26/05/2024

As portas

O apartamento onde, em criança, morava com os meus pais e irmãs era servido por duas portas de entrada. Uma, a principal, dava para o hall, a outra, então chamada de serviço, dava diretamente para a cozinha. 

A porta de serviço era a porta onde tocavam o padeiro, o leiteiro e alguma empregada de outro andar que vinha pedir um pé de salsa ou um ovo que lhe faltasse para o pão-de-ló. Ao domingo, também aparecia o Damásio, namorado da última empregada que tivemos. Ele vinha namorar com ela à porta (a porta ficava aberta), ou então vinha buscá-la para passear no seu dia de folga. O Damásio não tinha ordem – provavelmente nem lhe passava pela cabeça pedir – para entrar e namorar com a rapariga dentro de casa. Só me lembro dele à porta. Um dia, achando-o muito alto – eu devia ter seis anos ou sete – perguntei-lhe a idade. Ele respondeu "vinte e um ano". Assim, no singular, “ano”. Lembro-me que fiquei a pensar que não me podia esquecer de dizer “ano” quando eu própria chegasse aos vinte e um. E logo a seguir duvidei se estaria bem assim, vinte e um ano, mas ele sendo tão alto devia saber com certeza e eu ainda teria muitos anos para confirmar aquela maneira esquisita de dizer a idade. A campainha da porta da cozinha tinha um trriimmm potente e irritante, ainda por cima anunciando visitantes que não me despertavam qualquer entusiasmo ou interesse. Se acontecia o tinido estridente tocar quando eu passava perto daquela porta, não escapava a dar um salto de susto.

A porta do hall era muito melhor. Por ela chegavam os avós para jantar, os convidados para a festa de anos de alguma de nós ou, melhor ainda, para a consoada. Também o toque da campainha era muito diferente. Um harmonioso e musical, suave dlim-dlão. Por vezes, o dlim-dlão prenunciava a visita dos padrinhos da minha irmã Catarina que vinham lanchar. Tratava-se de um casal muito distinto. Estavam sempre sorridentes um para o outro, o olhar azul dela pousava no rosto gordinho dele, e era com tanta ternura que o fazia. A sua voz era baixa, falava devagar. Ela conversava comigo e com as minhas irmãs de coisas de mulheres. Eu queria sempre ouvi-la e desejava ser como ela, quando fosse grande, por exemplo aos vinte e um. A distinta senhora fazia os seus próprios casacos compridos de fazenda tão macia. Reagindo ao nosso olhar de admiração, ela estendia uma pontinha do casaco para nós podermos tocar o tecido e confirmar a suavidade. Um dia, ela trouxe-me um presente que anunciou ser adequado ao meu cabelo, ao meu tipo de cabelo. Era um pente com dentes ondulados, muito afastados, que não iriam arranhar-me a cabeça, nem puxar-me os cabelos. Eu detestava pentear-me porque o processo era sempre doloroso, e ela devia saber disso. Aquele pente parecia realmente muito melhor, ao contrário dos outros pentes horríveis. A madrinha da minha irmã Catarina ensinou-me então a utilizar apropriadamente o novo utensílio. Quando terminou, explicou-me de que modo devia colocar o cabelo na almofada quando me deitasse para dormir. Era um modo especial de manter o cabelo penteado e que tinha ainda a vantagem de evitar que se partisse. E eu então, admirada, aprendi que o cabelo, não sendo de vidro nem nada, podia partir-se.

23/05/2024

Banda de borracha

Steve Jobs mostrou numa conferência, algures em 2007, o chamado efeito de banda de borracha ou rubber band effect que a sua equipa havia criado. 
O que é o rubber band effect
Para o demonstrar, Steve Jobs fez o dedo deslizar no ecrã de um telefone Apple mais esperto que os demais, para correr verticalmente uma lista de dados. Também se chama fazer scroll. A lista, obedecendo, correu toda até ao fim. Mas ele continuou de propósito deslizando o dedo como que a forçar a lista a mostrar mais linhas de dados ali no ecrãzinho. É então que surge o tal efeito banda de borracha. A lista exaurida, não tendo mais para andar, estica-se ali um bocado aumentando os espaços e depois faz ao contrário, encolhe. Tal como uma banda de borracha. Isto para sinalizar ao teimoso dedinho que, temos pena, mas já não há mais nada na lista, ok? Com certeza utilizadores da marca referida sabem do que estou a falar. 
Cinco meses depois a Apple depositou o pedido de patente para o novíssimo efeito borrachado. Cinco meses depois veio a revelar-se demasiado tarde. Devia ter sido um dia antes da tal conferência. 

Foi só após a morte de Steve Jobs que a patente foi retirada na Europa: o tal efeito já não havia sido novo, uma vez que o próprio inventor o divulgara previamente. 
Fiquei a saber disto hoje.

(Steve Jobs morreu em outubro de 2011, com apenas 56 anos.) 

22/05/2024

Só faltava começar cada frase com imagina

Comprei, pela wook, em modo entusiasmo e de urgência, um livro de uma autora desconhecida recomendado num local de bom consumo literário.
Logo que chegou a encomenda, apreciei a capa. Pareceu-me infantil, mas o problema com o mundo infantil é meu; portanto endireitei as costas e afastei o cabelo dos olhos. Abri então o livro com uma avidez intacta. De pé, mesmo, entrei-lhe pelas palavras a derrapar. Mastiguei as primeiras pseudoideias com o paladar configurado, a cabeça um bocado inclinada a sul, quer dizer, a mente aberta a qualquer luz que viesse, os olhos bem focados. 
Mas estava a escapar-me um sentido, uma imagem sequer. Alguma lógica. Comecei a correr atrás daquelas palavras que fugiam todas em ausência. Eram e não eram em verbos estranhos ou não. Acompanhadas por doses absurdas de talvezes e incertezas de rumo, parei de comer na terceira página. O problema seria meu, evidentemente. Com certeza as pressas. Pousei o livro, voltaria mais tarde. Depois do trabalho, do banho, de um jantar (da luz verde e azul muito linda na noite). 
Porém, na segunda visita, fui recebida com a mesma bacidez, o mesmo vácuo onde nada cabia. Não pude formar qualquer imagem por deslavada que fosse. Aquelas palavras estão inanimadas. 
Não foi uma possibilidade continuar a leitura, e morri-a na página oito. Entreguei muito depressa o livro à estante, recolhi as mãos limpinhas e consumi a indignação num suspiro intitulado sem-título. Foi melhor assim.

13/05/2024

Uma maiúscula, um número e um caracter esquisito, de resto nada que se possa associar a si, compreende? *

Nos intervalos das horas extra laborais em que estou a tentar provar que sou eu deste lado do ecrã necessitando aceder a um determinado serviço em linha e não a minha mãe ou sei lá avó, através de palavras passe cheinhas de requisitos facílimas de esquecer e declarações de não-robô tipo vá lá era p'ra hoje, por vezes, consigo ler umas páginazinhas de um livro. Poucas.

*não