a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

18/01/2025

A loja do sr. Falcão

Se estiveres à beira da segunda metade de um sábado, o teu percurso não andar longe de Coimbra, se trouxeres na mala algum espaço para te deslumbrares fora do ecrã, das notificações e das declarações de que não és um robô, se no teu coração ainda vibrar alguma montra iluminada por uma infância redigida com a imaginação dos velhos livros de histórias, povoada de sonhos, uma infância pontuada pela doçura de um rebuçado, desvia o teu caminho e aponta a Miranda do Corvo. Dirige o teu veículo para uma rua que te passaria despercebida, olha o seu nome tão comum, rua José Falcão. Procura o número 105, mas certifica-te de que estás bem metido na segunda metade de um sábado, entre as 15h00 e o início do dia seguinte. Prepara-te, respira, e entra.

15/01/2025

E sem telefonezinho esperto, como vai a vida?

Então conta lá de que te esqueceste hoje, hein? Do telefonezinho esperto? Sim?! Muito bem!

Isto é para aprenderes a não reclamar tanto de viveres agarrada aos ecrãs, às apes, às palavras-passe, ao mbway (como se traduz isto? caminho de multibanco?) e etc. Agora sim, é que vai ser. Dois dias no escritório sem telefonezinho, sem o coisinho de abrir a porta automaticamente que se acomoda há anos no côncavo da capinha, sem atender clientes aborrecidos, nem a mamã, as miúdas, sem descontos nem promoções, sem alertas amarelos. Sem o chato do whatsapp. Mas isso é excelente, o chato do whastap, esta palavra inscrevível!

A sorte é a velhota que vou sendo ainda aderir imenso aos cartões de pagamento que não precisam de carregar bateria ou outras modernices, estão sempre lá para ti. Ou para mim.

Mas que me esqueci do telefonezinho esperto em casa já se percebeu, não é? Ficou no escurinho gelado da serra, perto dos veados e dos gatos, dos javalis e dos limoeiros carregadinhos que eu sei lá. Distraí-me a emalar uma impressora novinha para trazer. Rápida, a jato de laser. É que ela vai proporcionar-me imprimir o exame que se aproxima, dez minutos antes de começar a contar o tempo. 

Um exame que a pandemia determinou fazer-se em casa ou em qualquer lugar, ou melhor, qualquer não: é um lugar onde se está sem ouvir música, sem sair da frente da câmara de controlo, sem falar, sem animais de estimação e muito menos pessoas no mesmo quarto, sem ir à casa de banho a não ser em condições mais extremas, sem barulho nem fotografias com caras atrás da pessoa, a inteligência artificial que vai tomar conta não sabe ainda distinguir fotografias de gente a três dmensões, coitadinha. E, lá está, sem telefone esperto, nem burro, nem relógio esperto (mas relógio burro pode). Sem ceninhas dentro dos ouvidos, que têm de estar descobertos para a tal inteligência "ver" bem que tal estamos. Comidinha podemos, o que é excelente contra os roncos da fome que o meu estômago é capaz de fazer se ainda se lembrar dos exames da faculdade, e que podiam alertar a inteligência (artificial) para a presença de javalis no quarto de exame (javalis ou leões, mas os javalis são mais maneirinhos). E bebidas também pode ser, se bem que não muitas por causa das aflições.

Portanto, vou isenta de telefone neste comboio da noite em direção a Lisboa, porém acompanhada de uma impressora branquinha, rápida já disse, com laser a jato também, o laser acomodado no interior de uma ampola delicada enfiada ali nos sistemazinhos, pronto para receber ordens de se lançar às folhas de exame dentro de semanas; então a impressora já instalada e completamente fora da caixa. Ai senhores.

21/12/2024

Vinte e dois livros à data

Escrevo na agenda, nas folhas para notas, os títulos e os autores dos livros que leio. Para chegar ao final do ano e saber se ele foi bom. Os de poesia não contam, que esses nunca se acaba de ler, naturalmente.

Vinte e dois é a conta à data. Com um melhor dormir que me chegou da idade, muito Bach, a casa razoavelmente limpa, as contas em ordem, o número de contribuinte, os vizinhos mais quietinhos, e apesar do whatsapp, da via verde.

Também muitos litros de café matinal, lá isso. Na rua ainda noite, metade de mim debaixo dos cobertores, os gatos alimentados lambendo as patas.

Depois o trabalho, claro. O autocarro, aquelas pessoas na paragem. O homem negro, a mulher faladora. E, no longo curso, o comboio a levar-me dali toda com a cabeça já noutro lugar. No livro. 

De sobra, o acordar acima das nuvens, os javalis à noite, os veados na brama quase ao meu lado, ou mesmo saborear o melhor entrecosto do mundo. Pelo meio fazer amigos, fazer sopa, salada, caminhadas, tricot.

Um ano com vinte e dois livros lidos é um ano mesmo muito bom.

20/12/2024

O que dizem as tuas botas?

As botas a separar-me os calcanhares do chão em cerca de seis centímetros. (Assim a olho.) 
A prometer um cansaço no fim da semana, uma dorzinha qualquer. 
Não muito grande, pequena. (Até fácil de combater.) 
Por exemplo, à noitinha, já no comboio doido, resfolegando-se nos metais, nas peças móveis, em todo o seu material circulante, então desaparecem.
As botas. 
Encostarei a cabeça no ponto mais distante delas, talvez de olhos fechados.
E lembrar-me-ei dos jacarandás à espera de junho, das paragens de autocarro com teto alusivo à primavera, e eu pesada com malas no chão.
Coisas destas.
Então sorrirei toda cá no escuro de mim, porque sei perfeitamente que chegou a minha vez. 

(está um dezembro avançado lá fora, cheio de hoteis e luzinhas de natal, e um calor desgraçado aqui)