De um lado, a estrada que atravessa o vale tem casas, do outro, um prado onde por vezes pastam ovelhas. As casas são muito velhas. Algumas têm as paredes mesmo à face da estrada, outras erguem-se um pouco afastadas, para lá de um muro. Porém, não estão desabitadas. Por trás de um desses muros sobressai uma linha de roseiras oferecendo uma forte densidade de rosas cujo colorido vigor combate, como numa frente militar, organizadíssima, o decaimento evidente em redor. Sempre que por ali passo, ainda que a conduzir, deito um olhar rápido àquela fileira de rosas, só para dar prazer aos olhos. Um dia, ainda vinha longe, mas já a focar a vista para as flores, não as vejo na sua formatura. O muro parece abandonado. Ao aproximar-me, dou então de caras (atrás do vidro do carro, mas dou) com os cotos sozinhos e, no alcatrão, caídas na estrada, uma faixa de pétalas. Fiquei escandalizada! Pensei feio, achei o pior. Alguém malvado que passasse a pé tinha destruído as rosas todas! Há pessoas que não sabem ver uma beleza, uma coisa linda e logo querem destruir, são cruéis! E assim por diante.
Mas, como a natureza tem o víço lá dela e sempre vence a parada, algum tempo depois as rosas tinham florido de novo e o quadro que elas pintavam, ali no seio de casas tão velhas, regressou em pleno. Eu passava de carro, sorria cá para dentro dos meus acessórios (botões, fechos de correr, presilhas e fivela), muito satisfeita.
Mas, após alguns dias, ou semanas, de esplendor rosado, eis que, de novo, o tapete de pétalas estendido no pavimento e, encabeçando o muro, só a linha de cotos despidos. Ai valha-me deus! Como é isto possível! A minha cabeça, neste ponto, mudou logo as ideias para outra mais cabeluda e miserável: alguém odeia os donos desta casa pobre, ainda que rica em roseiras, e está a vingar-se de alguma coisa! Ah, se a polícia passasse no momento do golpe e autuasse o diabrete que faz isto! Não há direito, umas flores tão bonitas! E por aí fora.
Todavia, conforme já estamos à espera, as rosas regressaram na potência toda que eu, humilde observadora das suas vicissitudes, lhes conhecia. Tão lindas outra vez! Ou mesmo mais viçosas ainda! Rejubilei ali bastante para o para-brisas, o volante, o retrovisor. Toma e vai buscar, ó ser demoníaco que estragas as flores!
Só que, tal como nas novelas da televisão, a história repete-se e, passado mais um tempo, de novo as flores desfeitas na estrada.
Ei! Espera aí! Isto merece uma análise mais aprofundada. Tu não me digas (o tu sou eu para os meus botões, colchetes, rebites e alças), que a destruição é propositada! Tu não me digas que é a dona, ou dono, (perdão, tutora ou tutor!) das rosas que lhes faz isto para lhes atiçar o vigor! Tu não me digas que é por seres uma ignorante destas ações sábias, que as tuas próprias roseiras são uma mistura esquisita de flores mortas e botões promissores mas mirrados!
Pois bem, meus pacientes amigos que chegaram até aqui: há dias passei lá e apanhei a cena em flagrante! Era a própria dona da casa e das rosas (quero dizer, tutora) que estava, com um jeito especial de mãos, meticulosamenre, a destruir as suas próprias rosas! Com ar de quem sabe muito bem o que está a fazer!
De modo que aprendeste a lição (digo para com os meus botões, bainhas, coses e atacadores), a não julgar logo à primeira.
Nem à segunda, nem à terceira.