a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

15/02/2022

Espremedora

Tenho estado a ler Daniel Maia-Pinto Rodrigues. Oh! É poesia que me atropela os sentidos e me dá piparotes na cabeça do lado esquerdo e do lado direito se for preciso. Sim senhor. Gratidão é o que me ocorre, entre outros deslumbres. Espanto também podia ser, mas estou a ficar enjoada dessa palavra, espanto para aqui espanto para ali. Há quem se aborreça de resiliência. Pessoalmente, sendo esse um conceito que reveste o bolso de casacos muito antigos, com aplicações em materiais cheios de calor, sentindo-se provisoriamente ofendidos ou transitoriamente desalinhados, aguento perfeitamente. Por outras palavras, sou resiliente à resiliência, que lindo. É então o espanto que começa a cansar. Porém, coitadinha, não deve esta palavra ir sentar-se no mesmo banco de obsoletos onde já estão o espetáculo, o incrível e o fantástico (por favor). Espanto merece ficar em tribuna mais altinha, nem que seja com cunha. É o que faz andar a meter-me com a poesia, estrago-me imenso. Havia era de me pôr a despachar o monte de roupa para passar, esfregar o terraço e fazer o jarro de sumo com os kiwis e as laranjas que os vizinhos trouxeram para o efeito, juntamente com a espremedora num saco do continente já bastante velhinho.

09/02/2022

Caixa de doces

Andava há muito alheada de cremalheira até ela me vir cair em cima do café da manhã precisamente com a janela aberta para o vale. Exibia em todo o seu comprimento os dentes e recessos orquestrados para funções nobres de entranhas mecânicas, utilíssimas à navegação. E mais: trouxe-me em caixa de doces lembranças universitárias passeios pelos corredores meio que ajardinados sobre primaveras ainda pobrezitas de medos e outros grilhões. Estavam uma delícia.

08/02/2022

Um trabalho mais jeitoso

O terreno aqui ao lado que há anos mandámos limpar por estarmos convencidos que o tínhamos comprado, está cheio de indícios. São indícios amorosos. Têm forma de montinhos que punhados de terra arrancada fazem contrastando com as ervas autóctones indiferenciadas e verdes nos pedaços ainda por investigar. Punhados de terra não, focinhadas. O terreno que em tempos, quando sob operação de limpeza em curso, motivou o parece-que-dono-verdadeiro ligar-me a mandar vir, O terreno é meu, ora essa, tire lá daqui as máquinas!, esse mesmo, tem sido visitado, revolvido, afocinhado, por javalis da Serra da Lousã. O terreno que pensávamos ter comprado e afinal não, que mandámos limpar e se voltou a encher de mato, coitadinho, deitado à intempérie de verão e de inverno, esse terreno, saiu portanto do seu abandono. Não pela mão, mas pelo focinho de animados e empreendedores javalis. O vizinho dono-verdadeiro não se pôs ainda a mandar vir comigo, deve achar o trabalho dos amorosos suínos mais jeitoso do que aquele então começado pelas máquinas. Oh, mas eu concordo. 

01/02/2022

Já está

Ontem houve assembleia de condóminos e embora aquilo pareça mesmo uma reunião chama-se assembleia. Ela realizou-se no átrio espaçoso juntamente com as plantas de grande porte habituadas a viver sozinhas, agora com a secretária e as cadeiras para ali todas movidas a partir da sua saleta, numa configuração anticovid e admito que criativa. Foi até agradável. No início da ac (assembleia de condóminos), aliás, ainda antes do seu início, estávamos para ali já alguns em pé, de roda, a deitar conversa fora, quando entra na área um casal não residente que se dirige ao elevador. O homem do casal, vendo-nos os poucos mas bons a conversar em modo de pré-ac exclamou: o que é isso, um comício? Pois este homem era nem mais nem menos do que um ex líder de partido político e presidente de câmara, entre outras atividades palpitantes, rapaz batido em comícios e portanto talvez interessado em nos ensinar alguma coisita sobre o tema. Esclarecemos solícitos que era apenas a preparação de uma alegre ac. Não ficámos a saber o que ele achou do nosso comício, se fofinho, vibrante ou cinzentão, pois seguiu viagem prédio acima logo sem mais nada de jeito. Paciência.

No fim da ac combinei com o vizinho do sexto a mulher dele vender-me meia dúzia de ou crepes ou chamuças ou rissóis feitos por ela desde que vegetarianos por causa da Saminhas e para começar. Isto soube mesmo a vida normal de vizinhos e coisas a sério, que saudades eu tinha de uma boa assembleia de condóminos, do mundo como ele quer ser. Nada disto precisou de insta ou face ou fontes de tédio parecidas, tenho que dizer, e por isso é que digo, os meus olhos descansaram tão bem e a minha barriga, entretanto, à hora do fecho desta edição, já incorporou dois rissóis de vegetais capazes de consolar uma pessoa farta de trabalhar!!! Foi ganho.

Mas há um mas. Hoje pela manhã a Saminhas e a sua dor de cabeça fizeram o teste covid, deu positivo. Acabou a vidinha covid-não-entra e o cão do vírus quis conhecer-nos as entranhas. As dela. As minhas, segundo pude apurar, ainda não. Mas quem sabe. Amanhã repito a testagem na apoteca. Hoje deu-me para isto.