Sentamo-nos na sala, prontos para conversar. À nossa frente
temos as bebidas e temos, pode ser, uns biscoitos ou uns queijos, por exemplo
aquele que tem nozes embutidas e é tão bom que parece mentira, ou também uma
pasta de atum, e ainda um bolo que eu fiz e que tornou a sair mal, avisei, porém
não tão mal como o último que foi direto para o lixo (enfim), mas eles querem
provar e eu espero que seja do forno (mas pode ser de mim).
Perguntam-me como vão as minhas filhas e como vai Portugal,
comentam ainda os incêndios que fizeram notícia em todo o lado. Pego da palavra em
inglês que vai melhor que o holandês e conto o que sei, aproveito para incluir um
resumo do recente discurso do Al Gore em Lisboa a propósito das alterações
climáticas, as minhas filhas estão bem, obrigada. Já devem estar grandes, diz Hilde a sorrir, há tantos anos que as não vejo, oh sim, estão as duas grandes. E depois é
a minha vez de querer saber.
Hilde está aposentada da profissão de professora e faz
voluntariado. À quinta feira dá aulas de neerlandês a refugiados acolhidos na Holanda.
Da Síria, principalmente. Mas também de outros lados.
- E conseguem aprender bem, esses teus alunos?
- Não muito, fazem progressos, mas lentamente. É difícil,
porque o alfabeto é totalmente diferente… e além do mais alguns nem sabem ler ou
escrever na língua deles.
- A sério?...
- Sim, alguns dos mais velhos. Mas apostam muito nos filhos –
as famílias vieram juntas em muitos casos – e esperam que os filhos aprendam e
consigam depois um bom emprego.
- Então não têm emprego, esses teus alunos.
- Não, não conseguem arranjar. E por isso ficam muito
desocupados. Mas claro que têm uma vida aqui muito melhor do que a que tinham no
país deles, isso nem se compara...
- E eles querem voltar?
- Querem. Na maioria querem voltar, acreditam que o país se
vai reconstruir, reorganizar. Têm esperança.
E depois pergunta-me:
- Já imaginaste, Susana, estares numa situação em que o teu país
não tem nada, está tudo destruído, nem reconheces os lugares onde sempre
viveste, e só te resta fugir para um lugar desconhecido na esperança de
sobreviver?
- Não… acho que nem consigo imaginar…
- Nós temos muita sorte, aqui na Holanda – continua – e eu
tento não me esquecer disso nunca, da sorte que temos. E tentamos, eu e os
outros voluntários, fazer estes refugiados sentirem-se bem-vindos aqui. Pelo
menos isso creio que conseguimos.
Antes de ir buscar mais bebidas à cozinha, e continuando a não ser capaz de imaginar como se sentem os refugiados, eu ainda disse que
também nós, em Portugal, temos muita sorte.
Sem dúvida que temos sorte; sempre temos sorte se comparados com quem perdeu tudo e vive de empréstimo num país estrangeiro, mendigo de vida e normalidade seja isso o que for. E temos uma sorte geográfica, somos europeus e, mesmo em Portugal, somos dos que têm emprego; e porque temos saúde ou vamos tendo; e porque temos quem goste de nós. Sorte é conseguir reunir três ou quatro factores que nos são fundamentais e que pouco está nas nossas mãos conseguir e dividi-los com quem não tem ou teve esse benefício.
ResponderEliminarSabe, bea, às vezes penso que a nossa maior riqueza pode bem ser a capacidade de sabermos realmente apreciar o que temos e, ao mesmo tempo, - mas isso já talvez seja arte - não largar o osso relativamente àquilo que ainda queremos alcançar.
EliminarSó em horas de luz somos dos mais afortunados. Para já não falar de há quanto tempo não travamos uma guerra com ninguém, nem os ameaçamos de tal.
ResponderEliminar~CC~
Ah, CC.... regozijei com mais esta sua recente conquista! que exemplo! (obrigada por contar e por contar tão bem)
EliminarE quanto a essa absurda revelação de mentes miseráveis que dá pelo nome de guerra: somos muito afortunados, muito.
Um abraço apertado.
Pois temos, Susana. É isso mesmo que costumo pensar, mesmo quando tudo corre muito mal ou acho determinadas coisas completamente disparatadas.
ResponderEliminarE o quanto aumentou a nossa qualidade de vida e a aquisição de direitos, pelo menos legislados, nos últimos quarenta e tal anos? Não tem comparação possível, basta ouvirmos os mais velhos, para além da história.
Depois, tens lugares no mundo dos quais as pessoas têm de refugiar-se, e tens outros, por exemplo, onde uma criança não vai à escola porque os pais não têm a módica quantia de trinta euros por ano, trinta euros por ano Susana, para os poder matricular, crianças para as quais um simples caderno, um bloco, um lápis, é um bem de luxo, que cuidam e protegem como se estivessem a proteger a própria vida, é mesmo como se, agarrados àqueles bens preciosos, estivessem agarrados à esperança de um futuro melhor, e a vontade que têm de aprender, a felicidade com qualquer coisa que recebem, é de nos deixar o coração num frangalho. E aqueles sítios onde uma pessoa ainda mal sabe andar e já lhe põem uma arma na mão? E os que são vendidos pelos próprios pais para serem pau para toda a obra porque fazem filhos de empreitada sem se interessarem com as condições minimamente dignas que não podem proporcionar-lhes, e por ser o que conhecem pois já fizeram o mesmo com eles?
Pois temos, Susana, em Portugal temos muita sorte, muita mesmo, apesar de todas as razões de queixa e de tudo o que não é um mar de rosas, e continua a não ser para demasiadas pessoas.
Continuação de uma boa semana (espero que esteja a ser boa) :-)
Tiras-me as palavras da boca, como se costuma dizer, Cláudia.
EliminarE ainda tiro eu mais estas, a propósito de "ouvirmos os mais velhos": guardo o passaporte da minha avó paterna, no qual há uma inscrição que diz algo como a mulher casada não pode sair do país sem ser na companhia do marido ou então por ele autorizada.
Mas enfim, ainda há, claro, muito a fazer. :-)
(está a ser boa, sim, obrigada)
Uma boa continuação de semana para ti também :-)
Creio que não temos sorte alguma, antes governantes sabujos e vendidos (venderam-nos), há décadas. Chamar ao que temos "sorte" é uma espécie de auto-flagelação, exactamente aquela que os portugueses, em geral, rifa: compraram, e já está, mas foram mesmo vendidos.
ResponderEliminarClaro que dependendo do prisma pelo qual se olha a situação, podemos ter azar e não sorte. Mas enfim, eu tomo um antídoto para a auto-flagelação que tem sido eficaz: faço tudo o que posso, mesmo tudo, para combater os males de que padecemos, que identifico, e que combatendo, podemos valer mais um bocadinho a cada ano que passa, para que daqui a um tempo possamos ser bem comprados em vez de andarmos vendidos.
Eliminar:-)