma de fralda que vai sentada no cesto
do carrinho de compras, a outra de uns sete anos a saltitar em redor. Mas o
filho, ainda a oiço repetir, é o melhor
cigano que deus pôs ao mundo, aquele mê filho!
Quando termino a recolha de produtos e me aproximo
da caixa, meto-me numa que é designada prioritária mas tem só uma pessoa e eu desejo que não venha ninguém prioritário e ponho, um a um, os
produtos no tapete de compras até o encher. Enquanto faço isto estou a pensar
numa outra coisa melhor e simultaneamente uma determinada gritaria tenta entrar-me nos
ouvidos, mas a tal coisa melhor absorve-me completamente. Acabo a
tarefa e endireito-me, esperando a minha vez de começar com a
conversa do tem cartão de cliente, quer número de contribuinte, quer saco.
- E depois uma pessoa tem que esperar na caixa
prioritáriaaa! – o aaa triplicado é para demonstrar a gritaria que finalmente me entrou nos ouvidos: temos a cigana
aqui com as suas compras e as duas filhas, a que usa fralda está, entretanto, ao
colo.
- E depois uma pessoa tem que esperar na caixa
prioritáriaaa!
E isto é para mim.
- E depois uma pessoa tem que esperar na caixa
prioritáriaaa!
- Está a dizer isso para mim, não está? – virei-me para
trás.
- Eu estou a dizer isto para toda a genteee! Esta caixa é
prioritáriaaa!
Por um lado esta cigana não me está a meter medo porque é só
uma e tem duas filhas pequenas (embora o seu corpanzil faça dois ou três do meu),
por outro lado ela tem razão. Tem direito a prioridade na caixa onde eu já pus
os meus produtos todos e não estou grávida nem uso bengala e ainda por cima
estava a pensar numa coisa melhor.
- Tem razão, pode passar – afastei-me, saí do corredor para trás,
removi o meu carrinho já vazio deixando o caminho livre, que é de qualquer modo
apertado e, como não sou tão boazinha como pareço e fiquei indignada por ela
não se dirigir a mim com bons modos em vez de se pôr ali aos gritos para o ar,
disse: pode passar, se conseguir.
Mas conseguiu. Conseguiu e gritou para a miúda mais velha: mas p’ra que te quero euuu? Só p’ra te dar
de comeeeer? – incentivando-a assim a retirar as compras do seu carrinho e
a colocá-las na nesga de tapete que estava livre, a miúda precisou do seu tempo para ir pescar ao fundo do carrinho as últimas coisas.
A cigana entreteve-se a discutir a promoção de um óleo, ou então era um
sumo, ou não vi o que era, abanou o folheto que levava em frente da cara do rapaz da caixa, a bebé
ainda ao colo, não nos esqueçamos da bebé, isto está em promoçãooo!, vira o folheto do outro lado, e isto tambééém! e eu espero.
Porém no fim, quando conseguiu terminar de arrumar as compras nos sacos e fazer
o pagamento com todas aquelas notas que lhe saltaram da carteira, após ter passado a bebé para o colo da outra miúda, disse-me, sem
gritar:
- Obrigada, minha senhora.
E é daqui que levo, assim, um certo apaziguamento na alma.
Tenho encontros imediatos com famílias ciganas quase todos os dias. Num computo geral, não posso dizer que são um praga, mas são barulhentos, indisciplinados e fazedores de lixo de primeira água. Bem conversados até entendem e aceitam as situações . Ó dônãããã...
ResponderEliminarTal e qual, Susanininha :) :) :)
Pois ordeiros eles não são, não. Eu, apesar de preferir o supermercado sem eles, constato que têm uma coisa que em nós não se vê na mesma medida: são unidos.
EliminarUm beijinho, querida M D :-)
Gosto de ciganos. Não é só por terem em comum com os piratas o fascínio pelas argolas de ouro nas orelhas e os lenços na cabeça. Uma parte de mim sonha com fogueiras ao luar e viagens em carroças de burro e a música, céus, como é bonita a música que fazem.
ResponderEliminarEu também gosto muito das argolas e uso-as quase todos os dias, embora normalmente de prata, que de ouro custam-me muito dinheiro.
EliminarMas não lhes conheço a música, esse viver belo e livre... infelizmente conheço-lhes muito mais a agressividade.
(mas foi tão bom o quadro que aqui pintaste, Cuca, obrigada)
Eu tenho um certo fascínio por ciganos, como a Cuca, mas as experiências não são lá grande coisa.:) Já vi algumas cenas feias, embora nenhuma se tenha passado comigo. Gosto de os ver acampados e em caravana pelas estradas, com carroças coloridas a sobressair na paisagem. Têm uma cultura muito diferente da nossa, são mais emotivos, alegres, aventureiros, astuciosos; e sabem ler a sina, o que eu acho delicioso... mas nunca li.
ResponderEliminarEssa cigana foi bem tratada por ti e correspondeu. Às vezes é só isso, parece pouco, mas é o princípio de tudo.
Um beijinho, querida Susana, e um bom Domingo.
Foi precisamente pro isso que me senti apaziguada. Mesmo com as diferenças culturais e outras, podemos criar uma ponte entre seres humanos, se nos respeitarmos. Na maioria das vezes, pelo menos. Já tive uma cena difícil com ciganos e eu não os desrespeitei, apenas reclamei por eles não me terem respeitado a mim. Culturas muito diferentes encaixadas numa mesma sociedade é sempre um rastilho em potência, e não sei se será simples arrefecer ânimos que se levantam constantemente uns contra os outros, vejam-se os acontecimentos dos últimos tempos, os atentados. O que incomoda tanto os extremistas na nossa sociedade? se eles gostam de se matar para terem o céu ou lá o que é, porque não o fazem sem levar gente de outras culturas atrás? Em que medida é que os nossos valores os fazem sentir tão fracos que se querem fingir de fortes e tornam-se monstros?... Ah, e de repente esqueci-me que não estou na esplanada contigo a conversar sobre a vida.
EliminarUm bom domingo também para ti e um beijinho, querida Teresa.
Não sei, eu nem desgosto deles. Desde umas garotas ciganas que se punham à porta da escola só para ver as minhas botas bicudas - e um tanto pirosas -, aos ciganos sempre muito penteadinhos a dar-me a novidade, "eu moro num prédio". Se me batem à porta sou incapaz de não dar esmola; mas, se as encontro pela rua ou na entrada do super, nego. E foi o que aconteceu um destes dias. Depois a cigana andava no interior do super e estendeu-me a mão com moedas para eu ver se chegavam para um frango que tinha na outra. Acenei que sim. Juntámo-nos na caixa e afinal ela e a filha tinham mais coisas e o dinheiro não chegava. Pus o resto (era muito pouco), tive pena de tanta coisa na mão e dei-lhe o meu saco das compras suplente. Era muda a cigana e mal sabia contar o dinheiro. Ainda hoje estou arrependida de não lhe ter dado esmola à entrada.
ResponderEliminarBom Domingo
Que linda história, bea. Muito obrigada por a teres contado.
EliminarNão deste esmola à entrada mas deste à saída e deste-lhe o que ela precisava, incluindo o saco. Preencheste a falta à cigana e agora presenteaste-nos com este teu testemunho, que gosto tanto de ter aqui. Uma vez mais, obrigada.
Um bom domingo também para ti e um beijinho.
A mim , irrita-me sobremaneira a imposição dos direitos. irrita-me a filosofia que subjaz a todos aqueles que, em grupo, desafiam todos os outros, de modo a que não tenham quem lhes faça frente por medo das ameaças, são gregários, daí lhes vem a força. resguardam-se em diferenças, tradições e culturas;os deveres e as regras são para os outros. muitos, alimentam-se de subsídios que lhes caem no colo, sem nada fazerem de útil para a sociedade. não estou a falar de ciganos. mas também.
ResponderEliminarSusana, esqueci-me de dizer bom dia, e de desejar um ótimo domingo.
Eliminarbeijinhos,
Mia
De facto é essa parte da agressividade que a mim também incomoda e até ofende. Enquanto as culturas se mantiverem puras e quiserem conviver dentro da mesmo lei, há choques, creio que é inevitável. É aqui que entra a tolerância. A bem da paz. Apesar dessa questão dos subsídios que, se para uns são curtos, para outros são o estímulo para a parasitação na sociedade e tolerância para isto é que é mais difícil.
EliminarUm ótimo resto de domingo, Mia, beijinhos de volta.
ja que o tom é de desabafo, assumo que gosto dos ciganos da Cuca. dos outros, já tive de tudo.
ResponderEliminaro primeiro cigano que conheci, sentou-se na minha carteira (estava eu na terceira classe), durante o tempo que esteve na aldeia, porque - segundo palavras do professor - eu teria mão nele (era uma aluna "feroz", por aqueles tempos). lembro-me de um teste, em que ele tentou copiar por várias vezes e eu, irritada, não deixei (naquela altura, tal façanha, era para mim quase pecado). todos os miúdos tinham medo dele, era mais alto do que nós e mais velho, mas eu, talvez porque tinha irmãos mais velhos e sabia que a dor de uma chapada seria sempre menor à teimosia de uma atitude (muita chapada levei eu do meu irmão, jesus...), tratava o rapaz sem medo e possivelmente com mais respeito que o próprio esperava. passou a adorar-me, no seu jeito cigano bonito e eu a tratá-lo como a um irmão mais novo, que não tinha. a coisa correu bem e foi bonito.
de tudo o que se possa dizer, bem ou mal, sobre os ciganos, para mim, o que não lhes aceito, mulher que sou, é o desvalor que continuam a dar à educação/formação, entenda-se/, especialmente das raparigas. e a condescendência de quem sabe e permite, enoja-me de igual maneira.
A questão da educação/formação cai dentro da intenção deles em manter a cultura pura mas quererem beneficiar da lei - a nossa - que os protege e os "insere". Não pode dar completamente certo. Isto em termos gerais.
EliminarPontualmente, há histórias bonitas como essa que te aconteceu, querida flor e que muito te agradeço por a teres contado. Mas a ti muita gente se há de chegar em busca de orientação. Cheira-me :-)
São diferentes e isso traz simultaneamente fascínio e temor. :)
ResponderEliminarEste teu comentário dá-me vontade de te pedir uma foto a ilustrar isso mesmo que escreveste. Mas se calhar é pedir muito. É?
Eliminar:-)
Estou aqui a pensar. Nada fácil mesmo. E além da dificuldade há também a questão da oportunidade. Mas começo a ficar com problemas de consciência de não corresponder aos teus desafios. :)
EliminarQuerida luisa, problemas de consciência é que não :-)
EliminarSabes, eu adoro os teus trabalhos, todos. E acho brilhante aquela coleção dos ditados populares, é genial!
Faz assim: se te surgir a ideia, se de repente ela vier, ótimo, se não vier ótimo na mesma, porque outras virão igualmente boas. :-)
Que tal?
Um beijinho, luisa, e parabéns pelo que fazes.