No dia 23 de Dezembro deixei o Erik à porta do centro comercial Vasco da Gama, para ele fazer as compras de Natal que lhe restavam.
E segui para o trabalho. Mas não antes de o instruir quanto ao autocarro a apanhar de regresso a casa.
"É o 28", disse-lhe eu. Nessa altura ainda os números das carreiras lisboetas não tinham sido promovidos à série 700. "E tem de dizer Portela". "28 Portela. Procura nas paragens."
No final do dia, eu quis saber como tinha sido a aventura das compras.
"Foi tudo perfeito", disse-me ele em inglês. "Recebi muitos desejos de "Feliz Natal"."
E depois contou como foi a luta para encontrar o autocarro 28. Há muitas paragens na Estação do Oriente. De cada vez que um autocarro se aproximava, ele corria a verificar se era o 28.
Quando chegou perto do primeiro, o autocarro já tinha parado. Feliz Natal, informava o ecrã. Bolas, onde estava o número do autocarro?
Lá vem outro. O Erik corria agora mais depressa para verificar o número. Tarde demais. Feliz Natal.
E um terceiro parou logo atrás. Inclinou-se para espreitar. Feliz Natal.
De repente conseguiu ver aproximar-se o número 25. Nesse, ainda em andamento, o ecrã intercalava a mensagem de "Feliz Natal" com a indicação do destino. Ah! Se aquele era o 25, então o 28 não devia andar longe!
Correu mais uma vez, mais rápido que o autocarro mas não que a luz, na tentativa de o apanhar em andamento. Não apanhou. Feliz Natal.
Decidiu entrar. Disse ao condutor, no seu melhor português, que queria ir para a Portela. O condutor deu-lhe as indicações necessárias. "Muito obrigado." "Feliz Natal!"
Foi nesse dia que o Erik me comprou o livro do João Magueijo "Mais rápido que a luz."
Acho que foi por isso que os autocarros brincaram com ele. Para mostrar que naquela corrida são eles os mais rápidos.
Mas não mais do que a luz. Feliz Natal.
Posfácio: esta história está desenquadrada do calendário - que indica finais de Março - mas está enquadrada com a neve fininha que cai lá fora, aqui nos países baixos.
30/03/2013
27/03/2013
Azerbeijámos
Dois a zero, ouvi eu dos meus sempre informados colegas, na hora do almoço.
Mas já disse que não discuto futebol.
A história para hoje é outra.
Eu ainda não tinha completado quatro décadas de vida. Estávamos as três a jantar, em casa. As minhas filhas adolescentes e eu. Elas sentadas à minha frente, do outro lado da mesa.
Como gosto de as ouvir e de estimular a sua expressão de opiniões, não por ser uma mãe exemplar mas sim para me divertir à sua custa, iniciei uma conversa qualquer cujo tema exacto já me fugiu, apesar de não terem passado muitas primaveras desde então.
Provavelmente desatei a utilizar tipo isto e tipo aquilo: "Hoje tipo o meu dia foi tipo bom e tipo o vosso?"
E uma delas: "Ó mãe, não gozes, nós não dizemos tipo assim!"
"Ah não? Então tipo como é que dizem?"
"Sei lá, dizemos, pronto! Não dá para explicar!"
"Explicar", continuo eu a divertir-me, "ou tipo explicar?"
"Ó mãããããee!!!"
"Pronto, está bem. A mãe está velha e gorda!" rematei eu, nem sei porquê.
Dois pares de olhos bem abertos e sérios a fitarem-me, em jeito de avaliação. Os garfos pararam a meio dos trajectos verticais, um ia a subir o outro a descer.
Durou uns segundos, garanto.
Depois saiu o veredicto, sincero, claro:
"Gorda não estás!..."
Mas já disse que não discuto futebol.
A história para hoje é outra.
Eu ainda não tinha completado quatro décadas de vida. Estávamos as três a jantar, em casa. As minhas filhas adolescentes e eu. Elas sentadas à minha frente, do outro lado da mesa.
Como gosto de as ouvir e de estimular a sua expressão de opiniões, não por ser uma mãe exemplar mas sim para me divertir à sua custa, iniciei uma conversa qualquer cujo tema exacto já me fugiu, apesar de não terem passado muitas primaveras desde então.
Provavelmente desatei a utilizar tipo isto e tipo aquilo: "Hoje tipo o meu dia foi tipo bom e tipo o vosso?"
E uma delas: "Ó mãe, não gozes, nós não dizemos tipo assim!"
"Ah não? Então tipo como é que dizem?"
"Sei lá, dizemos, pronto! Não dá para explicar!"
"Explicar", continuo eu a divertir-me, "ou tipo explicar?"
"Ó mãããããee!!!"
"Pronto, está bem. A mãe está velha e gorda!" rematei eu, nem sei porquê.
Dois pares de olhos bem abertos e sérios a fitarem-me, em jeito de avaliação. Os garfos pararam a meio dos trajectos verticais, um ia a subir o outro a descer.
Durou uns segundos, garanto.
Depois saiu o veredicto, sincero, claro:
"Gorda não estás!..."
26/03/2013
I started a test
Fiz o auto-teste que vinha na revista e o resultado foi medíocre: tenho um deficiente sentido de mim.
Parece que não recebo as mensagens secretas da minha essência e sem elas não há aquela coisa de conquistar o mundo.
O teste manda ouvir o coração. Não ouvi o meu nem lhe contei as batidas sem me enganar. Agora até já nem sei se bate.
É melhor sentar-me.
Ali. Na plateia.
Pode ser que apareça o meu Gibb preferido e cante para mim.
Aquela música de a piada ser afinal sobre ele. Assim, nenhum de nós fica sozinho.
23/03/2013
Túlipas de Março
A Primavera não quer vir, estamos todos envoltos num frio memorável e num vento inesquecível.
Aqui na Holanda temos, felizmente, as túlipas. Alindam-nos a mesa e fazem-nos olvidar que lá fora não se pode ir, apesar de o equinócio já ter feito o seu trabalho de casa.
Hoje viveu-se por cá o 23 de Março mais frio desde 1916, a água do mar congelou nas praias do norte do país.
Dentro de casa, no entanto, o aquecimento é poderoso e está-se bem. Está-se bem, a menos, claro, da secura do ar. Não há bela sem senão.
O galito de Barcelos tem andado a rondar a jarra das túlipas, a ver com qual delas quer namorar. Enquanto isso, vai registando fielmente na sua cor azul escarlate que mais seco que isto só se rebentar a escala.
O que o galito não esperava é que a água da jarra se evaporasse num dia, tão entretido andava a escolher a flor mais linda. As túlipas, na espera, penduraram-se da janela. Não sei se de tristeza pela indecisão do galito, se a tentar conquistá-lo. Ele - ah galo rijo! - não mudou de cor por causa disso.
Pelo sim pelo não, deitei água na jarra e pedi às flores para, em troca, me contarem o segredo.
Mas elas, as vaidosas, não me contaram nada. Puseram-se altivas outra vez como se eu não estivesse ali.
O vídeo mostra como foi (o galito, envergonhado, não se quis virar).
Aqui na Holanda temos, felizmente, as túlipas. Alindam-nos a mesa e fazem-nos olvidar que lá fora não se pode ir, apesar de o equinócio já ter feito o seu trabalho de casa.
Hoje viveu-se por cá o 23 de Março mais frio desde 1916, a água do mar congelou nas praias do norte do país.
Dentro de casa, no entanto, o aquecimento é poderoso e está-se bem. Está-se bem, a menos, claro, da secura do ar. Não há bela sem senão.
O galito de Barcelos tem andado a rondar a jarra das túlipas, a ver com qual delas quer namorar. Enquanto isso, vai registando fielmente na sua cor azul escarlate que mais seco que isto só se rebentar a escala.
O que o galito não esperava é que a água da jarra se evaporasse num dia, tão entretido andava a escolher a flor mais linda. As túlipas, na espera, penduraram-se da janela. Não sei se de tristeza pela indecisão do galito, se a tentar conquistá-lo. Ele - ah galo rijo! - não mudou de cor por causa disso.
Pelo sim pelo não, deitei água na jarra e pedi às flores para, em troca, me contarem o segredo.
Mas elas, as vaidosas, não me contaram nada. Puseram-se altivas outra vez como se eu não estivesse ali.
O vídeo mostra como foi (o galito, envergonhado, não se quis virar).
22/03/2013
Havaianas
No início do Verão comprei um par de Havaianas ao Erik. Quis proporcionar-lhe o prazer da chinela de borracha, para que ele pudesse desfrutar de todo o esplendor de um Verão em Portugal.
Assim não seria preciso recorrer à sandália com meia ou, então, à sandália sem meia e com calos. Estranho mas verdade, a ausência da meia faz calos.
A experiência, acreditava eu que do conhecimento universal, era totalmente nova para o Erik. O seu pé descalço não estava treinado. Ao sexto passo firme (que o caracteriza) um dos chinelos disparou e foi aterrar dois metros mais à frente.
Riso controlado: o projéctil não tinha voado por brincadeira mas sim por falta de jeito.
Após uma breve lição da minha parte - eu ainda um pouco incrédula - o caminhar retomou-se livre de lançamentos de chinelo, mas não de um certo encaracolar de dedos dos pés, ainda mais brancos nos nós dobrados.
O prazer das Havaianas teimava em não se dar a conhecer ao Erik, não obstante os seus esforços por se adaptar à novidade.
Iniciámos o caminho estreito de areia em direcção à praia. Ele ia à frente.
E eu cinco passos atrás. Distância de segurança para não interromper o fluxo grosso de areia que jorrava a cada passo, propulsada para cima pelas poderosas Havaianas pretas à minha frente. A propulsão culminava no retorno da areia que, sem escolha melhor, chovia directamente em cima da cabeça dele.
Eu ia satisfeita com a cena, divertimento é coisa garantida com o Erik. Admirada com o poder de lançamento: antes do chinelo para a frente, agora dos jactos de areia para cima.
E para baixo. Ao chamamento da gravidade, o alvo em cheio na sua cabeça.
De repente, o Erik pára. Não se volta para trás. A areia do caminho está agora toda no chão e assim se mantém nos instantes em que ele não se move.
Depois, recomeça. Continua a caminhar em direcção à praia, chapéu de sol ao ombro, passo firme, dedos enrolados, concentração quanto à manutenção do chinelo no pé.
Renovados, recomeçam os lançamentos de areia em direcção ao céu numa cadência que me lembrou vagamente os braços enérgicos do maestro nas elevações da 5ª Sinfonia de Bruckner, uns meses atrás, no Concertgebouw em Amesterdão. Os braços do maestro sobem e descem, a areia torpedo também. Com a diferença de que o maestro manteve os braços longe da cabeça do Erik.
Parou de novo e agora voltou-se para trás. Olhou para mim zangado e eu vi pela primeira vez a expressão dos seus olhos na versão não-estou-a-achar-graça-nenhuma-a-isso.
O resto do Verão decorreu em paz. Não se registaram mais voos de Havaianas pretas tamanho quarenta e quatro nem chuvas de areia propulsionada.
Houve sim que registar os sorrisos dos veraneantes portugueses que com o Erik se cruzaram por essas praias lusitanas.
Com o Erik, com as suas sandálias e com as suas meias.
Assim não seria preciso recorrer à sandália com meia ou, então, à sandália sem meia e com calos. Estranho mas verdade, a ausência da meia faz calos.
A experiência, acreditava eu que do conhecimento universal, era totalmente nova para o Erik. O seu pé descalço não estava treinado. Ao sexto passo firme (que o caracteriza) um dos chinelos disparou e foi aterrar dois metros mais à frente.
Riso controlado: o projéctil não tinha voado por brincadeira mas sim por falta de jeito.
Após uma breve lição da minha parte - eu ainda um pouco incrédula - o caminhar retomou-se livre de lançamentos de chinelo, mas não de um certo encaracolar de dedos dos pés, ainda mais brancos nos nós dobrados.
O prazer das Havaianas teimava em não se dar a conhecer ao Erik, não obstante os seus esforços por se adaptar à novidade.
Iniciámos o caminho estreito de areia em direcção à praia. Ele ia à frente.
E eu cinco passos atrás. Distância de segurança para não interromper o fluxo grosso de areia que jorrava a cada passo, propulsada para cima pelas poderosas Havaianas pretas à minha frente. A propulsão culminava no retorno da areia que, sem escolha melhor, chovia directamente em cima da cabeça dele.
Eu ia satisfeita com a cena, divertimento é coisa garantida com o Erik. Admirada com o poder de lançamento: antes do chinelo para a frente, agora dos jactos de areia para cima.
E para baixo. Ao chamamento da gravidade, o alvo em cheio na sua cabeça.
De repente, o Erik pára. Não se volta para trás. A areia do caminho está agora toda no chão e assim se mantém nos instantes em que ele não se move.
Depois, recomeça. Continua a caminhar em direcção à praia, chapéu de sol ao ombro, passo firme, dedos enrolados, concentração quanto à manutenção do chinelo no pé.
Renovados, recomeçam os lançamentos de areia em direcção ao céu numa cadência que me lembrou vagamente os braços enérgicos do maestro nas elevações da 5ª Sinfonia de Bruckner, uns meses atrás, no Concertgebouw em Amesterdão. Os braços do maestro sobem e descem, a areia torpedo também. Com a diferença de que o maestro manteve os braços longe da cabeça do Erik.
Parou de novo e agora voltou-se para trás. Olhou para mim zangado e eu vi pela primeira vez a expressão dos seus olhos na versão não-estou-a-achar-graça-nenhuma-a-isso.
O resto do Verão decorreu em paz. Não se registaram mais voos de Havaianas pretas tamanho quarenta e quatro nem chuvas de areia propulsionada.
Houve sim que registar os sorrisos dos veraneantes portugueses que com o Erik se cruzaram por essas praias lusitanas.
Com o Erik, com as suas sandálias e com as suas meias.
19/03/2013
Alone again
Sempre que oiço esta música lembro-me de ti.
Durante muito tempo chorava, para deixar sair a tristeza que se alojava.
Alojava-se, a cada batida do meu coração em sangue, no buraco que deixaste na minha alma ao partir.
Para ti, hoje, que é dia do Pai.
18/03/2013
Engurda?
Iamos as três no carro. Lentidão sem fim, Lisboa ainda estava longe e o Sol horizontal a lembrar que era cedo, muito cedo. A Ana qualquer-coisa, que fez o favor de cantar, com letras infantis, compositores clássicos (para me ajudar nestas intermináveis filas de trânsito, tenho a certeza), entretinha-nos pela quinquagésima vez nessa semana. Eu, pela força de tanto ouvir, fiquei definitivamente alérgica tanto a essas composições cantadas como aos originais.
Iamos as três, dizia eu. As miúdas tinham na lancheira o pequeno-almoço, que servia de mata-tempo naquelas manhãs em que calcorreávamos quilómetros muito mais compridos que os outros, e que a mim permitia levantá-las do sono uns preciosos 10 minutos mais tarde.
Nesse dia era uma tremenda barra de cereais açucarados que eu já não me lembrava que tinha permitido, na última visita ao supermercado. E o habitual copo de leite que só por sorte não se entornava quando a roda do carro se metia no mesmo buraco da 24 de Julho (argh!!!!) nos dias em que o sono me entorpecia a atenção.
A mais velha, então com 6 anos, incumbida de garantir que os víveres matinais se distribuíam entre ela e a irmã equitativamente, estende-lhe a tal proibidíssima barra de cereais.
A outra, a quem nada passa sem exame detalhado e comentário na certa, diz:
- Ó Sofiaaa, esses cereais engordam! E eu assim fico... engurda!!!
- Engurda?! - espanta-se a Sofia, barra suspensa a descair em desânimo de rejeição.
A de 4 anos, que entretanto percebe o erro mas não se dá por vencida, declara:
- Ó pá, é inglês!
Iamos as três, dizia eu. As miúdas tinham na lancheira o pequeno-almoço, que servia de mata-tempo naquelas manhãs em que calcorreávamos quilómetros muito mais compridos que os outros, e que a mim permitia levantá-las do sono uns preciosos 10 minutos mais tarde.
Nesse dia era uma tremenda barra de cereais açucarados que eu já não me lembrava que tinha permitido, na última visita ao supermercado. E o habitual copo de leite que só por sorte não se entornava quando a roda do carro se metia no mesmo buraco da 24 de Julho (argh!!!!) nos dias em que o sono me entorpecia a atenção.
A mais velha, então com 6 anos, incumbida de garantir que os víveres matinais se distribuíam entre ela e a irmã equitativamente, estende-lhe a tal proibidíssima barra de cereais.
A outra, a quem nada passa sem exame detalhado e comentário na certa, diz:
- Ó Sofiaaa, esses cereais engordam! E eu assim fico... engurda!!!
- Engurda?! - espanta-se a Sofia, barra suspensa a descair em desânimo de rejeição.
A de 4 anos, que entretanto percebe o erro mas não se dá por vencida, declara:
- Ó pá, é inglês!
15/03/2013
Ayaan Hirsi Ali
Nasceu na Somália e é da minha idade, mais ano menos ano.
Na infância, ouvia as histórias que a avó inventava e que lhe traziam presságios de horror.
Foi espancada por uma mãe que acreditava fazer o que era certo (ainda assim conseguiu amá-la).
Viu a irmã berrar de dor quando lhe cortaram as entranhas e viu-a, mais tarde, enlouquecer de tristeza até morrer.
Fugiu para a Europa quando o pai a obrigou a casar com um homem que ela não escolheu. Ele pagou-lhe, ao homem, um dote generoso para lhe levar a filha e com isso deu-lhe a licença vitalícia de violação e violência. Toma lá a minha filha, trata-a como te aprouver quer ela goste quer não e ainda te pago umas coroas para veres como sou poderoso.
Teve sorte. Foi acolhida na Holanda, mas mentiu ao revelar o seu nome para despistar perseguições. Mesmo assim a família encontrou-a. O intuito era lavar a honra, tirando-lhe a vida. No entanto, não a mataram. Teve mesmo sorte.
Meteu-se na universidade de Leiden e estudou ciências políticas. Foi deputada no parlamento holandês onde defendeu as mulheres como ela, e outras.
Depois, houve que fugir de novo. As ameaças de morte continuavam e chegaram a concretizar-se no realizador Theo van Gogh que com ela fez o filme "Submission". No corpo dele, preso com a faca que o matou, um bilhete dirigido a ela.
A liberdade é um bem a que nem todos têm acesso. E se por sorte ou perseverança a alcançam, podem ter de a pagar com a vida.
Na infância, ouvia as histórias que a avó inventava e que lhe traziam presságios de horror.
Foi espancada por uma mãe que acreditava fazer o que era certo (ainda assim conseguiu amá-la).
Viu a irmã berrar de dor quando lhe cortaram as entranhas e viu-a, mais tarde, enlouquecer de tristeza até morrer.
Fugiu para a Europa quando o pai a obrigou a casar com um homem que ela não escolheu. Ele pagou-lhe, ao homem, um dote generoso para lhe levar a filha e com isso deu-lhe a licença vitalícia de violação e violência. Toma lá a minha filha, trata-a como te aprouver quer ela goste quer não e ainda te pago umas coroas para veres como sou poderoso.
Teve sorte. Foi acolhida na Holanda, mas mentiu ao revelar o seu nome para despistar perseguições. Mesmo assim a família encontrou-a. O intuito era lavar a honra, tirando-lhe a vida. No entanto, não a mataram. Teve mesmo sorte.
Meteu-se na universidade de Leiden e estudou ciências políticas. Foi deputada no parlamento holandês onde defendeu as mulheres como ela, e outras.
Depois, houve que fugir de novo. As ameaças de morte continuavam e chegaram a concretizar-se no realizador Theo van Gogh que com ela fez o filme "Submission". No corpo dele, preso com a faca que o matou, um bilhete dirigido a ela.
A liberdade é um bem a que nem todos têm acesso. E se por sorte ou perseverança a alcançam, podem ter de a pagar com a vida.
12/03/2013
Dama dos anos 20
Tinha três anos, a Ritinha. Já andava na escola, a aprender os conceitos que a idade lhe permitia, a crescer em direcção ao céu, que era o limite da sua imaginação.
Nesse seu mundo imaginário, as Barbies e as princesas eram perfeitas projecções dela própria, tal como se via quando fosse grande.
Naquele Carnaval, quis mascarar-se de princesa. Um vestido cor-de-rosa, farfalhudo, com roda e comprido, uma tiara de brilhantes e, para compor, luvas brancas até ao cotovelo.
A mãe, que tinha de cumprir orçamento apertado e havia mais filhos para mascarar, não comprou o vestido, nem a tiara, nem as luvas brancas. Carnaval é coisa que não merece investimentos dispendiosos, a imaginação de mãe tinha de servir o intento. Por isso, deitou mãos à obra nas gavetas e caixas lá de casa. E encontrou qualquer coisa.
Na noite que precedeu o dia das máscaras na escola, a Ritinha dormiu agitada.O sono trouxe-lhe imagens das histórias que ela conhecia tão bem: a Barbie Rapunzel e a sua condição de princesa, as Bratz que salvavam o mundo com os seus poderes, a Dama e o Vagabundo que viveram uma linda história de amor... de cães.
Pela manhã, havia um vestido cor-de-rosa, pronto, à espera de a transportar para o seu mundo mágico. Tinha franjas e lantejoulas da mesma cor, brilhava e mexia muito. Não era comprido nem podia ser rodado, o corte seguia a direito e parava a meio caminho para dar lugar às franjas irrequietas. Um colar de pérolas que dava duas grandes voltas e a mala pequena de alça longa com as mesmas franjas, feita do tecido do vestido, compunham o quadro e faziam-lhe a máscara.
Deixou-se vestir, desconfiada.
- O que é isto, mãe? Esta máscara é de quê? – pergunta a Ritinha.
- Esta máscara é de “Dama dos anos 20” – a mãe na esperança de a convencer de que estavam perante um traje a rigor e até a imaginou a dançar o Charleston.
- Dama dos anos 20?! Está bem... - concordou, ainda assim satisfeita com a máscara. Já lhe tinha dado um lugar no seu imaginário. Não era princesa, mas era Dama. E dos anos 20, o que soava a coisa muito importante! Pena era não haver um Vagabundo para completar...
No final do dia de escola, a mãe foi buscá-la. A máscara ainda a exibia, orgulhosa, sobrevivente das actividades do dia.
- Ó mãe – perguntou a auxiliar de serviço na entrega das crianças, visivelmente divertida e ao mesmo tempo curiosa – a que está a Ritinha mascarada? É que – continuou – de cada vez que lhe perguntei, ela respondeu "Cadela dos anos 20"...
Nesse seu mundo imaginário, as Barbies e as princesas eram perfeitas projecções dela própria, tal como se via quando fosse grande.
Naquele Carnaval, quis mascarar-se de princesa. Um vestido cor-de-rosa, farfalhudo, com roda e comprido, uma tiara de brilhantes e, para compor, luvas brancas até ao cotovelo.
A mãe, que tinha de cumprir orçamento apertado e havia mais filhos para mascarar, não comprou o vestido, nem a tiara, nem as luvas brancas. Carnaval é coisa que não merece investimentos dispendiosos, a imaginação de mãe tinha de servir o intento. Por isso, deitou mãos à obra nas gavetas e caixas lá de casa. E encontrou qualquer coisa.
Na noite que precedeu o dia das máscaras na escola, a Ritinha dormiu agitada.O sono trouxe-lhe imagens das histórias que ela conhecia tão bem: a Barbie Rapunzel e a sua condição de princesa, as Bratz que salvavam o mundo com os seus poderes, a Dama e o Vagabundo que viveram uma linda história de amor... de cães.
Pela manhã, havia um vestido cor-de-rosa, pronto, à espera de a transportar para o seu mundo mágico. Tinha franjas e lantejoulas da mesma cor, brilhava e mexia muito. Não era comprido nem podia ser rodado, o corte seguia a direito e parava a meio caminho para dar lugar às franjas irrequietas. Um colar de pérolas que dava duas grandes voltas e a mala pequena de alça longa com as mesmas franjas, feita do tecido do vestido, compunham o quadro e faziam-lhe a máscara.
Deixou-se vestir, desconfiada.
- O que é isto, mãe? Esta máscara é de quê? – pergunta a Ritinha.
- Esta máscara é de “Dama dos anos 20” – a mãe na esperança de a convencer de que estavam perante um traje a rigor e até a imaginou a dançar o Charleston.
- Dama dos anos 20?! Está bem... - concordou, ainda assim satisfeita com a máscara. Já lhe tinha dado um lugar no seu imaginário. Não era princesa, mas era Dama. E dos anos 20, o que soava a coisa muito importante! Pena era não haver um Vagabundo para completar...
No final do dia de escola, a mãe foi buscá-la. A máscara ainda a exibia, orgulhosa, sobrevivente das actividades do dia.
- Ó mãe – perguntou a auxiliar de serviço na entrega das crianças, visivelmente divertida e ao mesmo tempo curiosa – a que está a Ritinha mascarada? É que – continuou – de cada vez que lhe perguntei, ela respondeu "Cadela dos anos 20"...
10/03/2013
Os aviões
Os aviões fascinam-me desde criança.
Sempre que o meu avô estava para chegar de viagem, nós íamos buscá-lo ao aeroporto e a minha mãe levava-me ao terraço mágico.
Ficávamos a ver os aviões aterrar e descolar. Eu não respirava para não roubar o ar, que era todo deles. Não me mexia para não lhes perturbar a manobra. Sentia-me minúscula e ao mesmo tempo protagonista de uma aventura inacreditável! Se os meus colegas lá do colégio vissem aquilo! Como podiam os aviões, tão grandes e pesados, contrariar a tendência que tudo o resto tinha, e subir ao céu como se fossem passarinhos, leves e ágeis? Ou então, com toda a delicadeza, mostrar orgulhosos as rodas minúsculas e airosamente beijar o chão como se fosse uma folha de Outono a pousar levemente?
Eram momentos inesquecíveis. Eu tentava adivinhar em qual vinha ele, o meu avô. A minha mãe sabia tudo sobre os aviões, e por isso sabia sempre qual era o dele: olha lá vem ele, já está! Será que o via através de uma das janelas microscópicas? Ou será que os aviões falavam com ela?
Descíamos e eu ia colar o nariz ao vidro até ver o meu avô caminhar em nossa direcção, o porte confiante, que terá ido ele fazer tão longe?
Antes de ter tempo de acabar de crescer, fecharam o nosso terraço. O meu avô continuou a viajar, e nós a ir esperá-lo. No entanto, a magia já não estava lá. Perguntei à minha mãe porque nos tinham feito aquilo, será que roubei um bocadinho do ar aos aviões? Mas isso não sabia ela. Desconfio que também não se conformou.
Apesar disso, a minha mãe continuou a saber os aviões de cor. Bastava-lhe olhar para o céu: olha, lá vai um Boeing 727! Ou um 737. Eu tentava ver-lhes as diferenças, também queria aprendê-los de cor. Achava que o Boeing 727 era mais pequeno que o 737, confiava na lógica dos números escolhidos para os modelos. Muito mais tarde descobri que afinal é ao contrário e que a ordem numérica cresceu para o modelo mais novo.
Hoje, quando vou a conduzir na segunda circular, alinho-me em rota cruzada com o momento da aterragem e deixo que o trem do avião roce delicadamente o tejadilho do meu carro. Assim, mantenho o meu tesouro bem guardado, mesmo sem o nosso terraço, sem a mão da minha mãe e sem tudo o que ela sabia sobre aqueles mistérios. A magia, claro, perdeu cor.
Acho que para ela também. A minha mãe já não olha para o céu e já não diz que modelo é aquele que vai a passar. Eu sei que é porque se zangou por causa do terraço, o tesouro que alguém lhe tirou.
Tenho medo que ela pense que fui eu que lho roubei.
Sempre que o meu avô estava para chegar de viagem, nós íamos buscá-lo ao aeroporto e a minha mãe levava-me ao terraço mágico.
Ficávamos a ver os aviões aterrar e descolar. Eu não respirava para não roubar o ar, que era todo deles. Não me mexia para não lhes perturbar a manobra. Sentia-me minúscula e ao mesmo tempo protagonista de uma aventura inacreditável! Se os meus colegas lá do colégio vissem aquilo! Como podiam os aviões, tão grandes e pesados, contrariar a tendência que tudo o resto tinha, e subir ao céu como se fossem passarinhos, leves e ágeis? Ou então, com toda a delicadeza, mostrar orgulhosos as rodas minúsculas e airosamente beijar o chão como se fosse uma folha de Outono a pousar levemente?
Eram momentos inesquecíveis. Eu tentava adivinhar em qual vinha ele, o meu avô. A minha mãe sabia tudo sobre os aviões, e por isso sabia sempre qual era o dele: olha lá vem ele, já está! Será que o via através de uma das janelas microscópicas? Ou será que os aviões falavam com ela?
Descíamos e eu ia colar o nariz ao vidro até ver o meu avô caminhar em nossa direcção, o porte confiante, que terá ido ele fazer tão longe?
Antes de ter tempo de acabar de crescer, fecharam o nosso terraço. O meu avô continuou a viajar, e nós a ir esperá-lo. No entanto, a magia já não estava lá. Perguntei à minha mãe porque nos tinham feito aquilo, será que roubei um bocadinho do ar aos aviões? Mas isso não sabia ela. Desconfio que também não se conformou.
Apesar disso, a minha mãe continuou a saber os aviões de cor. Bastava-lhe olhar para o céu: olha, lá vai um Boeing 727! Ou um 737. Eu tentava ver-lhes as diferenças, também queria aprendê-los de cor. Achava que o Boeing 727 era mais pequeno que o 737, confiava na lógica dos números escolhidos para os modelos. Muito mais tarde descobri que afinal é ao contrário e que a ordem numérica cresceu para o modelo mais novo.
Hoje, quando vou a conduzir na segunda circular, alinho-me em rota cruzada com o momento da aterragem e deixo que o trem do avião roce delicadamente o tejadilho do meu carro. Assim, mantenho o meu tesouro bem guardado, mesmo sem o nosso terraço, sem a mão da minha mãe e sem tudo o que ela sabia sobre aqueles mistérios. A magia, claro, perdeu cor.
Acho que para ela também. A minha mãe já não olha para o céu e já não diz que modelo é aquele que vai a passar. Eu sei que é porque se zangou por causa do terraço, o tesouro que alguém lhe tirou.
Tenho medo que ela pense que fui eu que lho roubei.
07/03/2013
Alentejo, o lugar que o tempo esqueceu
Chegámos ao Solar dos Lilases era quase meia-noite de uma sexta feira de Novembro e muita chuva.
Mora foi o lugar escolhido, ao acaso. Fomos recebidos por mãe e filha, duas senhoras de uma simpatia que àquela hora já devia pedir retiro, mas que nos aconchegou.
Era preciso preencher dois formulários antes de subirmos ao quarto.
– Ainda têm de ter mais esta maçada - disse a mãe, dona de uma voz tão doce como poucas.
O Solar é do final do século XIX. Tectos que oferecem generosos trabalhos de outros tempos. O cheiro da lareira apagada mantém-se aceso, preso às paredes. Os tapetes de Arraiolos vestem o chão com flores. Uma viagem no tempo.
Sentei-me a uma mesa manca na sala escura a preencher os papeis. O Erik iluminou com o telemóvel o espaço de escrita, que as lâmpadas de baixo consumo demoram a inundar, já era tão tarde!
Quando terminei os impressos, dirigimo-nos ao quarto.
- O do fundo do corredor, lá em cima, pequeno mas sossegado - disse a senhora da voz doce.
Na manhã seguinte, após o pequeno almoço que foi muito abaixo do que a varanda a atirar para o vale de Mora e a sala centenária prometiam, saímos à procura de uma pastelaria, para completar o espaço que ficou livre no estômago.
Entrámos num café num largo que ficaria bem dizer ser o da Igreja, se o fosse. O café tinha na entrada um toldo verde e letras pintadas a amarelo, “D’frade” era o nome.
Ao empurrar a porta somos atacados por aquele cheiro de gordura antiga, irreversivelmente colada ao ar que tinhamos de respirar. Hesitei, mas entrámos. Em Mora não há muitos cafés.
Lá dentro, apenas habitantes locais do sexo masculino que não davam sinais de se incomodarem com o cheiro. São valentes.
Pedimos dois cafés. O bolo não podia ser ali, disse eu ao Erik, baixinho. O dono do café tinha colado um papelinho do lado de dentro do vidro do balcão com bolos engelhados que dizia “0,50 € pastelaria diversa”, que tinha um canto espetado num queque.
Atravessámos a primeira sala que tinha apenas uma mesa ocupada. Eram dois homens de boné, um gordo e um cabisbaixo, em frente a uma televisão cuja cor estava reduzida à palete dos tons de verde, a condizer com o toldo lá fora.
Sentámo-nos com os cafés a uma mesa da sala seguinte. Cobertura de plástico a imitar cortiça e uma jarra com flores artificiais, tristes.
O homem gordo falava muito alto para o homem cabisbaixo. Decidi entreter o Erik e tratei de me sintonizar à conversa deles para ir traduzindo o alentejano e assim oferecer-lhe algo que compensasse a gritaria.
- Tens medo das raposas, tu? – atirou o gordo.
- Então havia de ter medo das raposas, eu? – respondeu o cabisbaixo sem potência na voz.
- Eles vão lá, eles caçam-nas, nós podemos ir com eles.
O outro respondeu com os ombros e não ouvi mais sobre as raposas.
O Erik inventou que eles eram dois matemáticos em elevada discussão científica que ninguém iria entender, informação secreta, disfarçados de alentejanos.
Daí para os neutrinos foi um salto. O neutrino que tinha viajado mais rápido que a luz tinha afinal chegado ao destino apenas 0,03% mais depressa do que se fosse pura luz. Custa a crer. Mas afinal os neutrinos têm ou não têm massa? Gordos não são com certeza, cabisbaixos também não parecem, tão despachados se revelam na corrida!... Concordámos que a história ainda tem muita tinta para gastar.
Voltei a virar as antenas para os matemáticos; era o gordo quem falava, gritava, melhor dizendo. Era acerca daquela que tinha sobrado e à qual ele se tinha agarrado naquela noite, não se lembrava o outro? O outro não, os ombros outra vez a responder.
O matemático gordo insistia, sim, naquela noite, fui bater à tua porta, e depois estava tonto e fui à porta de cima. Nada, o colega cabisbaixo não conseguia lembrar-se.
- Comes muito queijo, tu – rematou o gordo.
Traduzi a conversa para o Erik, que ainda não sabia que nós, portugueses, associamos a qualidade da memória à quantidade de queijo que ingerimos.
Saímos do café gorduroso para a rua fresca, onde estavam a substituir o empedrado do largo sem igreja.
Na esquina próxima anunciavam produtos alentejaníssimos, entrámos. Também tinha cheiro, a queijo, fortíssimo. Vagueámos os olhos pelas prateleiras e escolhemos um vinho tinto da região. Queijo não comprámos, gostamos de manter as memórias frescas.
Pagámos e saímos. Outra vez o fresco da rua nos bateu na cara levando o cheiro a queijo e a imagem dos torresmos, que completavam o quadro alentejaníssimo da loja.
Voltámos para o quarto do Solar dos Lilases. O Erik instalou-se à janela a ler no seu livro electrónico sobre o cérebro e os seus mistérios. Não me lembrei de lhe perguntar se os matemáticos alentejanos eram referidos no livro.
Sentada à secretária que havia no quarto lilás, regressei ao meu trabalho.
Descansei os olhos por diversas vezes no horizonte alentejano, por cima dos telhados cor de tijolo, abaixo de nós. A porta envidraçada do quarto interrompe o tecto esconso onde as grossas vigas de madeira combinam com o cheiro das lareiras que vem lá de fora. Os pássaros embalam-me os pensamentos com o seu canto de Outono.
Por que será que o tempo aqui sabe parar, ficar noutra dimensão?
Talvez pergunte aos matemáticos se lá voltarmos amanhã e eles não tiverem ido caçar raposas.
Mora foi o lugar escolhido, ao acaso. Fomos recebidos por mãe e filha, duas senhoras de uma simpatia que àquela hora já devia pedir retiro, mas que nos aconchegou.
Era preciso preencher dois formulários antes de subirmos ao quarto.
– Ainda têm de ter mais esta maçada - disse a mãe, dona de uma voz tão doce como poucas.
O Solar é do final do século XIX. Tectos que oferecem generosos trabalhos de outros tempos. O cheiro da lareira apagada mantém-se aceso, preso às paredes. Os tapetes de Arraiolos vestem o chão com flores. Uma viagem no tempo.
Sentei-me a uma mesa manca na sala escura a preencher os papeis. O Erik iluminou com o telemóvel o espaço de escrita, que as lâmpadas de baixo consumo demoram a inundar, já era tão tarde!
Quando terminei os impressos, dirigimo-nos ao quarto.
- O do fundo do corredor, lá em cima, pequeno mas sossegado - disse a senhora da voz doce.
Na manhã seguinte, após o pequeno almoço que foi muito abaixo do que a varanda a atirar para o vale de Mora e a sala centenária prometiam, saímos à procura de uma pastelaria, para completar o espaço que ficou livre no estômago.
Entrámos num café num largo que ficaria bem dizer ser o da Igreja, se o fosse. O café tinha na entrada um toldo verde e letras pintadas a amarelo, “D’frade” era o nome.
Ao empurrar a porta somos atacados por aquele cheiro de gordura antiga, irreversivelmente colada ao ar que tinhamos de respirar. Hesitei, mas entrámos. Em Mora não há muitos cafés.
Lá dentro, apenas habitantes locais do sexo masculino que não davam sinais de se incomodarem com o cheiro. São valentes.
Pedimos dois cafés. O bolo não podia ser ali, disse eu ao Erik, baixinho. O dono do café tinha colado um papelinho do lado de dentro do vidro do balcão com bolos engelhados que dizia “0,50 € pastelaria diversa”, que tinha um canto espetado num queque.
Atravessámos a primeira sala que tinha apenas uma mesa ocupada. Eram dois homens de boné, um gordo e um cabisbaixo, em frente a uma televisão cuja cor estava reduzida à palete dos tons de verde, a condizer com o toldo lá fora.
Sentámo-nos com os cafés a uma mesa da sala seguinte. Cobertura de plástico a imitar cortiça e uma jarra com flores artificiais, tristes.
O homem gordo falava muito alto para o homem cabisbaixo. Decidi entreter o Erik e tratei de me sintonizar à conversa deles para ir traduzindo o alentejano e assim oferecer-lhe algo que compensasse a gritaria.
- Tens medo das raposas, tu? – atirou o gordo.
- Então havia de ter medo das raposas, eu? – respondeu o cabisbaixo sem potência na voz.
- Eles vão lá, eles caçam-nas, nós podemos ir com eles.
O outro respondeu com os ombros e não ouvi mais sobre as raposas.
O Erik inventou que eles eram dois matemáticos em elevada discussão científica que ninguém iria entender, informação secreta, disfarçados de alentejanos.
Daí para os neutrinos foi um salto. O neutrino que tinha viajado mais rápido que a luz tinha afinal chegado ao destino apenas 0,03% mais depressa do que se fosse pura luz. Custa a crer. Mas afinal os neutrinos têm ou não têm massa? Gordos não são com certeza, cabisbaixos também não parecem, tão despachados se revelam na corrida!... Concordámos que a história ainda tem muita tinta para gastar.
Voltei a virar as antenas para os matemáticos; era o gordo quem falava, gritava, melhor dizendo. Era acerca daquela que tinha sobrado e à qual ele se tinha agarrado naquela noite, não se lembrava o outro? O outro não, os ombros outra vez a responder.
O matemático gordo insistia, sim, naquela noite, fui bater à tua porta, e depois estava tonto e fui à porta de cima. Nada, o colega cabisbaixo não conseguia lembrar-se.
- Comes muito queijo, tu – rematou o gordo.
Traduzi a conversa para o Erik, que ainda não sabia que nós, portugueses, associamos a qualidade da memória à quantidade de queijo que ingerimos.
Saímos do café gorduroso para a rua fresca, onde estavam a substituir o empedrado do largo sem igreja.
Na esquina próxima anunciavam produtos alentejaníssimos, entrámos. Também tinha cheiro, a queijo, fortíssimo. Vagueámos os olhos pelas prateleiras e escolhemos um vinho tinto da região. Queijo não comprámos, gostamos de manter as memórias frescas.
Pagámos e saímos. Outra vez o fresco da rua nos bateu na cara levando o cheiro a queijo e a imagem dos torresmos, que completavam o quadro alentejaníssimo da loja.
Voltámos para o quarto do Solar dos Lilases. O Erik instalou-se à janela a ler no seu livro electrónico sobre o cérebro e os seus mistérios. Não me lembrei de lhe perguntar se os matemáticos alentejanos eram referidos no livro.
Sentada à secretária que havia no quarto lilás, regressei ao meu trabalho.
Descansei os olhos por diversas vezes no horizonte alentejano, por cima dos telhados cor de tijolo, abaixo de nós. A porta envidraçada do quarto interrompe o tecto esconso onde as grossas vigas de madeira combinam com o cheiro das lareiras que vem lá de fora. Os pássaros embalam-me os pensamentos com o seu canto de Outono.
Por que será que o tempo aqui sabe parar, ficar noutra dimensão?
Talvez pergunte aos matemáticos se lá voltarmos amanhã e eles não tiverem ido caçar raposas.
04/03/2013
O homem do café
O café ali tem um sabor especial.
Talvez pela colecção de candeeiros pendurados orgulhosamente do tecto. Cada um com sua cor e seu tamanho, partilham apenas a forma. Duvido que muita gente os admire, tirando eu, nunca vi ninguém dobrar o pescoço. Eles, no entanto, continuam lá.
Ele também, o homem do café. Às quartas, às segundas, aos domingos, de manhã ou à hora de fechar. Um dia, perguntámos-lhe se tinha folga.
Ele sorriu, como faz sempre, sem parar de limpar vigorosamente o balcão dos bolos. Disse que sim, que folgava uma vez por semana, mas tinha de trabalhar doze horas nos outros dias.
- "Vê a senhora, tenho cinco filhos e quero que todos estudem, três já estão na universidade!" Agora o sorriso que se abriu era quase tão largo como o balcão que estava a limpar.
O Erik, que não nasceu em paragens lusas, sensibiliza-se com a ternura nacional de quem trabalha de sol a sol para proporcionar aos filhos o que aos próprios nem em sonhos se materializou.
No Natal passado, andávamos na azáfama do costume e parámos para um café. Atarefado a atender as exigências dos clientes que tinham encomendado os bolos-rei, os sonhos e as lampreias de ovos, lá estava ele. Luvas higiénicas da praxe, o sorriso sempre atencioso, gestos rápidos, produtividade ligada no máximo, ninguém ficava mal servido.
Aproximámo-nos. Mal nos viu, interrompeu a sequência de movimentos sem se deixar desconcentrar, descalçou a luva direita e estendeu a mão ao Erik para lhe desejar umas boas festas. A ele, a nós, que nem tínhamos encomenda pendente.
O que ele não viu, já tinha retomado o nível de eficiência, foi as lágrimas de comoção nos olhos do Erik.
Semana seguinte, era o último dia do ano. O Erik fez as olliebollen de acordo com as tradições da sua terra nos países baixos, e reservou algumas para o homem do café.
Saímos aperaltados nos nossos brilhos pretos para com eles saudar o novo ano que ia chegar daí a algumas horas. Passámos no café para entregar as delícias estrangeiras.
As cadeiras viradas ao contrário em cima das mesas, a colega do homem do café a varrer o chão, o cabelo em desalinho: o dia devia ter sido longo. As outras lojas do centro estavam fechadas ou a fechar. Metade das luzes já a dormir. Toda a gente saía, o ano velho estava feito. Havia que abraçar o novo, festa rija ou não, cada qual a seu caminho.
- "Ele foi levar o lixo, não deve demorar" - informou-nos a colega da vassoura.
Nem um minuto passou, surgiu ele da porta do elevador que dá acesso à zona de serviço. Vinha apressado. Li-lhe nos pensamentos um alívio de missão cumprida, era hora de recolher e finalmente descansar. Quando levantou os olhos e nos viu, abriu o seu sorriso do tamanho do balcão dos bolos, numa saudação que rasgou o cansaço.
- "Então, foi um dia longo..." - disse-lhe eu.
- "Hoje foi, começou às quatro da manhã." - respondeu cordial mas orgulhosamente, enquanto os apertos de mão se faziam, ele em esforço de disfarçar a fadiga.
Expliquei-lhe que o Erik tinha feito os doces típicos daquele dia, da terra dele, e que lhe tinha reservado alguns para reunir à sua festa de fim de ano. Disse-lhe que pareciam os nossos sonhos, desses que ele nos costuma oferecer com o café, quentinhos, acabadinhos de fritar, mas com outros ingredientes, claro.
Ele não escondeu a surpresa, que lhe brilhou nos olhos. Muito obrigado, disse.
Após as habituais trocas de votos de felicidades, apressámo-nos a sair. Ficou-me gravado na memória o semblante de fadiga extrema que o homem do café trazia depois de ir levar o lixo de um dia de trabalho demasiado longo. Que sonhos terá ele.
Quando lá voltei, já entrado o novo ano, perguntei-lhe como tinha sido a sua festa. Ah!, a festa... tinha sido a dormir... esperar pela meia noite era desafio impossível para aquele dia, informava o seu sorriso.
A dormir... e os seus sonhos, estavam lá?, quis eu perguntar. Não os do Natal, não os do Erik, mas os seus.
Daqueles como os que deixa sonhar aos seus filhos.
Terá ficado algum para ele?
Talvez pela colecção de candeeiros pendurados orgulhosamente do tecto. Cada um com sua cor e seu tamanho, partilham apenas a forma. Duvido que muita gente os admire, tirando eu, nunca vi ninguém dobrar o pescoço. Eles, no entanto, continuam lá.
Ele também, o homem do café. Às quartas, às segundas, aos domingos, de manhã ou à hora de fechar. Um dia, perguntámos-lhe se tinha folga.
Ele sorriu, como faz sempre, sem parar de limpar vigorosamente o balcão dos bolos. Disse que sim, que folgava uma vez por semana, mas tinha de trabalhar doze horas nos outros dias.
- "Vê a senhora, tenho cinco filhos e quero que todos estudem, três já estão na universidade!" Agora o sorriso que se abriu era quase tão largo como o balcão que estava a limpar.
O Erik, que não nasceu em paragens lusas, sensibiliza-se com a ternura nacional de quem trabalha de sol a sol para proporcionar aos filhos o que aos próprios nem em sonhos se materializou.
No Natal passado, andávamos na azáfama do costume e parámos para um café. Atarefado a atender as exigências dos clientes que tinham encomendado os bolos-rei, os sonhos e as lampreias de ovos, lá estava ele. Luvas higiénicas da praxe, o sorriso sempre atencioso, gestos rápidos, produtividade ligada no máximo, ninguém ficava mal servido.
Aproximámo-nos. Mal nos viu, interrompeu a sequência de movimentos sem se deixar desconcentrar, descalçou a luva direita e estendeu a mão ao Erik para lhe desejar umas boas festas. A ele, a nós, que nem tínhamos encomenda pendente.
O que ele não viu, já tinha retomado o nível de eficiência, foi as lágrimas de comoção nos olhos do Erik.
Semana seguinte, era o último dia do ano. O Erik fez as olliebollen de acordo com as tradições da sua terra nos países baixos, e reservou algumas para o homem do café.
Saímos aperaltados nos nossos brilhos pretos para com eles saudar o novo ano que ia chegar daí a algumas horas. Passámos no café para entregar as delícias estrangeiras.
As cadeiras viradas ao contrário em cima das mesas, a colega do homem do café a varrer o chão, o cabelo em desalinho: o dia devia ter sido longo. As outras lojas do centro estavam fechadas ou a fechar. Metade das luzes já a dormir. Toda a gente saía, o ano velho estava feito. Havia que abraçar o novo, festa rija ou não, cada qual a seu caminho.
- "Ele foi levar o lixo, não deve demorar" - informou-nos a colega da vassoura.
Nem um minuto passou, surgiu ele da porta do elevador que dá acesso à zona de serviço. Vinha apressado. Li-lhe nos pensamentos um alívio de missão cumprida, era hora de recolher e finalmente descansar. Quando levantou os olhos e nos viu, abriu o seu sorriso do tamanho do balcão dos bolos, numa saudação que rasgou o cansaço.
- "Então, foi um dia longo..." - disse-lhe eu.
- "Hoje foi, começou às quatro da manhã." - respondeu cordial mas orgulhosamente, enquanto os apertos de mão se faziam, ele em esforço de disfarçar a fadiga.
Expliquei-lhe que o Erik tinha feito os doces típicos daquele dia, da terra dele, e que lhe tinha reservado alguns para reunir à sua festa de fim de ano. Disse-lhe que pareciam os nossos sonhos, desses que ele nos costuma oferecer com o café, quentinhos, acabadinhos de fritar, mas com outros ingredientes, claro.
Ele não escondeu a surpresa, que lhe brilhou nos olhos. Muito obrigado, disse.
Após as habituais trocas de votos de felicidades, apressámo-nos a sair. Ficou-me gravado na memória o semblante de fadiga extrema que o homem do café trazia depois de ir levar o lixo de um dia de trabalho demasiado longo. Que sonhos terá ele.
Quando lá voltei, já entrado o novo ano, perguntei-lhe como tinha sido a sua festa. Ah!, a festa... tinha sido a dormir... esperar pela meia noite era desafio impossível para aquele dia, informava o seu sorriso.
A dormir... e os seus sonhos, estavam lá?, quis eu perguntar. Não os do Natal, não os do Erik, mas os seus.
Daqueles como os que deixa sonhar aos seus filhos.
Terá ficado algum para ele?
01/03/2013
Miúdas à solta
Marginal, sentido Cascais Lisboa. Sete horas e trinta e cinco minutos de uma manhã brilhante de prata, gaivotas no chão, olhos fechados à luz, o sono em fundo. A maré está longe, dá espaço à praia enquanto a Lua deixa. O Sol irradia todo o seu esplendor revigorante. Relembra-me que este nosso país é tão lindo, embora eu saiba que o tempo é curto, mesmo no arrancar do dia.
As miúdas, uma com 3 a outra com 6 anos de idade, encostadas no banco de trás, oscilam ligeiramente para a frente e para trás ao ritmo do pára-arranca a que os privilegiados da linha de Cascais estão votados se querem cumprir horários.
O Nuno Rogeiro fala na rádio. Partilha a sua opinião sobre o estado desta nossa nação ao Sol. Faz previsões de futuro próximo. É o único som acima do ronronar do carro, que também tem sono mas conhece o caminho.
- "E muita gente vai ter de engolir muitos sapos vivos!" - diz o Nuno a dada altura.
Oiço comentar, directamente dos 6 anos de gente, lá atrás, com profunda indignação:
- "Que nojo!"
As miúdas, uma com 3 a outra com 6 anos de idade, encostadas no banco de trás, oscilam ligeiramente para a frente e para trás ao ritmo do pára-arranca a que os privilegiados da linha de Cascais estão votados se querem cumprir horários.
O Nuno Rogeiro fala na rádio. Partilha a sua opinião sobre o estado desta nossa nação ao Sol. Faz previsões de futuro próximo. É o único som acima do ronronar do carro, que também tem sono mas conhece o caminho.
- "E muita gente vai ter de engolir muitos sapos vivos!" - diz o Nuno a dada altura.
Oiço comentar, directamente dos 6 anos de gente, lá atrás, com profunda indignação:
- "Que nojo!"