12/10/2016

Marta Crawford

Ainda faltam trinta minutos para o comboio, mas o dia vai longo e a noite caiu já toda aqui. No terminal multibanco que está dentro do edifício, subtraio alguns euros à minha conta bancária e guardo-os na carteira; são euros de Famalicão que se juntam aos que já vieram de Lisboa e estavam poucos. Do outro lado há uma banca de jornais e revistas, mas não era isto que eu queria. Continuo a varrer o espaço escuro com os olhos e encontro um balcão misto. De jornais também, de revistas, de raspadinhas, muitas tiras de raspadinhas, de uma máquina de café, não sei se aqui é café ou cimbalino, e alguns objetos indefinidos que, em aproximando-me, quiçá me satisfarão o intento, comer.
- Boa noite, tem sandes?
- Menina… - e a senhora do outro lado do balcão junta as mãos à frente do peito – tenho tudo para sandes... menos o pão.
- Então... pode ser uma meia de leite, se faz favor.
- Direta ou normal?
- Normal. – aqui é capaz de dizer-se cimbalino, porque eu não sei o que é uma meia de leite direta.

Mas sei que isto é um blogue e num blogue a gente deve escrever poucochinho, praticamente quase nada para não enfadar, mas eu quero muito contar isto porque isto vai acabar tão lindamente bem. Atalhando, falámos de raspadinhas e do vício que pode daí advir enquanto eu bebo a meia de leite normal. Ela conta-me de uma escritora sua amiga que ainda hoje cá veio e fez aqui uma de dez euros, menina, mas não saiu nada, quem é a escritora?, ai o nome não me lembro, mas ela escreve muito bem, escreve muitos livros de poesia e não só, mas quem? quem?, ela não se lembra do nome e compensa-me, diz-me que gosta de Mia Couto, é muito bom o Mia Couto, e estende-me o livro que acabou de ler de Mia Couto. Eu aponto-lhe o da capa do jornal que nos ouve a conversa mesmo aqui debaixo dos nossos narizes, Mário de Carvalho, já leu? Não leu, mas conhece, então leia, é muito divertido, e Saramago? (isto ainda eu), ahhh Saramago é muito bom, estou a ler a Jangada de Pedra, menina, enquanto me aponta o livro deitado ao lado da máquina do cimbalino (está decidido, é cimbalino), tive muita pena quando ele morreu, eu fui lá, menina, e vi a tristeza no rosto da mulher dele, aquilo é que era um amor!... Ainda tenho metade da meia de leite normal, tempo para o comboio e vontade de continuar esta conversa; sabe como foi que eles se conheceram? Ela não sabe. Então eu vou contar, ela vai ouvir e a meia de leite acabar. Que lindo, menina, aquilo era mesmo um grande amor!...
- Agora tenho de ir, o comboio está quase aí. Gostei de a conhecer, até à próxima, se eu cá voltar!
- Adeus, menina, boa viagem. E olhe… sabe quem a menina me faz lembrar, assim, de olhar para si e ouvi-la falar?
- Quem?
- Aquela sexóloga, a Marta Crawford. É parecida.


Marta Crawford… nada mau. Já dentro do comboio, faço o check in para o voo de amanhã, escolho bacalhau com broa para jantar (comida de comboio é melhor que comida de avião, confirmo), ligo às miúdas e depois dou um saltinho à internet embalada pelo pendular do alfa, para ver a Marta Crawford melhor. Não sou assim parecida parecida, mas sou exatamente da mesma idade que ela. Mais mês menos mês.

16 comentários:

  1. Gosto mesmo de vir cá lê-la, porque a Susana é perita a encontrar vozes à solta. Quem diz vozes, diz corações...

    :)

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    1. E eu gosto muito que venha cá visitar-me, caro Impontual. Obrigada pelas suas palavras.

      Também gosto de encontrar os corações dentro das pessoas, algumas não se importam de o mostrar. :-)

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  2. Aqui nunca se escreve demais. Os posts têm a medida certa, aquela medida que cai mesmo bem aos olhos e ao sentimento. :)

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    1. Para olhos generosos, como esses teus. Muito obrigada, luisa.
      :-)

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  3. não se diz cimbalino. diz-se café. Uma meia de leite directa é quando colocam café 'fresco' da máquina como se fosse para um café.
    Acho que essa senhora faz muita poesia sozinha, sem necessitar da ajuda da tal amiga de quem não lembra o nome

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    1. Ela faz poesia, pois faz, também acho. E se voltar a Famalicão, hei de lá ir tomar um café com ela (e não um cimbalino, pronto).

      Ou uma meia de leite direta...
      Obrigada, Tétisq. :-)

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  4. Saio daqui quentinha, embalada por esta conversa boa, e certa de que tens qualquer coisa da Marta Crawford, mas te acho mais bonita.
    Boa noite, querida Susana. :)

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    1. Ontem de manhã vi duas cabras com uma semana de idade (dois machos, tão lindos). Adivinha lá de quem me lembrei. :-)

      (bonita és tu, minha querida Teresa)

      Aquele horrorozinho. :-)

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  5. Susana, há uma parte do teu rosto, a zona dos olhos, que tem parecenças com a Marta C., embora não fosse lá se a mulher do café não o tivesse referido.
    Beijo

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    1. Bem... confesso que certa vez, ao ver a Marta C. na televisão a falar sobre aqueles assuntos dela muito interessantes, ocorreu-me que talvez haja uma certa parecença entre nós.
      :-) Um beijo de volta, Isabel, boa quinta feira.

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  6. Não é uma má comparação. A dita sexóloga é bastante apresentável, digamos. Também a acho um bocadinho proeminente em demasia. Jamais encontrei quem tirasse meias de leite directas - as minhas preferidas - a falar de livros e escritores. Continuação de bons encontros.

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    1. É verdade, bea. Encontrar gente que tira meias de leite diretas ou normais e tem uma conversa tão rica sobre escritores (e músicos, essa parte é que já não cabia no post), não é habitual.
      Sou uma sortuda, sempre fui. :-) (e não estou a brincar, estou a sorrir)
      Obrigada, bea.

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  7. Realmente faz lembrar (fui pesquisar, que assim só de nome não ia lá) e o que mais me lembra é o sorriso. Portanto vou mas é pôr isto a bem: ela é que me lembra de ti, não o contrário. :)

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    1. Bem, então também te agradeço a ti. (mas essa foto que viste de mim já tem uns anos, Gina...)
      :-)

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  8. Sabes, Susana, eu sempre com aquela ideia, tenho de ir ver como é aquilo, tenho de ir ver, deve ser um espaço de total liberdade para o autor de cada blog, deve ser gente que gosta muito de escrever, tanto que, se não o fizer, aquilo até é capaz de ser coisa para fazer doer por privação e então correm a satisfazer aquela necessidade boa de soltar as palavras e ainda têm a generosidade de deixá-las à solta para quem as quiser ler, mas, principalmente, por eles próprios, pelo seu prazer de escrever, sem se preocuparem com o eventual enfado alheio.
    E antes de sair e de deixar-te aqui um sorriso e um abraço ainda te digo que, essa parecença, é uma parecença de valor.

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    1. Cláudia, eu escrevo não por generosidade mas por pura satisfação de vontade própria, talvez se possa também chamar de egoísmo. :-) Ter quem goste de me ler é que é uma dádiva que eu - sinceramente - não esperava. E isso sim, é de valor. Tal como as tuas palavras.
      Obrigada, Cláudia.

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