Faço a viagem de comboio com o meu telefone a apitar avisos
de wi-fi’s disponíveis e os meus olhos nas árvores que passam velozes fora da
janela. Os apitos não me causam cuidados, que a carruagem onde sigo não é a do
silêncio. Não sei se em todos todos, mas pelo menos nos comboios mais, digamos,
a sério, há uma carruagem que é a do silêncio. Nessa, quem está não pode fazer
barulho nem deve deixar que telefones produzam apitos. É a carruagem para quem
quer trabalhar, ler ou pensar, assuntos do foro do silêncio, daí o nome. Isto na Holanda. As árvores que correm lá fora parecem estar à distância de um braço
bem esticado e lembro-me – lembrar-me-ei por quanto tempo? – da menininha que
um dia viajou à minha frente num comboio destes, há anos, numa carruagem que
não a do silêncio, e de pé no assento, virada para a janela, gritava alto e bom
som para as árvores bomen! bomen! (árvores! árvores!) Adora árvores, disse
a mãe, ao ver-me sorrir para a garota. Entretanto, em processamento paralelo, vou escrevendo este post mentalmente enquanto não chego à minha
estação e escrevo assim:
Mathilda ia de boleia connosco. No local combinado, a meio
caminho do nosso destino, entrou no carro. Fomos apresentadas. Disse-lhe que mora num lugar bonito.
- Moras num lugar bonito.
- Eu não moro aqui, é mais para aquele lado, a vinte
minutos daqui, numa quinta.
- Numa quinta?! – eu gosto de quintas (também gosto de
sextas e de sábados e gosto de fazer gracinhas).
- Sim, o meu marido é agricultor.
Ou seja, temos tema para preencher o trajeto. Puxei pela
cabeça para ir buscar vacas, a palavra vacas em holandês. Apliquei a regra
do plural de ovo para obter ovos e julguei obter vacas. Depois continuei no meu holandês todo pobrezinho:
- E têm lá vacaras
na quinta? – digamos que vacas me saiu tipo vacaras
com a tal regra que não é deste filme, mas ela percebeu. Sorriu e facilitou-me
a vida:
- No, not cows, pigs. We have pigs.
- Porcos?! Mas quantos? – preferia vacas, mas se ela me disser que tem vinte ou trinta porcos já me
vai impressionar.
- Trezentos e cinquenta, mais ou menos.
Impressionou-me. Até me virei toda para trás (ela no banco de
trás, eu no da frente), trezentos e cinquenta?! Imensos!
- E são muitos, mesmo, agora o mercado está difícil para os escoar, desde
que a Rússia embargou certas relações comerciais com a Europa, os países da
Europa de Leste, que forneciam porcos para a Rússia, voltaram-se para o nosso
principal mercado, a Alemanha. E temos de baixar muito os preços, para
sobreviver. Se der para sobreviver.
- Então e na Holanda, não vendem os porcos? – isto eu.
- Vendemos, mas o mercado holandês é muito pequeno, as
pessoas comem poucos porcos. Na Alemanha é que se come muito porco.
Ora isto interessa-me. Nem que seja porque posso atestar que
os holandeses não só comem poucos porcos, como comem pouco em geral. Uma
refeição quente por dia chega e nada de sopas (ou há sopa ou há o resto) nem
sobremesas, a menos que o rei faça anos ou isso.
Mas as árvores lá fora abrandaram, o comboio chegou
ao meu destino e eu apeei-me antes de ter acrescentado ao post que pensei sugerir a Mathilda o mercado português. Comemos ou não comemos muitos porcos, nós?