07/03/2013

Alentejo, o lugar que o tempo esqueceu

Chegámos ao Solar dos Lilases era quase meia-noite de uma sexta feira de Novembro e muita chuva.

Mora foi o lugar escolhido, ao acaso. Fomos recebidos por mãe e filha, duas senhoras de uma simpatia que àquela hora já devia pedir retiro, mas que nos aconchegou.

Era preciso preencher dois formulários antes de subirmos ao quarto.

– Ainda têm de ter mais esta maçada - disse a mãe, dona de uma voz tão doce como poucas.

O Solar é do final do século XIX. Tectos que oferecem generosos trabalhos de outros tempos. O cheiro da lareira apagada mantém-se aceso, preso às paredes. Os tapetes de Arraiolos vestem o chão com flores. Uma viagem no tempo.

Sentei-me a uma mesa manca na sala escura a preencher os papeis. O Erik iluminou com o telemóvel o espaço de escrita, que as lâmpadas de baixo consumo demoram a inundar, já era tão tarde! 

Quando terminei os impressos, dirigimo-nos ao quarto. 

- O do fundo do corredor, lá em cima, pequeno mas sossegado - disse a senhora da voz doce.

Na manhã seguinte, após o pequeno almoço que foi muito abaixo do que a varanda a atirar para o vale de Mora e a sala centenária prometiam, saímos à procura de uma pastelaria, para completar o espaço que ficou livre no estômago.

Entrámos num café num largo que ficaria bem dizer ser o da Igreja, se o fosse. O café tinha na entrada um toldo verde e letras pintadas a amarelo, “D’frade” era o nome.

Ao empurrar a porta somos atacados por aquele cheiro de gordura antiga, irreversivelmente colada ao ar que tinhamos de respirar. Hesitei, mas entrámos. Em Mora não há muitos cafés.

Lá dentro, apenas habitantes locais do sexo masculino que não davam sinais de se incomodarem com o cheiro. São valentes. 

Pedimos dois cafés. O bolo não podia ser ali, disse eu ao Erik, baixinho. O dono do café tinha colado um papelinho do lado de dentro do vidro do balcão com bolos engelhados que dizia “0,50 € pastelaria diversa”, que tinha um canto espetado num queque.

Atravessámos a primeira sala que tinha apenas uma mesa ocupada. Eram dois homens de boné, um gordo e um cabisbaixo, em frente a uma televisão cuja cor estava reduzida à palete dos tons de verde, a condizer com o toldo lá fora.

Sentámo-nos com os cafés a uma mesa da sala seguinte. Cobertura de plástico a imitar cortiça e uma jarra com flores artificiais, tristes.

O homem gordo falava muito alto para o homem cabisbaixo. Decidi entreter o Erik e tratei de me sintonizar à conversa deles para ir traduzindo o alentejano e assim oferecer-lhe algo que compensasse a gritaria.

-          Tens medo das raposas, tu? – atirou o gordo.

-          Então havia de ter medo das raposas, eu? – respondeu o cabisbaixo sem potência na voz.

-          Eles vão lá, eles caçam-nas, nós podemos ir com eles.

O outro respondeu com os ombros e não ouvi mais sobre as raposas.

O Erik inventou que eles eram dois matemáticos em elevada discussão científica que ninguém iria entender, informação secreta, disfarçados de alentejanos.

Daí para os neutrinos foi um salto. O neutrino que tinha viajado mais rápido que a luz tinha afinal chegado ao destino apenas 0,03% mais depressa do que se fosse pura luz. Custa a crer. Mas afinal os neutrinos têm ou não têm massa? Gordos não são com certeza, cabisbaixos também não parecem, tão despachados se revelam na corrida!... Concordámos que a história ainda tem muita tinta para gastar.

Voltei a virar as antenas para os matemáticos; era o gordo quem falava, gritava, melhor dizendo. Era acerca daquela que tinha sobrado e à qual ele se tinha agarrado naquela noite, não se lembrava o outro? O outro não, os ombros outra vez a responder.

O matemático gordo insistia, sim, naquela noite, fui bater à tua porta, e depois estava tonto e fui à porta de cima. Nada, o colega cabisbaixo não conseguia lembrar-se.

-          Comes muito queijo, tu – rematou o gordo.

Traduzi a conversa para o Erik, que ainda não sabia que nós, portugueses, associamos a qualidade da memória à quantidade de queijo que ingerimos.

Saímos do café gorduroso para a rua fresca, onde estavam a substituir o empedrado do largo sem igreja. 

Na esquina próxima anunciavam produtos alentejaníssimos, entrámos. Também tinha cheiro, a queijo, fortíssimo. Vagueámos os olhos pelas prateleiras e escolhemos um vinho tinto da região. Queijo não comprámos, gostamos de manter as memórias frescas.

Pagámos e saímos. Outra vez o fresco da rua nos bateu na cara levando o cheiro a queijo e a imagem dos torresmos, que completavam o quadro alentejaníssimo da loja. 

Voltámos para o quarto do Solar dos Lilases. O Erik instalou-se à janela a ler no seu livro electrónico sobre o cérebro e os seus mistérios. Não me lembrei de lhe perguntar se os matemáticos alentejanos eram referidos no livro.

Sentada à secretária que havia no quarto lilás, regressei ao meu trabalho.

Descansei os olhos por diversas vezes no horizonte alentejano, por cima dos telhados cor de tijolo, abaixo de nós. A porta envidraçada do quarto interrompe o tecto esconso onde as grossas vigas de madeira combinam com o cheiro das lareiras que vem lá de fora. Os pássaros embalam-me os pensamentos com o seu canto de Outono.

Por que será que o tempo aqui sabe parar, ficar noutra dimensão? 

Talvez pergunte aos matemáticos se lá voltarmos amanhã e eles não tiverem ido caçar raposas.

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