a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

22/10/2025

Diamantes

Tinha rebuçados na lista de compras. O boião de vidro transparente, pousado na mesinha da sala, estava nas últimas.
O Continente da Lousã apresentou-se capaz de uma oferta bestial e variada, pude optar imenso. No processo, pronta e já de cabeça inclinada às prateleiras, batem-me os olhos num belíssimo saco de diamantes. Que são os rebuçados melhores do mundo a seguir aos caramelos. Agarrei-me a ele com as duas mãos que uma só quase não podia, o saco deitava bom corpinho e ainda reluzia sobre as grandes iluminações do espaço.
Em casa, deitei-lhe o conteúdo no boião, mas guardei alguns para trazer comigo. Na mala, no autocarro, no escritório, no comboio.

Resultado: a sala ficou mais rica, por um lado e, por outro, fiz quatro colegas felizes na reunião da tarde com a degustação e bastante barulho no comboio da noite durante a desembrulhação.

Não sei se estão a ver. 

21/10/2025

Esta manhã

Fiquei com remorsos de ter insultado a gare do Oriente no que respeita ao seu aroma dominante.
Portanto, esta manhã é hora de repor uma verdadezinha. Esta manhã, ali num ponto completamente específico mas ao ar livre (e à chuva), a gare do Oriente cheira a um grande e bem servido prato de papa Cerelac.

(e uma pessoa, mesmo que má-língua como eu, fica logo ali toda cheia de infância) 

14/10/2025

o mesmo post outra vez

Aquilo da carruagem que ontem muito marota se tresmalhou do resto da família quando todas agarradinhas umas às outras iam a caminho de Faro, pôs alguns passageiros de hoje - na composição de material circulante que, ao deixar Lisboa, logo travou imenso a fundo atirando um senhor magrinho que falava português e francês com os óculos na cabeça para cima de mim - um bocado nervosos.
Depois - o comboio cheio de alarmes uma data de tempo ali parado até os homens da cp virem com um ar sábio e apressado munidos de chaves enfiá-las em furos cegos e assim acabando com a chinfrineira - lá rodámos nos carris em marcha atrás devagarinho reentrando na estação para apanhar passageiros que haviam ficado aos gritos a correr na plataforma segundo o senhor magrinho que falava português e francês, caiu para cima de mim na travagem, e esteve muito atento a toda a problemática.

07/10/2025

Novidades

Bom dia a todos e desculpem a falta do simbolinho. Aquele, sabem?, que serve para as letras que se quiser.
A informação é a seguinte. 
Na querida Gare do Oriente em Lisboa há uma máquina de vender aguinha, sumos, chocolates. Para uma sede que dê ali ao sair do autocarro. Ou uma vontade de um néctar de pêra de uma só vez. Também se bater o desejo que nos pode visitar muito doido de comer urgentemente uma barra de chocolate (ainda que classificada com E naquelas modernices das letras acerca da bondade do produto para a saúde das meninas e isso).
Mas não só. 
A simpatiquíssima dispensadora destes artigos apresenta novidades direcionadas a suprir outras precisões pungentes e muito humanas, atenção. A maquinazinha proporciona um par de chinelos de enfiar o dedo! (ou no dedo, já não me lembro)
Portanto, para a pessoa que vai por ali a passar bastante depressa, tapando o nariz para evitar o péssimo cheiro crónico abundante, e partir o salto ou escangalhar as botas, pode ter o problema do calçado resolvido à distância de umas moeditas. Pode pode. 

24/08/2025

Hallum, Frísia (onde com isto ganhei o dia)

Ele chegou primeiro. Saltou da bicicleta e largou-a, deixando-a ser amparada na queda pelo chão do cais. Ela chegou logo a seguir. Apeou-se e, com cuidado e com o pé enfiado numa bota de borracha, abriu o descanso da bicicleta cor-de rosa, certificando-se que ficava bem apoiada. Não havia mais ninguém com eles.
Enrolava já ele o fio girando o carreto, conforme a técnica devida, enquanto ela se afastou um pouco para deitar o seu isco à água, empunhando uma cana diferente. Vieram pescar juntos, mas não o mesmo tipo de peixe, tal como os respetivos apetrechos revelavam.
Ela usava um vestido sem mangas, de um amarelo claro, com florzinhas muito pequenas. As botas de borracha, vermelhas, davam-lhe pela barriga da perna. Longos, os seus cabelos castanhos caíam-lhe em caracóis largos pelas costas.
Ele vinha de calções e chinelos, o cabelo de um louro quase branco, um pouco desgrenhado.
Ambos de rosto sério concentrados na respetiva espera pela mordida de algum peixe, mantinham-se em silêncio.
Fiquei a olhá-los. Pareciam personagens dos meus livros de histórias na infância. Tentei calcular-lhes as idades, mas precisei de certezas:
- Que idade tens? - perguntei, em neerlandês.
Virando o rosto sério na minha direção, apercebendo-se então da minha presença, o menino respondeu. 
- Eu tenho nove anos.
Ela continuava de olhos fixos na sua bóia de pesca, na água escura do canal. 
- E tu, menina, quantos anos tens?
Olhando-me então de frente, como se já esperasse a minha pergunta, disse:
- Eu tenho sete.

Não fiquei tempo suficiente para saber se apanharam algum peixe.
Mas trouxe na alma o belíssimo quadro destas duas crianças em liberdade, em paz e, embora não sorrindo, estando felizes, talvez muito mais felizes do que ainda conseguem perceber.