04/03/2013

O homem do café

O café ali tem um sabor especial. 

Talvez pela colecção de candeeiros pendurados orgulhosamente do tecto. Cada um com sua cor e seu tamanho, partilham apenas a forma. Duvido que muita gente os admire, tirando eu, nunca vi ninguém dobrar o pescoço. Eles, no entanto, continuam lá. 

Ele também, o homem do café. Às quartas, às segundas, aos domingos, de manhã ou à hora de fechar. Um dia, perguntámos-lhe se tinha folga.

Ele sorriu, como faz sempre, sem parar de limpar vigorosamente o balcão dos bolos. Disse que sim, que folgava uma vez por semana, mas tinha de trabalhar doze horas nos outros dias. 

- "Vê a senhora, tenho cinco filhos e quero que todos estudem, três já estão na universidade!" Agora o sorriso que se abriu era quase tão largo como o balcão que estava a limpar. 

O Erik, que não nasceu em paragens lusas, sensibiliza-se com a ternura nacional de quem trabalha de sol a sol para proporcionar aos filhos o que aos próprios nem em sonhos se materializou. 

No Natal passado, andávamos na azáfama do costume e parámos para um café. Atarefado a atender as exigências dos clientes que tinham encomendado os bolos-rei, os sonhos e as lampreias de ovos, lá estava ele. Luvas higiénicas da praxe, o sorriso sempre atencioso, gestos rápidos, produtividade ligada no máximo, ninguém ficava mal servido.

Aproximámo-nos. Mal nos viu, interrompeu a sequência de movimentos sem se deixar desconcentrar, descalçou a luva direita e estendeu a mão ao Erik para lhe desejar umas boas festas. A ele, a nós, que nem tínhamos encomenda pendente. 

O que ele não viu, já tinha retomado o nível de eficiência, foi as lágrimas de comoção nos olhos do Erik.

Semana seguinte, era o último dia do ano. O Erik fez as olliebollen de acordo com as tradições da sua terra nos países baixos, e reservou algumas para o homem do café.

Saímos aperaltados nos nossos brilhos pretos para com eles saudar o novo ano que ia chegar daí a algumas horas. Passámos no café para entregar as delícias estrangeiras. 

As cadeiras viradas ao contrário em cima das mesas, a colega do homem do café a varrer o chão, o cabelo em desalinho: o dia devia ter sido longo. As outras lojas do centro estavam fechadas ou a fechar. Metade das luzes já a dormir. Toda a gente saía, o ano velho estava feito. Havia que abraçar o novo, festa rija ou não, cada qual a seu caminho.

- "Ele foi levar o lixo, não deve demorar" -  informou-nos a colega da vassoura.

Nem um minuto passou, surgiu ele da porta do elevador que dá acesso à zona de serviço.  Vinha apressado. Li-lhe nos pensamentos um alívio de missão cumprida, era hora de recolher e finalmente descansar. Quando levantou os olhos e nos viu, abriu o seu sorriso do tamanho do balcão dos bolos, numa saudação que rasgou o cansaço. 

- "Então, foi um dia longo..." - disse-lhe eu.
- "Hoje foi, começou às quatro da manhã." - respondeu cordial mas orgulhosamente, enquanto os apertos de mão se faziam, ele em esforço de disfarçar a fadiga.

Expliquei-lhe que o Erik tinha feito os doces típicos daquele dia, da terra dele, e que lhe tinha reservado alguns para reunir à sua festa de fim de ano. Disse-lhe que pareciam os nossos sonhos, desses que ele nos costuma oferecer com o café, quentinhos, acabadinhos de fritar, mas com outros ingredientes, claro.

Ele não escondeu a surpresa, que lhe brilhou nos olhos. Muito obrigado, disse.

Após as habituais trocas de votos de felicidades, apressámo-nos a sair. Ficou-me gravado na memória o semblante de fadiga extrema que o homem do café trazia depois de ir levar o lixo de um dia de trabalho demasiado longo. Que sonhos terá ele.

Quando lá voltei, já entrado o novo ano, perguntei-lhe como tinha sido a sua festa. Ah!, a festa... tinha sido a dormir... esperar pela meia noite era desafio impossível para aquele dia, informava o seu sorriso.

A dormir... e os seus sonhos, estavam lá?, quis eu perguntar. Não os do Natal, não os do Erik, mas os seus. 

Daqueles como os que deixa sonhar aos seus filhos.

Terá ficado algum para ele?

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