a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

13/06/2025

Então e novidades? *

Há anos que a Feira do Livro de Lisboa, um bocado mais a norte da família de jacarandás em flor, faz por ver-se livre do stock de 1984s, isto lê-se mil novecentos e oitenta e quatros, do George Orwell.
Com certeza é uma espécie de situação. Ainda por cima, esta obra de título ligeiramente matemático aparece numa pluralidade de edições e capas diferentes, portanto estás a tropeçar nela daqui a nada e a calçada portuguesa ou lisboeta (lesboeta) a ver.
Pela minha parte não li o livro, mas sei que é leitura muito apreciada no geral. 
Estou inclinada a desconfiar que nele se podem encontrar cenários escurecidos e de fado tristonho, a escavacar esperanças um tanto parvinhas que a gente possa ter. Creio que me ficou essa ideia quando li algo em tempos. 
No fundo não deixa de ser divertido. Fujo do livro a sete pés, porém com tal abundância de meios de locomoção vou e como já disse tropeço nele. 
Só que ainda não é desta. Talvez lá para 2029.

* se bem me lembro, este título é plagiado
**estou farta sabem de quê? de tanto sururu à volta da i.a. 

01/06/2025

Inteligências artificiais e algumas naturais

Dizer umas poesias ao aspirador robô quando ele passa por mim e receber informação sobre o seu nível de carga. O máximo. 

Descer a rampa da garagem e a viatura apitar toda agudizante ao ver a parede em frente. Inserir o modo de lavagem automática nos botões para o carrinho acalmar, parar com o estrilho (e não me furar os tímpanos). 

Saber perfeitamente que o café está prontinho quando o gorgolejar do líquido nos tubinhos da máquina deixou de se ouvir. Mesmo assim a cafeteira guincha de tantos em tantos segundos
(até lá ir com o dedo espetado ou dar em doida). 

Na fila de carros parados no semáforo em Lisboa, notar que um exibe na traseira metálica as palavras zero emissions. Continuar a caminhar com os nossos ricos ténis (de caminhar). Zero emissions isso também nós. Mas não andamos para aí a dizer. 

Muito lindo. E mais? 

Bem, lavei as janelas e os cortinados. Passei-os a ferro, pendurei-os. E depois notei que encolheram um bocado. Resultado de não os limpar a seco como manda a etiqueta (só que fica um pequeno balúrdio mantê-los tão em forma). 

A caminho da serra, na estação de serviço, tomei um café. Mas queria ter bebido um capuccino da Delta com demasiado açúcar, comido um chocolate Mars quase ao mesmo tempo e ainda comprado um tubo de Mentos dos brancos para me empaturrar nos quilómetros.

(Estou farta de trabalhar.) 

Portanto, fui cheirar as rosas com cuidado. Para não me entrar um inseto no nariz. 
Também decidi visitar as alfaces que estão crescidinhas. Fiz-lhes umas festas ao longo das folhas verdes (alface) e lá as deixei a deitarem mais corpinho todas frescas que nem as próprias.
(Ao lado, as ervinhas emergentes cheiram à rama do tomate, por isso também inspiro esse aroma de olhos abertos para ver claramente que não estou no Lidl.)

Isto se a gente quiser, com um bocado de sorte é sempre a melhorar.

14/04/2025

A gente que nervos

As horas de almoço em teletrabalho oferecem diversas oportunidades. Mesmo que os planos sejam fazer uma caminhada pelo bosque de eucaliptos e afinal o céu se ponha a desabar, exatamente nessa hora, numa chuva copiosa. Mais uma, aliás, chuva. E copiosa também, já que, como todos sabemos, desde outubro que não tem havido senão disso, o céu desabando.
Portanto, não fomos caminhar. Optámos por agarrar outra oportunidade. Acendemos a televisão. Para ouvir as notícias por cima do chuaaaa que caía do beiral, varria o terraço e batia aos trombos na janela. Ao mesmo tempo, lembramo-nos da batata doce comprada no mercado de domingo, debaixo, claro está, do chapéu de chuva bem aberto. Recolhemos, para acompanhar, o resto da curgete, juntamos-lhe duas cenouras e meia cebola. Pomos a panela ao lume e um saco de espinafres aberto ao seu lado, aguardando o final da cozedura, para então ali deitar acabamento. 
Enquanto a sopa levanta fervura vamos buscar ao telheiro, numa corrida para não nos ensoparmos todas, dois tronquinhos para a lareira. Depositamo-los de modo adequado, metemos-lhe no meio uns bocados de acendalhas, depois chegamos alguns gravetos de pinho por cima delas, e isqueiro connosco. O fogo ateou. 
Preparamos então a mesa para um, ou uma, o lugar orientado às notícias da tarde. Estrelamos o ovo das galinhas da dona Isilda - ah, sim, também ela há de ir à televisão, mas para mostrar como faz o queijo de cabra - salteamos o alho francês, o pimento vermelho e damos-lhe o resto do arroz de ontem, para que este ali se aconchegue quentinho. 
Sentamo-nos a comer. 
As notícias estão incidentes no discurso do político que nos atrapalha o apetite, por isso mudamos de canal. A sopa continua a sua fervura branda, não nos apoquentemos. Vai dar para o jantar, que para este almoço está atrasada. 
Arrumamos pois o prato, o talher, o guardanapo. Desligamos a televisão e o fogão. 
Pegamos no telemóvel que esteve todo este tempo ali, em cima da mesa e, quando começamos a subir a escada para regressar ao teletrabalho, abrimos distraidamente a caixa de e-mail e vemos o que acabou de chegar: o resultado do exame! 
Galgamos agora a escada a tremer, a correr, o ecrãzinho a abrir no link errado, o dedo está nervoso, as letras atropelando-se, entramos no escritório, atiramo-nos ao computador, ali vê-se melhor, abrimos a mensagem outra vez, procuramos de novo o tal link, seguimos a instrução, toma lá a password, esta errada, repete lá, agora devagar, com calma, entramos finalmente no MyExam, mais instruções, chegamos ao documento que traz dentro o resultado. Corremos os olhos pela conversa toda, a introdução, os artigos da lei, a decisão do comité de exame, ta ta ta, e chegamos ao tutano da mensagem, uma só palavra, quatro letras, a minha nota. Pass.

03/04/2025

Nem nada que se pareça

A voz no altifalante disse, desta vez, algo diferente. Não o habitual senhores passageiros, ao desembarcar, atenção à distância entre o comboio e a plataforma, ladies and gentlemen, mind the gap. Não senhor. Desta vez a voz anunciou problemas técnicos na locomotiva. Portanto, íamos ser providos de outra locomotiva sem problemas nenhuns (especialmente técnicos). Mas, disse ainda a voz, os senhores passageiros devem ficar sentados nos vossos lugares, enquanto procedemos à mudança de locomotiva. Entendi. Nada de ir ao bar adquirir alguma coisa, bebidas, croissants, batatas fritas, um chocolatinho. Mas antes de a minha cabeça arranjar ideias para justificar aquela advertência, a voz de novo se fez ouvir, os senhores passageiros devem ficar sentados nos vossos lugares (porquê, mas porquê? eu quero saber) para não se magoarem nem... nem nada que se pareça! 

Várias horas mais tarde, o comboio já provido com nova locomotiva, cujo acoplamento ao resto da composição não fora capaz de sacudir nem a leve cortina pendurada na janela, de tão suave, muito menos capaz seria de atirar passageiros contra objetos muito duros, candidatos a magoar partes dos passageiros, mas continuando, várias horas mais tarde, na aproximação ao destino, diz a nossa voz no altifalante, senhores passageiros, estamos a chegar a Lisboa, ao desembarcar tenham atenção à distância entre... (tal tal, o resto já sabemos), e conclui: desejamos continuação de uma boa viagem... ai perdão, boa viagem não, continuação de uma boa noite! 

E com isto conseguiu a voz pôr os passageiros nada magoados ou algo que se pareça a sorrir uns para os outros enquanto alçavam malas e mochilas, vestiam casacos, arrumavam telemóveis, percorriam o corredor em direção à saída

22/03/2025

O exame

Tinha o Martinho já derrubado as diversas árvores no meu bairro, tantas, como eu nunca tinha visto, os homens dos serviços municipais desencaixado os painéis publicitários retorcidos, atingidos por elas, cortado os troncos que se haviam atravessado nas vias e varrido os galhos espalhados por todo o lado, quando chegou finalmente a hora do meu exame.

Já me tinha esquecido de como o estômago se contrai, as mãos tremem e o coração acelera à beira de um evento destes. Mas tinha tudo preparado: os ouvidos livres de auriculares, o pulso de relógio inteligente, o quarto de telemóvel, tablet, ou afins eletrónicos, a porta fechada. Nem os gatos eram permitidos junto de mim. Só mesmo o portátil de ligação à organização, com câmara e microfone ligadíssimos, o meu cartão de cidadão pronto a ser fotografado comigo ao lado. De resto, os livros, documentos, manuais, canetas, papel, água, um chocolatinho. Ah, e a impressora. Dez minutos antes poderíamos imprimir uma parte do enunciado.

Tirando as duas vezes em que a minha cabeça se desviou do centro de visão da câmara porque me estiquei na direção de um documento orientado a norte, e em que recebi avisos de cuidado! imagem não detetada!, tudo correu lindamente.

Este fim de semana é como se fosse de férias, nem noto que chove sem parar,  que está frio, e vento, e ao mesmo tempo nevoeiro, e húmido, e que as árvores mal começaram a florir, os insetos não polonizam nada, os pássaros quase não cantam, o sol não vem para secar a roupa.