a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

24/11/2024

Santa Comba Dão (é que este nome)

O sino da igreja deu as quatro e meia três minutos depois. O sol já se inclina muito a poente e o vento caiu. A tarde está amena. Ouve-se apenas a água do canal que corre para uma pequena cascata, por sobre pedras e vegetação, para de novo se emparedar numa calmia líquida. Tanto, que a igreja cimeira nela poderia ver refletidas as cores dos seus vitrais.
O passadiço de madeira fresca leva-nos ao restaurado lagar de azeite. A porta aberta bastou para que nos aventurássemos a visitar o belíssimo interior. Uma exposição de míscaros, líquenes e fungos colhidos de manhã na outra margem do rio estava a ser montada por gente do norte, disseram-nos. Gente que os sabe classificar: desde os que dão boas sopas ou um suculento risotto, aos que são mortais.
À saída, tropeçamos no edifício de um velho posto de transformação. Aquele mesmo que, na parede exterior, ostenta, num mural de ladrilhos, um orgulhoso mapa da cidade exibindo o encontro entre os dois rios pintado num azul vivo, muito alegre.
Mas na esplanada já não está ninguém. Parece que todos terão recolhido o sábado - assim amadurecido, assim morno, assim tranquilo - dentro das suas casas de pedra muito arranjadinhas pelas ruas estreitas. Todos não. Quatro homens estão sentados dentro do café aquecido, demasiado aquecido, a olhar muito quietos, com as faces vermelhas, bolachudas, para a televisão acesa (claro). No programa da tarde decorre uma homenagem a Marco Paulo, o cantor popular que Portugal guardará por muito tempo, estou certa, no seu coração.

19/11/2024

E tu, também preferes o teu próprio carro?

Diz a Muzi, minha filha mais velha, que mãe, essa tua relação romântica com os transportes públicos... e portanto, sempre que os meus horários não distam muito dos dela, dá meia volta à cidade para me ir levar ao trabalho. Mas não é tudo. No final do dia, se eu ainda estou a vegetar na paragem quando me liga ao sair da última consulta, desvia-se da sua rota para me ir apanhar, indiferente aos meus protestos. Nem de uber ela me deixa deslocar quando essa hipótese aparece no horizonte dos meus planos. 
Mas a verdade é que, se eu não andasse, nos dias em que venho à capital, sem carro próprio, não estaria agora neste pequeno e tranquilo autocarro, em modo de um para-arranca envolto no nevoeiro que se levantou do rio, a fazer uma das coisas de que mais gosto e para a qual parece nunca sobrar tempo. Escrever parvoíces. 

09/11/2024

Mas depois do adeus

Tomei uma decisão crível (e não uma incrível).

Depois fiz um monte de livros lidos que não recomendarei a ninguém. As suas narrativas não encontraram um caminho de valor dentro da minha cabeça. Perderam-se para aqui. Umas parece que vinham baças, outras deslaçaram lá para meio. A sua matéria chegou-me como um holograma desfocado no centro. Pode ser dos meus olhos, naturalmente. Um desses livros traz um desagradável extra de origem: erros. Coitadinho, foi feito à pressa, faltou-lhe um bocado de amor (e não um bocadinho). Há um que conta uma história boa, mesmo muito boa, mas nasceu de mão errada, incapaz de esculpir palavras com umas dimensões assim mais profundas, menos espalmadas, balofas. O teor dos restantes nem deixou vestígios, evaporou-se já. 

É como se os livros do monte tivessem vindo por engano. Queriam tomar um caminho e eu desviei-os. Nenhum me foi oferecido, está bem? Todos estes livros vieram por minha espontânea vontade (mas isto não é extraordinário). 
Tomei então a crível decisão. Vou metê-los no saco da conferência da semana passada, um saco preto de um algodão macio, bom para livros, e vou oferecê-los à pequena biblioteca de província onde agora mais vivo. Talvez ali algum par de mãos mais certo lhes pegue, ou ângulos diferentes lhes sejam vistos por outros olhos. 
Os meus são esquisitos. Um deles chora muito nas grandes superfícies e em esplanadas batidas a vento. O outro fica embaciado a partir desta hora. Incrível (agora sim).

Adeus a todos.

10/10/2024

Diferenças

A brasileira que, na fila para o autocarro de longa distância, explicava ao filho onde, na configuração do veículo, se situavam as suas poltronas, tinha, no primeiro lugar da sua lista de conversas no WhatsApp, um contacto (ou melhor, contato) chamado Grupo Feliz.

Eu não tenho um grupo de WhatsApp com tal designação. E o meu bilhete para a viagem não indica uma poltrona, mas sim um lugar.
Deve ser por isso. 

04/10/2024

Felicidades velhinhas, muito grandes

Não fosse a avisada ideia de começar o dia a ler Adília Lopes para acompanhar o café, corria o risco de me esquecer da palavra calorífero.
Encontrei-a num poema com Vergílio Ferreira como personagem secundária intitulado Geometria Descritiva. A única disciplina em toda a minha vida que me deu nota vinte.

Não fosse a avisada ideia de começar o dia a ler Adília Lopes para acompanhar o café, e não teria misturado duas pinturas antigas dentro da cabeça. A escola secundária onde as minhas mãos e a minha cara andavam cheias de riscos das canetas que usava com fervor na disciplina do vinte e a voz da minha avó, ao aproximar-se a hora de me ir embora: "Vou desligar o calorífero, para não te constipares com a mudança de temperatura, lá fora está frio."