a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

13/01/2015

A Lua e outro conto (mais não, podia cansar)

- Está tristonha.

(tristonha é palavra que não me assenta, mas não estava ali mais ninguém)

- Quem? Eu?

- Não, a Lua.

Do alto da avenida cujo nome muita gente deve saber, aquela que se estende perpendicular ao rio, alinhada com as torres são gabriel e são rafael plantadas no parque das nações (se eu escrevesse isto tudo como deve ser, ficava aqui uma população de maiúsculas e que feio ficava) até ao aeroporto, vemos os dois, o taxista e eu, enquanto o semáforo descansa no vermelho, erguer-se a Lua um pouco acima do rio Tejo, como de resto é seu costume. 

Apresenta-se hoje a meio gás, um gás cor de laranja ácida muito quente disposto numa metade com diâmetro que faz inveja com certeza à jante de liga leve com imensas polegadas que se punha dantes no audi quê sete e agora não sei, mas é capaz (aquilo das maiúsculas mantém-se).

- Tristonha?! Eu acho-a tão bonita, assim, enorme e daquela cor…

- Não… parece tristonha. Mas a senhora também, já da outra vez que a levei (o taxista lembra-se de mim) achei-a um bocado tristonha.

É que não, isso eu não. Não me assenta, comecei por dizer ali em cima, mas o condutor que me leva a casa não vai ler isto e por conseguinte deixei-o nas suas deambulações, eu tenho é de me deitar a treinar a memória, que deste condutor não me recordo eu.

Hesito se termino aqui a escrita que já não é cedo e havemos de querer descansar, oito horas de sono é que é e nós aqui no Portugal é raro, mas como não escrevo há muitos dias, vai mais um bocadinho.

O comboio em que sigo pára na estação Amsterdam Bijlmer Arena e eu recordo-me que foi nesta feia estação que um dia vi a mais bela cena entre dois animais, um pássaro abraçar outro com uma asa, foi também o momento em que me arrependi deveras de não aderir que nem louca às tecnologias que me permitiriam agora evidenciar a maravilha que aquilo foi, um pousado na estrutura metálica alta por cima de mim, enfiado sobre si mesmo, meio tremeliques, feito numa bola preta. Eu esperava o comboio e olhava para cima, o pássaro parece não estar bem, e foi quando o outro veio, pousou ao lado, rodou a cabeça para o companheiro, como que a inquirir-se que terá este meu irmão, que lindo pássaro era, aliás os dois, o tremeliques e o viçoso inquiridor, há-os em grande número nas estações de comboio neerlandesas, e eu a olhar para eles e a roer-me de raiva com o meu telemóvel muito bom para telefonar e assim de repente acho que para mais nada, já lá vão uns três longos anos, isso é preciso ver. E então o viçoso chega-se mais ao mano e olha-o e observa-o, tenta descortinar-lhe uma cabeça, digo eu, qualquer coisa com forma no meio da bola de penas pretas tremeliques, e eis que levanta a asa daquele lado e cobre o irmão com ela, isto de eles serem irmãos é que não pude confirmar. O Tremeliques, que acaba de ganhar o direito à maiúscula, desenrolou a cabeça lá do corpo dele e olhou para o outro, ensonado, o que foi? E então é um ajeitar de asa, um aconchegar, um inclinar ainda mais inquiridor de cabeça, isto teria eu filmado se pudesse, mas ai que o Tremeliques não responde, retoma a sua forma redonda e o vibrar desordenado, o pássaro não está bem. 

O Viçoso, a esta hora merecedor indubitável da maiúscula que lhe serve, retirou-se pois, batendo as asas em direcção à vida que a ele ainda certamente sorri.

Afinal pensando bem, sim, tristonha eu.

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