14/06/2014

Azeitonas pretas do Alentejo

Na manhã do dia em que completaste dezassete anos, eu trazia na alma, bordada, a memória dos teus olhos acabados de nascer, duas azeitonas pretas colhidas da melhor oliveira, aquela que se pode encontrar no centro geométrico do Alentejo.

Fui ao estendal da roupa ajeitar as tuas calças de ganga que, como tu, recuperavam de uma noitada com os amigos desde a hora da madrugada que te trouxe a casa. Tens o hábito, tão recente como a tua gradual liberdade, de pendurar a roupa que trazes dos locais com fumo de cigarro para que, enquanto dormes, se liberte das impressões deixadas por esses lugares onde pensas que eu sei que moram os perigos da juventude.

Ainda dormes. O sol já teve tempo de te espreitar os bolsos e aquecer a fivela do cinto que deixaste metido nas presilhas. Ajeitei as tuas calças na manhã em que completaste dezassete anos de vida e, ao fazê-lo, caiu de um dos bolsos um pequeno isqueiro Bic.

Baixei-me para lhe pegar.

Acolhi o objecto estranho na mão e assaltaram-me em catadupa as memórias cruzadas dessas azeitonas pretas que se abriram para mim no dia em que nasceste, que reflectem um brilho vindo de todo o lado porque foram colhidas no centro geométrico do Alentejo, esses frutos negros que me mostraram do mundo perspectivas mais intensas, onde decifrei as tuas angústias de menina, a iminência das tuas lágrimas, o medo que tiveste de voltar à escola daquela vez que te bateram, pérolas negras que exalavam a alegria que te fazia torcer as mãos nervosamente enquanto me observavas a abrir o presente que me tinhas comprado com a tua mesada: os brincos que eu admirara dias antes numa loja, memórias que este isqueiro Bic, que me veio parar à mão na manhã dos teus dezassete anos, me está a entregar numa bandeja esburacada.

Lembrei-me das canetas. Estou a tentar endireitar o volante, retomar a direcção da minha existência para não embater com força, tornar à realidade feliz que me tinha inundado esta manhã, encontrar forma de estancar o ácido que se está a derramar dentro de mim, e lembrei-me das canetas e do reclame da televisão. Gaveta emperrada de uma memória muito anterior à tua existência, situada na minha juventude insípida passada longe dos perigos que a mim não bateram à porta, que eu saiba, havia um frigorífico enorme na quinta das duas irmãs que eram nossas amigas, minhas e das tuas tias, e na televisão bic laranja bic cristal, duas escritas à vossa escolha, bic laranja da escrita fina, bic cristal da escrita normal, bic bic bic, bic bic bic.

O sol está a queimar-me a vista, sinto um fio de suor a escorrer-me no peito, tenho o teu dia para preparar mas paralisei, filha, tu andas a fumar?

Esperei que acordasses. Vieste abraçar-me com o teu sorriso luminoso, igual a sempre, imperturbável pela sopa de angústias em que o isqueiro me mergulhou, bom dia mãe. Devolvi-te o abraço, dei-te os parabéns, fiz tudo o que teria feito se dos teus bolsos tivesse caído uma caneta Bic. Depois disse-te
-          Encontrei um isqueiro nas tuas calças.
-          Um isqueiro?... Ah, é da Constança, ela tinha umas leggings sem bolsos e pediu-me para lhe guardar o isqueiro. E eu esqueci-me de lho devolver, mãe, o isqueiro é da Constança!
-          Mas a Constança fuma?
-          Claro, imensa gente fuma, mãe, mas eu não! Tens de confiar em mim, eu experimentei aquelas vezes que tu sabes mas não repeti, juro! É da Constança, ela tinha leggings e leggings não têm bolsos.

Continuámos pelo teu dia fora, como tínhamos combinado. Na feira do livro conseguiste o autógrafo do José Luís Peixoto, pedi-lhe para vos fotografar juntos por ser o dia dos teus anos, ele exclamou logo, mas tu já sabias, que é no mesmo dia do Fernando Pessoa. As tuas azeitonas brilharam muito.

A manhã do dia dos teus dezassete anos foi ontem e eu não sei se a Constança tinha usado leggings na véspera. 

Mas sei que estar feliz é perigoso. Mesmo quando se teve uma filha que trazia azeitonas pretas do Alentejo no dia do aniversário de Fernando Pessoa.

2 comentários:

  1. Olá Susana,
    Ser mãe, ter dúvidas e inseguranças que só mãe, que é mãe, entende ;)

    bjn

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    1. É mesmo, Carmem. Tão difícil e tão bom ao mesmo tempo! :-)

      Um beijo e bem-vinda!

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