09/08/2017

O Steinway, a gola e o ferro

Anton veio jantar. Chegou com a habitual pontualidade que se fosse britânica não seria mais exata. Ajudei-o a despir o casaco fino de verão, que pendurei no vestíbulo. Entrou e, quando se sentou na cadeira que lhe estendi, notei-o cansado.
- Estás cansado – verbalizei.
- Sim, um pouco – riu-se – estou a ficar velho – acrescentou.
Nasceu em Amesterdão há noventa e seis anos e de vez em quando diz que está a ficar velho.
- Hoje despedi-me dum cliente de mais de quarenta e cinco anos – anuncia.
Eu tenho de traduzir os quarenta e cinco mentalmente, que em holandês se diz ao contrário, cinco e quarenta.
- Quarenta e cinco - repeti.
- Sim. É um belo piano de cauda, aquele, um Steinway. Mas foi a última vez.
- E sentes-te triste? – perguntei.
- Sim, claro. É triste. Agora cada cliente que visito é a ultima vez.
Ainda trabalha no seu ofício de sempre, pianos. Mas desde há uns meses anda a despedir-se: de cada vez que vai afinar um piano, comunica ao cliente que já não volta.
Falámos ainda um pouco sobre o seu trabalho na fábrica de pianos, que fechou há décadas. Fazia controlo de qualidade e arranjou no chefe da produção um inimigo, ele queria produzir muito, mas era preciso rejeitar os pianos que não estavam bons, diz Anton.
Hoje, por ser verão, vem sem gravata. A camisa de manga curta tem gola de abotoar, mas noto que os botões estão fora das casas. Mentalmente revejo a senhora baixinha, asiática, que lhe faz a limpeza do apartamento desde que vive sozinho depois de ter enviuvado, há uns anos. Cruzei-me com ela uma ou duas vezes, e agora lanço sobre ela a responsabilidade desta pequena falha que, num homem que usa gravata todos os dias exceto quando o calor aperta um bocadinho, é uma considerável falha. Mas para não ser injusta com a senhora asiática nem sequer mentalmente, e porque sei dizer passar a ferro em holandês, perguntei:
- Quem é que te passa a roupa a ferro, Anton?
- Eu mesmo.
Terei certamente aberto muito os olhos e levantado as sobrancelhas, porque ele se chegou um pouco mais a mim e querendo talvez amenizar a minha admiração, baixando a voz, confidencia:
- Mas não passo cuecas nem meias…

Lembro-me de já ter ouvido, a algumas pessoas com um terço desta idade, dizer que não sabem passar a ferro. Tirando o esquecimento de abotoar a gola, é possível aprender-se a passar a ferro aos noventa anos. Caso se queira, evidentemente.

20 comentários:

  1. e por que será que Anton passa agora, aos noventa, a sua roupa a ferro, quando tinha alguém para o fazer?! Será que a senhora asiática se retirou por qualquer razão e não lhe apetece um novo rosto? Ou?!
    Creio que a vida é sempre a aprender e a quem mais vive mais tempo é dado para.
    E é bastante entendível a despedida que faz a cada piano. Por vezes, os objectos são quem mais nos acompanha o percurso. Esses, são companheiros de vida. Merecem. Queria ter assim uma profissão gerúndia, de me ir despedindo em trinados. Até que os dedos emudecessem e as mãos pesassem hirtas, rígidas, expurgadas de si. Parece triste. Mas não é.

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    1. É uma opção, bea. Sendo Anton capaz de passar a sua roupa, não lhe ocorre ser outra pessoa a fazê-lo, visto que tem tempo.

      De facto, tem razão. Não é triste chegar a esta idade e poder fazer as despedidas necessárias, com tempo. Muitos de nós somos levados abruptamente.

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  2. lá em casa a minha mãe ensinou a todos. são competências necessárias, como cozinhar, ou pregar um botão... se ela me tivesse feito rico em vez de bonito, nã precisava :)

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    1. Excelente ideia - e inteligente - a de ensinar os filhos a fazer tudo. Nem se percebe bem quem deliberadamente não o faz, na verdade.
      Mesmo que um belo dia nos dê para sermos ricos, é ótimo sermos capazes: ficamos ainda mais bonitos, ou não é?

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  3. Oh! Susana, este é um post verdadeiramente fofinho.
    Fiquei com uma enorme vontade de abraçar o Anton, uma coisa assim totalmente disparatada uma vez que não conheço o senhor a não ser destas tuas linhas, (e é que nem linhas tem), tendo em conta este despropósito, ainda bem que o meu lugar no post é este do lado de fora.
    Fiquei com esta ideia tão cedo que, embora saiba que não, até me parece ter sido desde sempre, a ideia de que a dependência (também a emocional), nos casos em que não acontece por motivos imperativos como os de falta de saúde, por exemplo, pode empurrar as pessoas para situações de verdadeiro inferno, quer para si próprias, quer no que toca a infernizar a vida dos outros e que, sabermos valer-nos o máximo possível a nós próprios, é uma enorme mais valia. Aprender, saber fazer, reunir o maior número de competências possível para poder valer-se a si próprio, é a minha definição de adulto.

    Tenho de conter-me sem abraçar o Anton, mas a ti abraço e pronto, pode ser? :-)

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    1. Mas Cláudia, essa tua vontade é perfeitamente natural. Anton é um exemplo a seguir, de facto. E não o ouviste tu a contar de como passou dois anos subjugado pelos alemães na II Guerra Mundial e de como mesmo cansado de trabalhar para eles mal conseguia dormir por causa de percevejos (ou pulgas, não percebi bem) que havia lá nos dormitórios.
      Eu arranjarei forma de lhe dar o teu abraço, Cláudia. :-)
      E retribuo o nosso, que esse é já.
      :-)
      (Obrigada pelo teu comentário, Cláudia. Eu estava hesitante em escrever este post)

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    2. (Ainda bem que o escreveste, mesmo, e muito obrigada por teres contado essa situação na II Guerra Mundial. Fico a contar contigo, dá esse abraço por mim)

      (Também gostei muito do "Esgadanhei-me...", não comentei, mas saí daqui a sorrir)

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    3. Sabes, Cláudia, é bom ter um blogue.
      :-)

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  4. Até pensei, quando comecei a ler o post, que era um texto de ficção a incluir numa hipotética reunião de conto breve da Susana. Anton, piano Steinway, estavam reunidas condições. E os escritores de ficção andam tão esgotaditos na imaginação, é sempre a mesma cantiga - quem sabe a Susana-escritora não altere o rumo. :)

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    1. Amigo Diogo, não é ficção. Apenas o nome não é este, ele não se chama Anton (mas eu adoro o nome Anton, vem de Anton Bruckner).

      E tu lá trocaste a Clara pela Salomé. Ora aí estão dois nomes de que também gosto.
      :-)

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    2. Troquei troquei, mas o que importa, apesar do padrão do título incluir a perturbadora morte dessas mulheres, é ter amig@s como tu que o leiam, e os que vão chegando. Senão é saco roto. :)

      A morte da Clara Bow era esperançosa, pois.
      A morte da Salomé é mais pessoal. Claro que ninguém morreu; é um antigo amor-obsessão meu.

      Será que eu e as mulheres, as mulheres e eu, nada?...

      Romanticamente falando. :)

      (ando a ficar irritadiço, à custa disto dos romances)

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    3. Saco roto não será, mas é um saco muito fugidio, não é?

      Talvez se te deixares ficar mais tempo no mesmo jardim, a apreciar a tua própria obra de jardineiro, as borboletas queiram pousar?
      :-)

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    4. A última vez que fiquei mais tempo no jardim correu bem, é um facto... depois peguei nas tesouras e cortei tudo. Tinha demasiada força e pouco filtro. Ah!, que belos tempos esses, em que nem me vigiava. Auto-crítica a zero.

      As borboletas fugiram.

      Bela imagem essa.

      :)

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  5. É comovente esta história de Anton. Um afinador de pianos com noventa e seis anos deve ser coisa rara, não pode ser surdo como Beethoven, deve precisar de um ouvido perfeito. Imagino que conheça os seus pianos como um médico conhece os pacientes de longa data. Quanto ao ferro, ultimamente estou a aprender a passar com as mãos; o que eu já não consigo é aprender a afinar pianos.

    Um abraço para ti, dentro do texto.

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    1. A verdade é que o ouvido dele já não é perfeito, mas para afinar pianos do que ele precisa é de identificar as frequências e não tanto do volume com que as ouve. Aliás, ele já usa aparelho nos ouvidos, mas quando vai afinar os pianos, tira-o. É tão cómico. :-)
      E Teresa, o abraço é dos horrorosinhos, não é?

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    2. Se é! O que nós aprendemos com o imenso património dos outros.

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  6. que espírito nobre!
    admirável forma de estar na vida.

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    1. sem dúvida, il. admirável e inspiradora forma de estar na vida.

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