Quando o barco entra, a deslizar, no pequeno porto,
reconheço o lugar. Já cá estive há sete anos, precisamente. Lembro-me de
uma particularidade do supermercado que na altura me ficou por explorar, mas de hoje não passa. O pequeno porto
oferece serviços de apoio de lavandaria e duche quente, entre outros, e podem
levar-se bicicletas emprestadas ao centro da pequena cidade para, por exemplo,
ir ao tal supermercado. Escolho a bicicleta que tem o selim na posição mais baixa: se em Portugal terei estatura média, na Holanda o
caso é diferente. Mesmo assim, preciso da ajuda do lancil do passeio para me
pôr em cima dela e começar a pedalar. No máximo chego com uma biqueira de
sapato ao chão, uma de cada vez. Os velhinhos passam por mim a pedalar depressa, trrimm trrimm, ok eu espero. Dou umas guinadelas no arranque devido
ao desajuste de alturas, mas depois vai. Lembrava-me muito bem deste sistema
de travagem, interessantíssimo, que é o de pedalar para trás, incentivador de uma queda lateral no fim da viagem para uma pessoa como
eu: ou se trava ou se põe um pé no chão – para quem pode – ainda em andamento,
claro. Mas o supermercado não fica longe. As casas em pedra escura, telhado
preto, ajardinadas, janelas e portas floridas, são belíssimas. A cidade está em
ordem, tudo arrumado no seu lugar e isto, curiosamente, confere-me certa confiança em
cima da bicicleta demasiado alta e a travar daquela maneira maluca, é como se
aqui ninguém pudesse cair, nem sequer eu. Antigas e algumas com dizeres em letras
serifadas por cima da porta principal, as casas atraem-me o olhar. Porém, não estou capaz de ver nada com vagar, muito menos ler, preciso de pedalar a olhar
para a frente não vá vir do outro lado um velhinho disparado, ou
velhinha, e zás ou coisa assim, deus me livre. E parar é o cabo dos trabalhos. E depois recomeçar também.
Chegando ao supermercado, ensaio a travagem com sucesso, alço
uma perna por cima do quadro da bicicleta e salto para o outro lado ainda um
pouco em andamento, é o melhor que consigo. Depois abro o descanso já com o veiculozinho
parado, finalmente, e tranco a roda traseira, meto a chave no bolso. Adoro isto
de trancar uma bicicleta para ninguém a roubar quando na verdade podia roubá-la eu se quisesse, a chave foi só tirá-la lá do sítio onde se lava a
roupa, mas claro que não quero. Entro no supermercado e levo dois fitos, o óbvio: materializar a curta lista de compras em produtos para dentro do carrinho, e o
outro: observar os empregados deste estabelecimento - há sete anos, quando cá estive, eram todos pessoas com deficiência. Faço então
o percurso de acordo com a lista que levo na mão, bananas, maçãs, tomate,
iogurte, pão e cruzo-me com um empregado que está a fazer reposição numa prateleira. Tem
seguramente mais de dois metros de altura, é incrivelmente magro e sim, é
portador de deficiência, não há dúvida. Falta ver na caixa. Só há uma caixa e estão lá duas pessoas: um rapaz a passar os produtos no registador e uma rapariga
sentada atrás dele aparentemente a aprender o ofício. Coloco as compras em cima
do tapete e antes de ter oportunidade de olhar bem para eles, não quero ser
indiscreta, já o rapaz se
está a levantar, leva os sacos de maçãs e tomates e o cacho de bananas nas mãos,
diz qualquer coisa como era-preciso-pesar-as-frutas, e vai ao centro da loja,
vejo-o daqui, fazer as pesagens que eu devia ter feito na balança que lá está para o efeito.
Peço desculpas à rapariga aprendiza que aqui ficou à minha frente e ela diz que não tem importância, sorri. São ambos, também estes,
pessoas com deficiência.
Acomodo as compras pendurando-as no guiador da bicicleta,
que está onde a deixei tal como se fosse minha, destranco a roda traseira e uso de
novo o lancil para o arranque da viagem. Não sem antes deixar passar a carrinha
branca que lá vem, preciso da estrada toda para cumprir os ziguezagues
iniciais.
(depois de devolver a bicicleta ao lugar de onde a tirei e pendurar
a chave na casa das máquinas do pequeno porto, fui consultar: trata-se de uma cadeia de supermercados com lojas pequenas, fora dos grandes centros, que emprega
pessoas com certo grau de deficiência, pessoas que têm mais dificuldade que as
outras em encontrar trabalho - curiosamente, nunca antes me tinha acontecido um
colaborador de caixa se levantar do lugar e ir de imediato fazer a pesagem da
fruta por mim)
Se dermos lugar, há lugar para todos. :)
ResponderEliminarTambém penso assim, Gina.
Eliminar:-)
Bom domingo.
são exemplos como esse e o que li na Domadora de Camaleões que me dão esperança.
ResponderEliminarum abraço apertado, doce Susana.
Também a mim. E se olharmos bem, há muitos. :-)
EliminarO post da Domadora é belíssimo.
Outro abraço apertado, querida flor.
E que bom poder contar com essa eficiência :-)
ResponderEliminarUma eficiência aliada a um empenho, uma vontade de fazer bem... um lugar bonito, aquele.
Eliminar:-)
Muito e muito obrigada pela partilha <3
ResponderEliminarFico tão entusiasmada quando sei que é possível.
Obrigada eu pelo comentário, Be.
EliminarTambém fico muito contente com coisas destas.
Um beijinho para si.