26/11/2022

Um cêntimo

Esta cidade não é exceção no que ao cumprimento da tradição respeita. As pessoas vivem em casas ordenadas, com jardins geométricos, as bermas e os passeios recebendo aos dias certos a ordem dos caixotes do lixo, também nas cores certas, as pessoas saindo de casa às cinco da tarde nas suas bicicletas munidas das malas de compras e cumprimentando-se quando se cruzam. Vão buscar ao supermercado da pequena cidade os alimentos para a refeição quente do dia, o jantar. Se, uma hora depois, fora desses hábitos mais antigos, caminharmos pela rua, sente-se o cheiro de refeições preparadas em fogões modernos de cozinhas práticas e funcionais. Esta cidade não é exceção. Mas, como qualquer regra, pode aceitar um rasgo de doçura mais fundo, uma manifestação de intenções de criatividade inesperada, até mesmo uma linha de horizonte onde se lê o amor na língua mais universal, pode sim. 

O rapaz chamara-me a atenção logo quando passou por nós na sua altíssima bicicleta e, depois de a arrumar num dos lados da casa, o vi, com a sua mochila atirada ao ombro, a digitar no ecrã do telemóvel enquanto lançava passos enormes até à porta de casa. E agora, na fila do supermercado, reconheço-o. Enquanto vou metendo as nossas compras no saco, que não são muitas, vejo-o erguer o corpo espigado levantando os calcanhares, depois voltando a assentá-los, esfregando as mãos ao lado do corpo, nas calças, sorrindo enigmaticamente. Uma das suas grandes mãos sai da coreografia e vai acariciar o único produto que havia colocado no tapete da caixa: uma vagem de feijão verde, das pequenitas, com a etiqueta que a balança emitiu colada nela, sobrando por todos os lados, ostentando grandes números e um código de barras. Apurei a vista e li o preço da vagem pesada: 0,01 €. O rapaz exultava. O sorriso enigmático mais intenso, luminoso e profundo. Atravessava-lhe uma vaga tonalidade azul, ali parece que brincando com as madeixas de cabelo solto, caído sobre a testa em desordem. Segui o feixe que os seus olhos lançavam e aterrei os meus na rapariga loira, muito holandesa, que registava os produtos na caixa. Os nossos produtos. A vagenzinha de feijão verde aguardava debaixo da enorme etiqueta que apenas lhe deixava as extremidades de fora. Por momentos o conjunto de cabeça que ela usava, ou podemos dizer headset se quisermos, mas eu não quero, o conjunto de cabeça que ela usava, com o microfone a envolver-lhe a frente da boca, combinando com os seus gestos mecânicos e as perguntas que descarregava para os clientes de acordo com a formação que recebera, esse conjunto de cabeça havia escondido o seu rosto corado. A rapariga esforçava-se por parecer profissional, isenta, assética, limpa de emoções. Quase conseguiu. Quando ela nos perguntou se tínhamos selos de desconto e queríamos o papel da fatura, já eu estava imbuída daquele rasgo de doçura que ali esperneava para sair pelos poros de um menino muito alto, quase homem, em jorros de intensa alegria. O que é o amor senão uma estrondosa, insuportável, concentração de alegria?

6 comentários:

  1. como eu andava necessitado de ler assim algo tão alegre e cheio de amor :) obrigado, é muito bom, diria até, pra lá de muito bom

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    1. E que bom é saber isso, Manel. Muito obrigada por cá deixares as tuas tão bem-vindas palavras.

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    1. Foi realmente algo muito bonito de ver. Agora quando vou ao supermercado estou sempre à procura do rapaz junto aos feijões... ou junto à caixa de pagamento. :-)

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  3. Minha querida Susana, queria muito dizer-te isto na altura, quando passei a correr e li, mas, precisamente, a correria, deixou o comentário para depois e é agora:
    Sabes que, ao ler-te, apeteceu-me contar-te uma coisa sobre futebol, agora que até está a decorrer um campeonato do Mundo e tudo lembrei-me ainda com mais força deste meu espanto, na altura, e, agora já não, agora, por habituação, continua já só a encantar-me, foi-se o espanto.
    Então, associando eu aos holandeses uma maneira de desenvolver a vida, vou dizer assim, muito assim "no espectro" de uma certa rigidez matemática, uma certa dureza eficiente, um não mostrar os dentes para algo parecido com rir assim "por dá cá aquela palha", até a língua pode parecer assim um pouco pequenas chicotadas (ai, que me perdoem os holandeses, é apenas a minha sensação) não imaginas o espanto encantado com que fiquei quando, pela primeira vez, num campeonato do Mundo de futebol, vi um imenso mar de alegria laranja, óculos gigantes, pinturas na cara, cabeleiras postiças gigantes laranja, aos caracóis, numa imensa festa, num imenso convite à alegria, a contagiar toda a gente. A "torcida laranja", a apoiar a sua, talvez para sempre, "Laranja Mecânica", a sua selecção a "dar show de bola" e cheios de "samba no pé" os holandeses... É assim até hoje, e o Mundo habituou-se àquela alegria laranja e sente a falta deles quando não estão presentes...Eu sinto...
    E agora quero muito pôr aqui aquela tua frase, também para esta forma tão bonita de exercer este outro tipo de amor: "O que é o amor senão uma estrondosa, insuportável, concentração de alegria?"...
    E que tenhas um fim de semana maravilhoso, Susana, e deveras amoroso e tudo! :-)

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    1. Querida Cláudia, uma lufada de alegria é este teu comentário, aliás, é a tua presença neste pequeno blogue. :-)
      Pois é, os holandeses vibram com a sua seleção. Aliás, paralelamente às suas vidas super organizadas, planeadas e cumpridas, são muito capazes de encontrar alegria em pequenas coisas, o que sempre achei admirável e um exemplo a seguir. Mas regra geral, partilho do teu encantamento ao ver uma alegria comum, de um mar de gente, em uníssono. É o que me faz gostar do futebol das seleções, acho que une as pessoas, e isso é mesmo bom.
      E que tenhas uma excelente continuação de semana, Cláudia, aí a inspirar quem tiver a sorte de te rodear.

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