Ponho o pé no travão e imobilizo o carro junto ao semáforo, está vermelho.
Um homem e duas mulheres iniciam a travessia da estrada, ele leva uma mala de computador a tiracolo, elas a obrigatória mala de senhora e uma lancheira cada uma que, alvitro eu, lhes acondiciona o almoço.
Desvio os olhos dos transeuntes e penduro-os no círculo vermelho luminoso acima da minha cabeça. Observo-lhe as nervuras rectilíneas que se entrecruzam na forma convexa do vidro.
O sol brilha no céu azul e frio e inunda-me o rosto desta luz, arranca-me daqui e despeja-me naquele dia em que a minha lancheira do almoço era maior que estas que cruzam a estrada, era branca e tinha bolas encarnadas. Se isto fosse um filme a coisa fazia-se assim: de um plano close-up da luz vermelha do semáforo morria-se para o plano também close-up de uma das bolas da minha lancheira e depois a andar para trás até se ver a lancheira toda, e até se ver que eu era pequena e que punha com esforço a lancheira em cima da mesa do refeitório do colégio. Mas isto não é um filme, é um blogue.
Tenho cinco anos, não gosto do cheiro do refeitório, caminho com cuidado sempre que aqui entro porque o chão costuma estar gorduroso e eu não quero escorregar nem quero cair.
Chego ao meu lugar na mesa compridíssima, elevo a lancheira com esforço e ponho-a em cima da mesa, como a imagem do filme já mostrou, tiro o pano, que desdobro, e estendo-o na fórmica branca, agora o molho de talheres que vem dentro de um envelope de tecido de algodão com as inicias da minha avó bordadas, na berma do pano. Sai o prato que é de plástico amarelo, de plástico porque aos cinco anos há o risco de partir um prato se for de loiça, e amarelo porque a minha mãe gosta muito desta cor e fica aqui bem ao lado do pano das iniciais, com os talheres. E agora o termos. Desenrosco a tampa, sinto que o que lá vem dentro ainda está morno, e espreito.
Carne aos bocados. Detesto carne aos bocados.
Deito o conteúdo no prato amarelo - a carne aos bocados e a massa, também vem massa - e sento-me.
Começo a comer a massa.
Enquanto luto para que o fio de esparguete não demore muito a entrar-me na boca, não é fácil manobrar estes fios compridos, quase me falta o ar, espreito pelo canto do olho à procura da dona Efigénia, a senhora temível que toma conta deste refeitório e que nunca o limpa, acho eu, a ver se ela está a olhar para cá. Não está. Pego no primeiro bocado de carne aos bocados e deito-o para o chão, debaixo da mesa, disfarçadamente.
Mais um comprido fio de esparguete a debater-se comigo, desta vez o meu poder de sucção é tal que a ponta do fio bate-me no nariz antes de me entrar na boca, e a dona Efigénia distraiu-se outra vez com o António Manuel, que é uma peste e está a dar-me agora um jeitão que ele seja uma peste.
Vou alternando os lançamentos de pedaços de carne aos bocados para a direita e para a esquerda, debaixo da mesa, não vá o chão perto dos meus pés ficar saturado e eu ser apanhada a fazer pior que o António Manuel.
Continuo a comer a massa, cada vez mais confiante, e continuo a popular o gorduroso chão do refeitório, que agora já sei porque era gorduroso aquele chão.
E termino o serviço. O meu prato está que nem sol sem nuvens isento de mácula ou vestígios, a minha barriga cheia de esparguete e o chão já se sabe.
Levanto-me e começo a arrumar tudo outra vez dentro da lancheira com bolas encarnadas. O refeitório já está quase vazio mas eu faço-o devagar, para despistar suspeitas. Sinto-me poderosa, porque disto nem a minha mãe vai saber, a não ser que me ande a ler o blogue.
Se a minha querida mãe me anda a ler o blogue não sabemos, o que sabemos é que a dona Efigénia está a inspeccionar o chão debaixo da mesa onde eu ainda estou, agora a dobrar o pano, que fecho neste fim de espectáculo.
- Ó menina! Aquela carne não é sua? (o meu coração dispara e eu finjo que não oiço a dona Efigénia)
- Menina! Havia carne parecida com aquela no seu prato, que eu vi! (continuo a fingir que não oiço, o meu nome não é "menina", António Manuel, onde estás?)
O carro de trás apitou, o sinal estava verde.
Arranco e penso que nunca se deve confiar nas pessoas que não aprendem a chamar-nos pelo nome, nem quando fazemos asneiras.
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