a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

29/07/2022

Publicidade até à loucura

Ontem cheguei tão cansada do dia de trabalho que me dispus ao comprido no sofá para que as minhas células continuassem a manter-se unidas entre si e fiz a parvoíce de ligar a televisão. À quinta vez em dez minutos em que apareceu o anúncio da MEO com um monstro azul qualquer e a Inês Castel-Branco a falar com ele com muita piedade fingida, fui catapultada para fora do sofá e atirada até embater com o dedo espetado, muito assanhada, no botão de desligar do aparelho antes que enlouquecesse. Nem tive tempo de me lembrar que, há já umas quatro décadas, a televisão também se pode desligar no comando remoto. 

24/07/2022

A serpente

Aquilo no aeroporto de Amesterdão, hoje de manhã e depois de tarde, perturbou-me. Serpenteámos milhares de pessoas pela geometria temporária que os insuficientes funcionários desenharam por forma a encaminhar o enorme fluxo de gente. Foram bem sucedidos, porque, na ausência de inúmeros colegas, conseguiram manter as linhas a coser a vida de um grande aeroporto e do verão, sem que houvesse quebras demasiado severas. Nós fizemos a nossa parte. Chegámos com três horas de antecedência, mantivemo-nos ordeiros obedecendo às múltiplas voltas da grande serpente e, por fim, arrumámos os tabuleiros utilizados para a bagagem regressada do túnel do raio X. Talvez até haja aqui um prenúncio de futuro de certo modo risonho para variar. Um futuro em que os passageiros tomam para si os rabinhos das tarefas de futuros ex-insuficientes funcionários.

Houve um momento na longa fila, após uma das muitas mudanças de sentido no ziguezague apertado, em que os meus olhos bateram nos de uma outra passageira, uma senhora com o rosto sulcado de rugas, que circulava em sentido contrário ao meu no dorso da serpente. Sorri-lhe e ela devolveu-me o sorriso. Procurei-a em voltas posteriores, mas não voltámos a encontrar-nos.

Depois, como não tinha nada que fazer, fiquei a pensar que aqueles que veem nos desconhecidos potenciais inimigos não estão totalmente ligados ao mundo. Não de um modo potencialmente harmonioso. Em Lisboa há muitos.

20/07/2022

Arrivederci!

O homem magro, de gola à padre, aproxima-se e senta-se no lugar ao meu lado. Ainda há poucos passageiros na porta de embarque. Ao sentar-se, o homem magro faz um aceno de cabeça na minha direção à laia de cumprimento. Retribuo com outro aceno e ajeito a mochila para lhe dar espaço. Reparo então na enorme cruz, toda trabalhada, que traz pendurada ao peito presa num fio muito grosso. O fio mais grosso que já vi na minha vida. O homem magro continua a linha de comunicação comigo. Pega na enorme cruz levantando-a à frente da minha cara e diz, vou para Roma. Achando que ele estava enganado na porta, explico-lhe que este voo é para Barcelona. Eu sei, diz ele no que penso ser italiano misturado com outra coisa, mas o voo a seguir, nesta porta, irá para Roma. E continua, ainda segurando a cruz, vou ter com o Papa Francisco, trabalho no Vaticano, sou bispo. Ah, bom! digo eu. E como está a saúde do Papa Francisco?, aproveito para perguntar. Está bem, o problema é superficial, é no joelho. Dizendo isto, o bispo larga a cruz e põe a própria mão no próprio joelho não fosse eu desentender a palavra joelho, que realmente é esquisita, naquele meio-italiano. Oh, que bom, digo eu, se for só o joelho... Sim, o resto, e por dentro, diz o bispo, ele está bem.
Depois, levantando oito dedos das mãos e a seguir cinco, o bispo sorri enquanto sublinha a idade do Papa Francisco. Oitenta e cinco. Está bem.

Quando me levantei para embarcar desejei-lhe boa viagem. E ele a mim, de novo sorrindo: Arrivederci!

18/07/2022

Lisboa em obras (de propósito)

Há dias, num topo de telhado estendendo-se a um troço do Tejo ao pôr de um dia de sol quente, houve três ocorrências. Vários participantes do evento responderam que, como eu, não apreciam esse ruído de obras a que os organizadores dos topos de telhado chamam música de disco jóquei. Uma. Duas, encontrei ali terreno propício a uma discussão que há tempos queria trazer para cima de uma mesa: como é o dia-a-dia de um filósofo que não tenha enveredado pelo ensino e olha lá que valeu. E três, à saída do evento desce junto connosco no elevador um americano que torcia as mãos encardidas e repetia, muito ébrio, que esta é a sua hometown e eu não lhe perguntei se a ele os ruídos acutilantes agradaram, não foi preciso. A solidão engana-se de qualquer maneira distorcida, sonora ou líquida. 

Entretanto tive uma ideia: os disco jóqueis, em vez de se meterem em eventos a reproduzir até à loucura a banda sonora da construção de um edifício tipo centro cultural de Belém, iam trabalhar para os mais carenciados aeroportos. 

07/07/2022

Voos domésticos de 300 km: tão necessários como o ar que daqui a pouco não conseguimos respirar

Há dias, numa outra madrugada desperta, pus-me a contar o número de voos entre Lisboa e Porto operados pela TAP, por dia. Dez. E para Faro, de Lisboa, quatro. Catorze voos diários que podiam ser substituídos por viagens de comboio. E já nem vou mais longe. Mil vezes mais agradável, produtiva, permissora de inúmeras tarefas e ocupações, uma viagem de comboio tem duração quase nula, uma vez que o tempo nesse amigo meio de transporte é todo aproveitado. O que não queremos mesmo é parar de torrar o planeta, certo?

02/07/2022

O barato do verão

De acordo com o colorido cartaz afixado nas arcadas do prédio, é hoje o último dia do arraial do bairro. Alusivo em princípio aos Santos Populares, há de lá haver sardinhas, pão, chouriço e cerveja, mas acho-o atrasado. Dentro de casa consigo ouvir a música, porém não o suficiente para a identificar, o que não faz problema. Posso escolher levantar-me do sofá e ir ao lado nascente do apartamento fechar as janelas, cortando-lhes o verão. O barato do verão. Em vez de ficar aqui enrolada em mantas (dissemos verão?), estirada como se não fosse eu mesma, aninhada num sábado que desde a madrugada está sossegado oferecendo-me livros empilhados até uma hora destas, mesmo por sobre a música chegando do arraial. Em momentos assim, desencontrados de mim, meio aleatórios, quase cómicos, sinto-me feliz. Surpreendentemente feliz. 

Aditamento musical, vá-se lá saber porquê: