29/02/2020

Engrenagens vigentes

Eram quatro e meia da tarde quando o entorpecimento começou a andar ali em torno. Talvez pelo ir da concentração, de seguida, ou então quem sabe era o sol a entrar às fatias pela persiana que desce até meio da janela no gabinete do Cliente Grande; eu ia sendo apanhada na curva. Olha, olha, querem lá ver isto, nem pensar. Vejo a hora no canto inferior direito do ecrã (já disse). O bar fechará a que horas, pergunto aos meus botões. Então pego na carteira e faço-me ao caminho. O corredor é longo. O chão reflete a luz que incide amortecida, através de uma porta aberta; está um chão limpinho. Não vem ninguém. No silêncio, as paredes ostentam os cartazes abordando temas relacionados, reconheço todos menos um, que é novo. Chegando ao bar, a porta envidraçada está aberta. Entro e pergunto se ainda posso tomar um café, mesmo sendo a pergunta em princípio redundante. Não só faço perguntas aos meus botões não-respondentes habituais, como as faço quando conheço a respetiva resposta. É uma coisa que eu tenho. Gosto de ouvir falar o meu interlocutor, ou interlocutora, tomar-lhe o pulso da disposição, conhecer assim melhor como vai o mundo. Estes registos naturais devolvem-me a cadência real do todo, o respirar das engrenagens vigentes.
- Ora essa, então não pode?
E isto acompanhado de um sorriso generoso, o cabelo metido numa touca higiénica, a bata branca.
- Então se posso, é mesmo só isso: um café, se faz favor.
Enquanto apanho as moedas dentro da carteira até perfazer a baixa quantia que aqui vale o café - apesar de ser da mesma qualidade dos que valem o dobro - faço desta vez a pergunta cuja resposta nem eu nem os meus botões conhecemos.
- Às cinco e meia. Ainda falta um bocadinho.

Amanhã, se o entorpecimento se puser outra vez a rondar em torno, já sei. Não preciso de perguntar. Mas quem sabe torno.

27/02/2020

Como transformar bocejos em choro de rir em dois parágrafos

Aqueles sete minutos matinais, já mencionados neste espaço próprio, em que faço o exercício físico são os mais aborrecidos de todos os vinte e quatro vezes sessenta que o dia tem. Isto se não ficar presa em filas de trânsito nem ouvir ninguém a falar de receitas de cozinha que viu no chato do facebook, ambas situações que ganham em matéria de entediantes aos tais sete minutos matinais. Já tentei duplicá-los para catorze numa de os conquistar ou, se não, pelo menos a ver o que me traria semelhante valentia, mas o único resultado foi duplicar a quantidade de bocejos emitidos. Emagrecer lindamente, chegando-me assim a ficar mais de acordo com o que eu queria é que nem pensar. É capaz de ser castigo devido a, em toda a minha vida, o exercício físico não se me ter tornado um amigo do peito. Porém, continuo. Acredito que mantendo um aborrecimento garantido no arrancar do dia, baixo com firmeza a probabilidade de receber outros aborrecimentos pelo dia afora (ou adentro, é como se preferir), uma vez que os aborrecimentos referidos acima são raros: uma sorte minha. Até já a gata sabe os minutos de cor e vai-se embora para outro ponto da casa espreguiçando uma pata de cada vez ao passar por mim.

Então mas não é que de repente, há dois felizes dias atrás, esquecendo-me de toda esta teoria nhé nhé, me lembrei de introduzir um fator nos meus sete minutos que ia fazer toda a diferença? Lembrei. E se bem me lembrei melhor o fiz como se costuma dizer. Liguei então o youtubezinho no computador e pu-lo a tocar - fintando, é verdade, uma quantidade de anúncios a cremes contra pontos negros, ferros de esticar o cabelo e aplicações na bolsa ou lá o que é aquilo - e pu-lo a tocar, vamos lá prosseguir, uma coleção da chamada mixórdia de temáticas, criação nacional que dispensa apresentações. A verdade é que chego ao fim dos sete minutos a achar que foram sete segundos. Hilariantes, mas apenas sete magrinhos segundos! Ora assim também não! Vamos então, agora sim, duplicá-los? Vamos!

(E depois é capaz de coiso está-se mesmo a ver, evidentemente)

20/02/2020

Conclusão amigável (e adorável) de um processo bastante kafkiano

Exma. Sra. Doutora Flor Zinha Dexeiro,

Na sequência do processo de furto de um bovino raça pura que V. Exa concretizou subtrair (embora se reconheça que com certa mestria) do espólio ativo, setor grande porte, da minha cliente, somos a comunicar o seguinte:

I. Considerando que:

a. O tom de castanho acetinado com que a mãe natureza brindou o animal em causa não se alinha harmoniosamente com o que resta da manada residente, colocando assim em duvidosos lençois o irrepreensível gosto da minha cliente (vide ilustração junta), situação indesejável para a manutenção da sua habitual imaculada imagem;

(manada residente - restante)

b. Um animal tresmalhado de semelhante e vergonhosa forma, ao regressar a casa, poderia ser portador de doenças perigosas contraídas enquanto na posse de V. Exa., nomeadamente distúrbios bovino-psicológicos, hoje muito em voga como certamente saberá, constituindo um lamentável risco de saúde publico-bovina;

c. A minha cliente tem investido em raças de menor porte, associadas a custos menos pesados, passamos a metáfora, nas quais encontra características de portabilidade e, utilizando as suas avisadas palavras, características de imensa fofura, permitindo uma coabitação muito facilitada e agradável e ainda conferindo ao dia-a-dia novos encantos e desafios de teor praticamente científico (vide ilustração seguinte)

(exemplo de um expoente de beleza em certas investidas)

d. A minha cliente tem um coração onde cabe muita generosidade, como se poderá constatar em II.,

II. Vimos amavelmente informar que, em troca do bovino já largamente referido, foi subtraído a V. Exa. o exemplar alaranjado, de muito menor porte que o ido bovino e portanto correspondente valor muito inferior (relembramos a incomensurável generosidade da minha cliente), que se pode observar na ilustração seguinte, na qual também se constata muito claramente que o animal ora trazido para o conforto do seu novo lar se regozija com a sua feliz sorte, semicerrando os olhos em sinal de extremo prazer.

(dispensa outros comentários)

Os eventuais agradecimentos da parte de V. Exa. não são necessários (voltamos a lembrar a já famosa generosidade entretanto dispensando adjetivos).

Atenciosamente,
M.M.

16/02/2020

Preencher o espaço a pontilhado (cuidado, qu'esta é difícil)

Em pleno centro comercial vasco da gama, as minúsculas perdoam-se pelo que custa permanecer nesse imenso local, aos encontrões, aguardo a partida para a próxima investida na compra de presentes de aniversário atrasados, vou em cinco de atraso (a minha filha acompanha-me no raide, mas retirou-se por um momento e é aqui que aguardo). Estar em dívida com presentes de aniversário acontece-me muito pelo grande que é a família. Há, constantemente, alguém a fazer anos (mês passado: 2, este mês: 3, próximo mês: 1, vá lá). Mas hoje até por acaso dei-lhe bem: resolvi quatro, três deles dificílimos, adiante já me queixarei, o quinto ainda pode esperar. Aliás, já que entrámos por aqui, vamos continuar. 
Para as minhas irmãs é do mais fácil que há, escolho de olhos fechados, presentes para elas é mesmo na boa, pululam ideias lindamente (mesmo para as que não leem): enfeites de mulher, consumíveis de beleza, esferográficas Caran d'Ache (amo), uma coisa linda da Vista Alegre. Mas para os meus sobrinhos que não pegam num livro e já fazem a barba ou estão em vias de começar a fazer, fico encurralada entre mais um gel de banho para levarem no saco de desporto a cheirar a florestas verdes ou a uma outra frescura for men e mais uma loção para depois da barba da fragrância alternativa, coitadinhos. Isto enquanto não vierem inventar que estes produtos passam a ser dispensados via chipe informático feitos à medida do pH da pele dos gaiatos e da disposição do dia ou do mapa astral, sei lá, à escolha deles, entregues por correio semieletrónico. Ah, não tenho razão? Não tenho é imaginação para mais! Gel de banho loção para depois da barba gel de banho loção para depois da barba. Pelo menos são consumíveis, ocupam espaço temporário. Não tenho imaginação para mais, avisei que me ia queixar, mas a culpa não é minha, que isso até já tive, ó: um CD ao seu gosto, um DVD daquele filme de carros de corridas... (as meias podemos dispensar, toda a gente sabe).
Portanto, o que é que se oferece a um sobrinho homem em dois mil e vinte que já faz a barba ou está em vias de fazer e não lê livros para uma tia escolher, alguém me podia avançar, se faz favor?

(Supra pode ler-se "mas hoje até por acaso dei-lhe bem", porque consegui comprar presentes para três!!! dos meus queridos e muito - e muitos - sobrinhos homens: gel de banho e ................)

12/02/2020

Andamos muito caladinhos ou completamente agarrados aos telemóveis?

Se nos vidros das janelas dos comboios holandeses se podem observar sinais de incentivo à conversa entre passageiros, ver para este efeito o fascículo anterior, os saquinhos de chá seus conterrâneos jogam na mesma equipa. Não recorrendo à imagem e optando sim pela palavra, vêm os saquinhos de chá incentivar a gente: Vamos conversar uns com os outros, vamos?



Tradução:

“Em criança, que profissão sonhavas ter?” (à esquerda)
“Qual o filme que já viste mais de 10 vezes?” (à direita)

07/02/2020

Post passa a fascículo que é muito mais lindo

Desta vez, calhou-me a carruagem de conversar. Se alguns de vós estais recordados, queridos leitores daqui, já cá veio, por diversas vezes, mostrar com que linhas se cose a carruagem do silêncio, integrante assídua dos comboios holandeses, amarelos e azuis por fora. Por dentro cá andam mais limpos que no passado, mas não se pense que é por reação ao coronavírus, é asseio anterior, este. Claro que tirei uma selfie à vitrine da janela. Os pedaços de pessoa refletidos são meus, daí a classificação de selfie.
Sigo na carruagem de conversar mas por não ter com quem, entrego o monólogo ao blogue que já merecia uma atençãozinha.
Fiquei tão azeada* e também estupefacta com a cena descrita no fascículo anterior, que quase me dispus a arrumar estas botas de vez.
Mas o sinalzinho fofo (ver figura um) aqui viajando ao meu lado deu o empurrãozinho. Há coisas mesmo boas.
Figura um

(Quanto à outra problemática desenvolvida em caixa de comentários do já mencionado fascículo anterior, oportunamente haverá notícias)

Adenda:
*embora azeada vá muito mais de acordo com uma beleza na palavra, é aziada que se escreve, com i. Pedimos desculpa pelo encómodo.