No outro feriado com que a pátria nos presenteou a todos esta semana, sem olhar a regiões nem nada, observando a igualdade de oportunidades e essas coisas bonitas, o dez de junho é pausa geral, foi o dia em que finalmente pisei os terrenos da feira do livro número oitenta e quatro.
(o Skyfall da Adele também dá boas desafinações dentro do meu carro, só para avisar, já agora)
É portanto o Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades (por respeito escrevo aqui as maiúsculas apesar da minha ligeira alergia a maiúsculas) e eu estou de cócoras à beira de uma estante giratória de arame grosso, desenhando formas onde encaixam imensos livros de bolso que me estão a interessar. Tento puxar um deles, mas o arame tem as voltas altas e o livro não sai, espremo-o, aperto-o, com muito respeito, trata-se de um livro, um livro que há-de ir parar aos bolsos de quem o levar, mas um livro, deixa lá ver assim, inclinar um nadinha, argh! conseguir tirar isto daqui só se vier o King Kong torcer esta porcaria, raios, o livro está aprisionado ou eu não tenho jeito nenhum para tirar livros de estantes giratórias, vem à minha mão, vem lá queridinho.
- Nunca li "O Crime do Padre Amaro" - oiço dizer a mulher para o homem com ar de seu marido de muito tempo, ambos em pé defronte do mesmo escaparate giratório que eu, mas eu aqui de cócoras agarrada à última fila, com as duas mãos a dar puxões que me revelam já o nervosismo, e o livro é mesmo esse do Padre Amaro, que eu espremo e tento subtrair à estrutura teimosamente protectora, que maricas!, eu não o vou roubar, ó! Olho para cima: mas leia, leia! digo à senhora. Esta senhora é das muitas que não gosta que estranhos lhe falem, e portanto observa por cima dos óculos uma qualquer verruga das costas da sua mão que subitamente ficou muito mais urgente que o crime que o Padre Amaro não pôde deixar de cometer, estava à vista de todos, a Amélia foi-lhe irresistível. Pronto, a senhora não ouve os meus conselhos, eu não sou o King Kong, os livros ficam lá todos agarradinhos uns aos outros presos nas grades giratórias, e eu a pensar que a ideia era vendê-los, seus pindéricos!
Levanto-me cheia de calor de me ensaiar em gorila ou lá que macaco é o King Kong, e a minha baixa pressão arterial faz-se notar, vejo as estrelinhas à frente do Eça aprisionado, mas por via da experiência que tenho destas estrelas, recupero num instante.
- Olhe minha senhora, o Crime do Padre Amaro, se quer saber, li-o em Barcelona, é um livro que se lê muito bem em Barcelona, sabe? Fica-lhe a matar, não a si, à cidade, que é muito gótica, não sei se já lá foi, já?, fica-lhe mesmo bem um crime assim, todo cheio de paixão e arrebatamento que para mim aquilo não foi crime nenhum, crime é os padres não casarem nem nada, deus me perdoe e à senhora, que já vai nessa idade toda e ainda não leu o livro, convenhamos que é uma falha, concorda?
Era isto que se formava no meu cérebro e me ia sair em direcção àquela senhora, mas não saiu, porque ela já se lançava a subir a rua da feira do livro número oitenta e quatro e a abanar-se com a mão de um braço e o outro enfiado no do marido, um marido obviamente antigo.
A dúvida que me ficou foi se ela se abanava para afastar as ideias do crime que o padre cometeu ou se era do calor, que nesse dia ainda não tinha chegado lá muito em força, eu é que, já contei, foi de me armar em chimpanzé que vi as estrelinhas.
Eu cá fico na minha, não estava calor, portanto...
E nós, como ficamos? Pode ser em modo de Feeling good, pode? Escolho o Michael Bublé por ser mais giro que a Nina Simone, se não há nada em contrário.
(se houver quem inteligentemente se pergunte para que me esmifrei eu na tentativa de recolher um livro que já li em Barcelona, é só porque o queria ler agora em Lisboa e de cócoras pareceu-me bem)
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