a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

10/07/2025

Será ali um romantismo?

Tenho vindo a atravessar o Alasca. Povoam-me as escarpas de luz, o frio, a falta de noite, apesar de tudo. Não sabia que este seria um tão grande país (o 17° em vários critérios) se fosse independente. Um pouco já é: transpira segregação designando o Lower 48 como o conjunto dos estados lá mais a sul, não contando o Havai.
Mas pelas ranhuras de onde sai o ar condicionado vem um cheiro a condutas poluídas de micro-organismos. E então fecho o livro*. Lá fora estende-se Santarém na noite de verão. Vou um pouco enjoada de ler com tamanha sofreguidão nos agitanços do intercidades. Coimbra ficou para trás a chapinhar nas obras próprias de há imenso tempo. É certo que a estação promete belezas novas. Só que entretanto, nas casas de banho provisórias metidas em contentores - a cidadezinha a cuidar do povo enquanto se demora nas construções - os fechos das portas dos cubículos começam a ceder. (para o caso de interessar) 
E reflito na grande avenida, aquela que percorri ao cair do dia a caminho da estação. Oferece-nos os loendros do separador central nas suas três cores. O rosa-choque fraquinho na floração, o branco farfalhudo num raro esplendor, o rosa claro benzinho de saúde. 
E lá está a esplanada de duas mesas metálicas, de tampo quadrado, rodeadas de cadeiras do mesmo material e cor plúmbea. Em cima de cada mesa um dispensador de guardanapos de papel fino prontos a aconchegar os beiços dos inexistentes clientes, a limpar os seus dedos luzidios de manteiga nenhuma. A esplanada sempre vazia. Naturalmente: a meia dúzia de metros, alinham-se as bombas de gasolina e, do outro lado, a filazinha de bilhas de gás aguardando serventia. 
Pergunto-me, antes que o cidades me entregue no Oriente: mas quem se lembra de ajeitar uma esplanadazinha em território de estação de serviço, mesmo ao colo dos reservatórios de combustível, sobre um chão carregado de manchas de óleo e outras porcarias, hein? Quem? 

*Viagem ao sonho americano, da Isabel Lucas. Recomendo e é muito. 

01/07/2025

Cebola crua sobre Vem à quinta, que engraçado

Recolhi o marcador de entre as páginas de "Cebola crua com sal e broa" do Miguel Sousa Tavares, onde interrompera a leitura antes do jantar. Estendi o braço a norte e pousei-o, ao marcador, em cima de um dos livros de poemas da Filipa Leal, moradores na minha mesa de cabeceira para alguma necessidade urgente que me assalte ao deitar. Ou pela manhã cedo. 
Esta cena - o marcador do "Cebola crua" sobre o "Vem à quinta-feira" - atraiu o canto do meu olho. Detive-me então uns instantes. A tira de cartolina acabada de ali pousar, exibindo um troço da imagem da capa do respetivo livro em tons de azul, estende-se sobre toda a altura do de poesia sem protuberar além dos seus limites nem mesmo um nadinha. Mas não só, também as suas cores comungam numa total harmonia com o espectro de aguarelas de céu e mar que ornamenta a capa do "Vem à quinta". Sério. O canto do meu olho não foi atraído em vão: como se estes dois autores, tão distintos na essência, se entendessem numa mesma linguagem, numa paz ali toda interior. 
Suponho que a Filipa Leal reconhecerá sem hesitar a existência do Miguel Sousa Tavares, quem sabe leu "Equador" (toda a gente leu "Equador") e acredito que o jornalista também conhecerá o nome da poeta, nascido como é de uma. Mas, pergunto aqui aos meus botões, que sentimentos nutrirão um pelo outro. Hum? 
Se se respeitam, se acham que o outro sei lá o quê, se não estão para aí virados ou se pelo contrário até muito.
E, ainda, já que aqui estamos, se algum dia se cruzaram, se apertaram as mãos, deram dois beijinhos nas faces, ou se terão evitado.  
Não sabemos: só eles o poderão dizer. 
O que talvez nenhum dos nossos protagonistas saiba, mas nós sim, é que a mesma pessoa pode ler ambos com sofreguidão idêntica. Ah, pois. Porém vejamos a estranheza: com um deles a pessoa pouco ou nada se identifica, e com o outro, caramba, com o outro sente-se em casa.

(A vidinha faz-nos destas e depois o que se há de fazer, depois a gente alcança o dispositivo inteligente e, ao som dos grilos da noite de verão além da janela aberta, enquanto o termómetro desce devagar dos trinta graus, e pouco antes de se deitar a dormir, a gente vai e escreve um post chato como as casas como este.)

23/06/2025

Mas como fazem os grilos?

O cair da noite, já um minuto mais cedo que ontem, não perturba o suave troar dos grilos. Troar, porque sei lá eu como designar este cri-cri incessante. Portanto troam eles, embora suavemente, e numa ondulação sonora muito conhecida.
O cair da noite, ainda um minuto mais tarde que amanhã, acompanha o sossegar dos melros, da toutinegra-de-barrete, da milheirinha europeia, do pisco-de-peito-ruivo, providenciando ao mesmo tempo o arrefecimento noturno. Aliás, o estalar das vigas que sustentam o terraço, o telhado, a casa, e que ao calor da tarde incharam um bocadinho, atesta-o bem. 
Do outro lado do vale, aqui e ali, um cão põe-se a ladrar. 
Na estrada nacional, ao fundo da encosta, a quietude cola-se enfim ao asfalto; o trânsito, ainda que esparso, cessou.
Sentada no terraço, aguardo a corça fêmea, adulta, que ontem, por esta hora, se empinava para chegar às delícias folhosas acima da sua cabeça, oferecidas por uma pequena árvore.
Enquanto espero, tomo um café descafeinado e algumas notas mentais. Alterada pelas chuvas bastas deste inverno tão longo, a fauna traz novidades. Gafanhotos surgem como veículos alados que passam elevados a semear sobressaltos no meu espírito. A lagartixa está mais altinha, corre desengonçada com a barriga bem afastada do chão.
No campo da flora, também há registos a fazer. Dezenas de baixas na ameixeira, de que pendem meia dúzia de míseros frutos com verrugas na pele dura, verde. Já a velha pereira oferece o oposto: serão centenas as peras que prometem continuar a deitar corpinho saudável verão fora? Tal como a videira, que se desmultiplica em pleno junho, à grande e à francesa, como se costuma dizer, em farfalhos belos cachos. 
(entretanto recolho-me, não vá levar com um projétil voador em forma de gafanhoto gigante na cabeça)
Além disso, nem sinal da corça equilibrista.
Mas cá fica ela, capturada ontem, com todas as patas no chão.

13/06/2025

Então e novidades? *

Há anos que a Feira do Livro de Lisboa, um bocado mais a norte da família de jacarandás em flor, faz por ver-se livre do stock de 1984s, isto lê-se mil novecentos e oitenta e quatros, do George Orwell.
Com certeza é uma espécie de situação. Ainda por cima, esta obra de título ligeiramente matemático aparece numa pluralidade de edições e capas diferentes, portanto estás a tropeçar nela daqui a nada e a calçada portuguesa ou lisboeta (lesboeta) a ver.
Pela minha parte não li o livro, mas sei que é leitura muito apreciada no geral. 
Estou inclinada a desconfiar que nele se podem encontrar cenários escurecidos e de fado tristonho, a escavacar esperanças um tanto parvinhas que a gente possa ter. Creio que me ficou essa ideia quando li algo em tempos. 
No fundo não deixa de ser divertido. Fujo do livro a sete pés, porém com tal abundância de meios de locomoção vou e como já disse tropeço nele. 
Só que ainda não é desta. Talvez lá para 2029.

* se bem me lembro, este título é plagiado
**estou farta sabem de quê? de tanto sururu à volta da i.a. 

01/06/2025

Inteligências artificiais e algumas naturais

Dizer umas poesias ao aspirador robô quando ele passa por mim e receber informação sobre o seu nível de carga. O máximo. 

Descer a rampa da garagem e a viatura apitar toda agudizante ao ver a parede em frente. Inserir o modo de lavagem automática nos botões para o carrinho acalmar, parar com o estrilho (e não me furar os tímpanos). 

Saber perfeitamente que o café está prontinho quando o gorgolejar do líquido nos tubinhos da máquina deixou de se ouvir. Mesmo assim a cafeteira guincha de tantos em tantos segundos
(até lá ir com o dedo espetado ou dar em doida). 

Na fila de carros parados no semáforo em Lisboa, notar que um exibe na traseira metálica as palavras zero emissions. Continuar a caminhar com os nossos ricos ténis (de caminhar). Zero emissions isso também nós. Mas não andamos para aí a dizer. 

Muito lindo. E mais? 

Bem, lavei as janelas e os cortinados. Passei-os a ferro, pendurei-os. E depois notei que encolheram um bocado. Resultado de não os limpar a seco como manda a etiqueta (só que fica um pequeno balúrdio mantê-los tão em forma). 

A caminho da serra, na estação de serviço, tomei um café. Mas queria ter bebido um capuccino da Delta com demasiado açúcar, comido um chocolate Mars quase ao mesmo tempo e ainda comprado um tubo de Mentos dos brancos para me empaturrar nos quilómetros.

(Estou farta de trabalhar.) 

Portanto, fui cheirar as rosas com cuidado. Para não me entrar um inseto no nariz. 
Também decidi visitar as alfaces que estão crescidinhas. Fiz-lhes umas festas ao longo das folhas verdes (alface) e lá as deixei a deitarem mais corpinho todas frescas que nem as próprias.
(Ao lado, as ervinhas emergentes cheiram à rama do tomate, por isso também inspiro esse aroma de olhos abertos para ver claramente que não estou no Lidl.)

Isto se a gente quiser, com um bocado de sorte é sempre a melhorar.