Nove de fevereiro de dois mil e catorze, vinte horas e trinta minutos.
É domingo e eu podia estar noutro lado qualquer, mas é no aeroporto de Amesterdão que estou, chama-se ssrrripôl este aeroporto, se fôr à holandesa, e não xipól como apetece ler, à portuguesa.
Atravesso o enorme hall que tem lojas de um lado e do outro tem uma fileira de assentos novos com acessos à internet para quem precisa muito de comunicar. Quem não precisa muito continua, como eu, a pensar se não fosse o café daqui tão caro, parava e sentava-me a tomar um.
Sinto-me zonza como quase sempre acontece neste espaço que me engole e os brilhos do chão confundem a profundidade que os meus olhos focam, abaixo dos meus pés.
Caminho em direcção às portas da ala C, o voo para Lisboa vai partir da C18 a fazer fé na indicação do meu papel de embarque dobrado em três para ficar elegante.
O painel de informação à boca do acesso desta ala lista alguns voos mas nenhum se destina a Lisboa. Olha, olha, querem lá ver isto agora? Volto atrás, atravesso de novo o átrio de brilhos e gente, até chegar ao ecrã de informação que sabe sobre todas as alas. O voo para Lisboa fugiu para a ala D, está explicado, e eu subo no elevador, o acesso à escada está em obras, depois mais obras e um corredor infinito, escadas agora para baixo, estas sem obras, porta D73.
O voo vai combinado com uma companhia aérea chinesa e os passageiros que já aqui estão não escondem o facto. Sento-me, finalmente. À minha frente uma mulher jovem com um menino que não tem mais de oito anos. Observo este menino que tem olhos tão bonitos, com as pálpebras sem curvatura, as pestanas em escovinha fina e curta, o cabelo espetado, os sapatos de ténis com luzes verdes a piscar a cada salto, pirueta, correria, o miúdo não sossega e eu não tiro os olhos dos dele quando se viram para cá. Aprendi há muito tempo que não é preciso desviar os olhos dos de uma criança, ela aguenta o nosso olhar sem constrangimento. E muitas das vezes devolve-o com um sorriso. Não foi o caso, este menino chinês dos sapatos de luzes verdes não me sorriu. A mãe dá-lhe, agora, uma ordem, o menino não obedece, continua. Ela repete e ele repete. Ela levanta-lhe a mão e serve o gesto com um torcer de boca que nem a mim, que nasci caucasiana, me deixa dúvidas. Ele levanta-lhe a mão também. Ela torna a levantar a mão, retorce mais a boca, solta um guincho e o menino começa a bater na mãe, uma palmada, duas, três, a rir. A mãe pestaneja, encolhe-se para trás, vira a cara para não apanhar mais e o menino pára de lhe bater, regressa às tropelias.
Estão a chamar para o embarque e toda a gente se põe de pé em formação humana mais ou menos alinhada, em direcção a Lisboa.
Três horas depois de muito ler e algum dormir, iniciamos a descida para a capital lusa e o comandante avisa-nos que há ventos fortes de oeste, ventos desagradáveis num aterrar em pista orientada a norte-sul, como é esta. Senhores passageiros, diz ele, a aterragem vai ser difícil.
O avião continua a descer e vejo à minha esquerda, estou à janela, a linha de costa que vai terminar no joelho de Cascais. Volta alargada, curva a contornar a praia, se tivesse uma valsa nos ouvidos, saber-me-ia este volteado a passo de dança. Endireitou-se a máquina, sobrevoou a ponte com trânsito condicionado àquela hora mas isso só vim a saber depois, e então sim, começou um rock bem dançado, asa abaixo asa acima, e abaixo e acima. Lisboa já tinha anoitecido há muito, não lhe vejo o semblante acolhedor com que normalmente me dá as boas vindas, Lisboa está inquieta, o avião salta, ginga e a cidade mais perto e depois mais longe e mais perto e mais longe. E então oiço os outros passageiros a fazer barulho, são quase gritos?, esta dança acompanhada em coro de aflição, terei eu entoado o medo também?
Passamos por cima da segunda circular e o edifício novo da ZON veio cumprimentar-me à janela, para se afastar logo a seguir, ficou lá em baixo, já não o vejo, está quase, não está?
O avião acelera, vai levantar outra vez? Não, é uma roda no chão e depois a outra, a travagem põe toda a gente a dar beijos esborrachados no lugar da frente, eu segurei o meu com as duas mãos, que beijoca tão grande, agora o último passo da valsa, guinada à esquerda, os travões a rugir em fúria e todos a fazer a festa final, bravo!, bravo!, diziam, como na ópera se diz, as palmas, essas, duraram o resto da pista.
O comandante veio ao micro, os últimos minutos foram duros, hein? e agradece a ovação e deseja uma boa noite a todos.
Já estamos imóveis à porta e vejo a minha mão tremer enquanto retira o telefone da mala, tenho mensagens de toda a família, agora toca, já aterraste?
E depois soube que o Benfica e o Sporting ficaram adiados e que nem a Luz escapou ao vento.
Nós escapámos.
Já dentro do edifício, enquanto caminho atordoada atrás dos outros, agora não é dos néons de ssrrripôl que estou assim, vislumbro, entre os muitos passos à minha frente, as luzes verdes dos sapatos do menino chinês que bate na mãe.
E nessa altura desejo que ele também escape. Ele, mas só se ela quiser.
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