- Está tristonha.
(tristonha é palavra que não me assenta, mas não estava ali
mais ninguém)
- Quem? Eu?
- Não, a Lua.
Do alto da avenida cujo nome muita gente deve saber, aquela
que se estende perpendicular ao rio, alinhada com as torres são gabriel e são
rafael plantadas no parque das nações (se eu escrevesse isto tudo como deve
ser, ficava aqui uma população de maiúsculas e que feio ficava) até ao
aeroporto, vemos os dois, o taxista e eu, enquanto o semáforo descansa no
vermelho, erguer-se a Lua um pouco acima do rio Tejo, como de resto é seu costume.
Apresenta-se hoje a meio gás, um gás cor de laranja ácida muito quente disposto
numa metade com diâmetro que faz inveja com certeza à jante de liga leve com
imensas polegadas que se punha dantes no audi quê sete e agora não sei, mas é
capaz (aquilo das maiúsculas mantém-se).
- Tristonha?! Eu acho-a tão bonita, assim, enorme e daquela
cor…
- Não… parece tristonha. Mas a senhora também, já da outra
vez que a levei (o taxista lembra-se de mim) achei-a um bocado tristonha.
É que não, isso eu não. Não me assenta, comecei por dizer
ali em cima, mas o condutor que me leva a casa não vai ler isto e por
conseguinte deixei-o nas suas deambulações, eu tenho é de me deitar a treinar a
memória, que deste condutor não me recordo eu.
Hesito se termino aqui a escrita que já não é cedo e havemos de querer descansar, oito horas de sono é que é e nós aqui no Portugal é raro, mas como não
escrevo há muitos dias, vai mais um bocadinho.
O comboio em que sigo pára na estação Amsterdam Bijlmer Arena e
eu recordo-me que foi nesta feia estação que um dia vi a mais bela cena entre dois animais, um pássaro abraçar outro com uma asa, foi também o momento em que me arrependi deveras de não
aderir que nem louca às tecnologias que me permitiriam agora evidenciar a
maravilha que aquilo foi, um pousado na estrutura metálica alta por cima de mim,
enfiado sobre si mesmo, meio tremeliques, feito numa bola preta. Eu esperava o
comboio e olhava para cima, o pássaro parece não estar bem, e foi quando
o outro veio, pousou ao lado, rodou a cabeça para o companheiro, como que a
inquirir-se que terá este meu irmão, que lindo pássaro era, aliás os dois, o
tremeliques e o viçoso inquiridor, há-os em grande número nas estações de comboio
neerlandesas, e eu a olhar para eles e a roer-me de raiva com o meu telemóvel
muito bom para telefonar e assim de repente acho que para mais nada, já lá vão uns
três longos anos, isso é preciso ver. E então o viçoso chega-se mais ao mano e olha-o e observa-o, tenta descortinar-lhe uma cabeça, digo eu, qualquer coisa com forma no meio da bola
de penas pretas tremeliques, e eis que levanta a asa daquele lado e cobre o irmão
com ela, isto de eles serem irmãos é que não pude confirmar. O Tremeliques, que
acaba de ganhar o direito à maiúscula, desenrolou a cabeça lá do corpo dele e
olhou para o outro, ensonado, o que foi? E então é um ajeitar de asa, um aconchegar, um
inclinar ainda mais inquiridor de cabeça, isto teria eu filmado se pudesse, mas ai que o
Tremeliques não responde, retoma a sua forma redonda e o vibrar desordenado, o pássaro não está bem.
O Viçoso, a esta hora merecedor indubitável da maiúscula que lhe serve, retirou-se pois, batendo as
asas em direcção à vida que a ele ainda certamente sorri.
Afinal pensando bem, sim, tristonha eu.
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