08/12/2021

Por falar em bolsos

Comecei “Viagem a Portugal” de José Saramago. Ler frases escritas por este homem é tão bom como era dançar a melhor das músicas. É belo como o nascer de um sol rosa no céu todo. É como, já que aqui estamos, saborear o gelado de baunilha d’O Poeta, restaurante na Praia, Cabo Verde, mesmo ao lado da Embaixada de Portugal e a cair para a praia com minúscula, uma das várias. Em baixo, o edifício vertical e miseravelmente triste que augura um casino chinês e está de obra parada, os vidros sujos do nada que há dentro, uma perversidade de obter riqueza junto a um povo que a tem sim, mas no coração, na alma e no olhar. Não nos bolsos. Ler Saramago é portanto experimentar sinapses com sabor a luz, é obter uma alegria em cada letra, encontrar sentido certo na travessa de carne a fumegar que lhe puseram à frente em mil novecentos e setenta e nove em Trás-os-Montes.

Anteontem fui ao Continente quase a correr por causa de trabalho a transbordar-me da agenda e da cabeça. Enchi o carro. Tarefa dificultada por uma das rodas que estava afligida de algum embate passado e impunha ao veículo de empurrar uma tendência arrastada de se desviar para a direita quando a curva era para a esquerda e ao contrário também havia esta implicância. Mas a solução trouxe-me o benefício de substituir a caminhada que não houve tempo de fazer nesse dia: parei o obstinado carro de compras entortado de rodas no meio do corredor junto às bananas e fui eu buscar o café, o azeite, o iogurte e o leite de aveia para a Saminhas, mas aquilo não é leite, um de cada vez, o sal para a máquina, comida para os gatos, contabilizando passadas para trás e para a frente com o vórtice junto às bananas, um cacho das quais também incorporei, uma embalagem de pescada do cabo número três, pão e ovos. Na caixa, já no fim de arrumar tudo de volta a este carro manco para regressar ao meu carro dos outros, elétrico, azul a condizer com os inspiradores eletrões, tão elegante, noto o freguês que a seguir a mim já pagava a sua compra de produto único. Um homem pequeno, nada novo, vestido com roupas velhas e pintalgadas de tinta, trabalhador das obras perto, possivelmente, meteu no bolso de dentro do seu blusão estafado o pacotinho de vinho tinto que acabara de comprar. Um pacotinho daqueles que posso usar eu, abundantemente, no coq au vin se quiser. Acordei a lembrar-me deste homem de compra única que vinha a seguir a mim na caixa do Continente. Por falar em bolsos.

9 comentários:

  1. Pois é Susana, para ele era o alimento fundamental, o único possível. As razões podiam ser muitas, talvez não as melhores. E enquanto repararmos nos outros, estamos vivos e isso diz algo sobre nós, é isso que gosto muito nas suas crónicas, sobre bichos ou pessoas estão cheias de humanidade.
    ~CC~

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    1. Minha querida CC, e eu gosto tanto que visite este blogue. Tantas vezes me vejo de avental a servir café e chá, bolos e scones, compota e Diana Krall a musicar o espaço a estes meus queridos leitores para os manter mais tempo perto de mim.
      É uma espécie de sonho. 🤗
      Obrigada.

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    2. Impressionou-me aquele homem, especialmente porque percebi que se sentia envergonhado por comprar só um pacotinho de vinho tinto, nitidamente para acompanhar o seu almoço. Adivinhei-lhe uma grande solidão.

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    3. Nem diga duas vezes e eu já estou aí para o café com todas essas companhias, sendo a mais valiosa a da Susana:)

      Também fiquei a pensar nesse homem...
      ~CC~

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    4. Ah, caramba, quem me dera isso de estar aqui para o café!! :-)

      Então não é que hoje lá fui outra vez ao Continente e vi o mesmo homem a comprar um pacote de vinho tinto e apenas isso, mas hoje o pacote era de 1 litro em vez do pequenito do outro dia?!.... então fiquei mais feliz porque achei que se ele está a comprar um pacote maior é porque talvez tenha a companhia de um ou dois colegas para beber o vinho (o homem é de umas obras perto, de certeza)
      :-)

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  2. Maravilhoso relato. Gostei muito muito!!:))
    *
    Quantas vezes subo os degraus da minha alma
    *
    Um excelente feriado a todos.

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  3. Metes o (grande) Saramago a um canto, digo to eu, com estes dedinhos que a terra há de comer! 😂

    (Trocava essa pescada por uns lombos de bacalhau fresco :)

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    1. Pois eu costumo mesmo é comprar lombos de bacalhau fresco e desta vez, para variar, foi pescada! :-)

      Ó minha doce flor, esses dedinhos fofos estavam um bocado malucos a escrever aquilo ali no começo, estavam estavam.

      Que seja um belíssimo domingo, este.
      Beijinhos!! (aqui pode-se)

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