Entro muito devagar no gabinete médico com a mão
no flanco esquerdo e a minha filha mais velha a amparar-me com o olhar.
Sento-me também devagar na cadeira destinada ao doente. O médico mal me olha, é
um homem de cabelos brancos e origem indiana - engraçado eu esperar mais de um
homem de origem indiana - e fala-me então muito alto, como se eu fosse tão
surda quanto vagarosa. Faz-me perguntas às quais respondo pela terceira vez, se
contarmos com a triagem e o telefonema prévio feito de casa, pela minha filha, logo depois da dor que me mordeu o lado esquerdo, mesmo por baixo da nódoa
negra obtida há vários dias quando caí dentro de um buraco, mas só metade de mim
é que caiu, o resto sei lá como ficou (isto para explicar).
- Vamos ver a sua coluna.
- A minha coluna está bem, é aqui de lado que me dói, doutor.
- Mas se está na ortopedia, é a coluna que vejo.
- Enviaram-me para a ortopedia.
- Não estou a dizer que foi a senhora a tomar a iniciativa,
mas temos de ver a coluna, estamos na ortopedia. Faz raio-x e depois vai para a
cirurgia geral.
Tudo isto lhe saiu no tal tom de voz para surdos e sem me olhar.
Sinto-me uma espécie de porta do "surda que nem uma porta” e penso nos velhinhos
que lhe entram no gabinete à velocidade a que eu entrei. Tento apanhar-lhe os
olhos com os meus, para ele ver que deste lado está um exemplar da mesma
espécie - olá, sou uma pessoa - e que surda tenho a sorte de não ser, nem porta. Noto
então a ficha de outra doente em cima da mesa do médico, na qual leio, ao
contrário, um nome e uma idade, oitenta e dois anos.
- Essa não é a minha idade. Ainda. – esta foi a estratégia para
lhe apanhar os olhos, acordá-lo.
- Esta não é a sua ficha. Ou quer chamar-se Maria das Dores?
Não quero, e apanho-os, aos olhos. Fixo-os. E sem os largar,
pergunto-lhe porquê a cirurgia geral. Como eu pretendia, explicou-me então,
agora com a voz bem regulada para o meu ouvido, ainda que olhando alternadamente para mim e para o ecrã do
computador, e usando de termos técnicos com tudo incluído, o porquê da cirurgia
geral. Percebeu? Percebi.
Sala de espera de novo, lentamente. Raios-x, deite-se, devagar, agora vire-se, com
certeza, e agora de pé, já vai, só um bocadinho, encha o peito de ar, expire,
não se mexa. E outra vez sala de espera e de novo a ortopedia, o mesmo médico.
Não me esqueço de notar que a minha filha acompanhou tudo isto, mãe queres
água, mãe deixa ajudar, mãe vem sentar-te. A mais nova ficou de fora, que só podia entrar uma com a doente, eu. Que a voz do médico indiano se mantém regulada
para a minha acuidade auditiva, também devemos notar. Não tem fratura, declara, mas vai para a cirurgia geral,
há que ver os órgãos internos. Se lhe pedirem raio-x diz que já fez raio-x, não
só à coluna, a tudo. Percebeu? Percebi, doutor, lembro-me muito bem que fiz mesmo
agora o raio-x, muito obrigada, levanto-me e saio como um caracol.
Outra sala de espera, lentamente. Gabinete cinco. Ao ouvir o meu nome, dirijo-me à porta já se viu como. Está um médico lá
dentro, ladeado por uma cortina, bom dia doutor, o doutor não responde. Atrás
dele um corredor e do outro lado outra secretária e uma médica que me atira com
a voz do mesmo tipo para-surdos, ela também, é para aqui se faz favor! Passo ao lado
deste médico da cortina que não diz bom dia facilmente, eu muito devagarinho, desculpe,
com licença. Fico junto da médica, em pé no meio do tal corredor, a minha mão no
flanco, ela uma bonita mulher, penso, elegante, mas que estranhamente
também me supõe surda. Então a queda foi hoje?, atira-me, enquanto olha para o
que está a teclar. Não, doutora, não foi hoje, hoje foi o osso a estalar, uma
grande dor, expliquei de novo, mesmo crendo que também ela não ia ouvir. Não ouviu (e a surda sou eu), mas
viu um grupo de três doentes chineses, isso viu, que andavam atarantados à
procura de alguma coisa, com passos pequeninos, aqui por trás de mim, muito
chegados uns aos outros os chineses, olhavam para a esquerda e depois para a
direita; reconheci-os da sala de espera número quatro.
- Qu’é isto?! Uma procissão?! - a bela médica fala sozinha,
que para mim não é, e depois – Eh!!! Não podem estar aqui!! Isto é um
gabinete!!! – na mesma voz alta para quem é ou surdo ou surdo. Os chineses
exclamaram umas coisas em chinês e fugiram muito juntos.
Ora eu, que já tinha decidido não tentar capturar os olhos
desta médica com os meus, doíam-me as costas e estava de pé há muitos minutos
ali, de mão no flanco e vontade de me ir embora, fiquei perfeitamente esclarecida:
isto é um gabinete. É que a mim parecia mesmo mesmo um corredor.
(lá tive de ceder, recentemente, à subscrição de seguro de
saúde privado por não ter direito a médico de família e umas outras coisas, porém
faço os possíveis por me servir do serviço nacional de saúde; acredito nos
nossos médicos e acredito que é servindo-nos dele que o SNS pode melhorar; mas eu
está visto que parece que sou um bocadito surda com a mão no flanco e dores nas costas)