a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

14/09/2024

O pior bolo de chocolate do mundo*

O biquíni azul desistiu de esperar pela sua vez. É compreensível: muitos verões passaram desde a última visita a um areal. Encheu-se de tristezas, ali dobrado no escuro de uma gaveta de cidade. Vê-se isso pelos elásticos do cós que passaram a plásticos e em bocados se desfizeram (talvez pelo último natal). O mofo ganhou tempo e entranhou-se na licra de tratamento metalizado. Libertou o seu aroma quando puxei o biquíni azul para fora da sua última morada. Portanto, com receio que o calção me caísse na primeira onda ou ainda antes, resolvi trazer o vermelho, comprado no mesmo dia muito antigo, mas mais robustinho, ainda jeitoso nos rebordos, apresentando a resiliência dos materiais intacta incluindo o bordado inglês a imitar lençóis.
Felizmente, não pereceram ambos.

*inspirado num lugar longínquo para os lados de Campo de Ourique

11/09/2024

Ó rio conta lá

Faltavam cinco minutos para as oito quando chegava ao lugar onde costumo tirar a fotografia à ponte, sempre a mesma fotografia, sempre o mesmo lugar, mas nunca a sair igual. À minha frente um pescador vindo de norte, virando à sua esquerda, caminhava ao longo do passadiço. Então desviei a mira e resolvi diferente, captei-o.
E só depois vi o que levava na mão. 

10/09/2024

Uma incerteza

Por causa da Maria Judite de Carvalho, fico a pensar coisas novas e diferentes.
Não na cozinha que está a pedir renovação total com muita intensidade, ou no trabalho que por vezes me exige mais cérebro do que o meu, também não nas expressões que se usam como "ter mais mundo", quando alguém não é fútil, ou "não estou a saber lidar", quando se acha outro ser demasiadamente adorável e se o quer esmagar de "amor" (e me irritam muito, grrrr). Nem, por exemplo - é só mais isto -, nas manchinhas muito feias que vêm cobrindo a minha pele.
Com a Maria Judite de Carvalho, a minha cabeça afasta-se do próprio umbigo e fica maiorzinha por dentro.
Agora mesmo trouxe-me a divertida interrogação sobre quando virá o dia em que, pela primeira vez, alguém me vai dar o lugar no autocarro. Tenho um bocado de medo desse dia. Quero que ele nunca chegue.

(Mas não tenho a certeza.)

08/09/2024

Oh!

Tivesse eu poder e os energúmenos que conduzem veículos a urrar propositadas ondas sonoras violentamente para longe propagadas, capazes de despertar uma leoa enfurecida em mim, tivesse eu poder, digo, e esses atrasadinhos cerebrais seriam todos enfiados numa masmorra nojenta onde poderiam ouvir independentemente da sua vontade os piores rugidos ensurdecedores ininterruptamente a mais de cento e cinquenta decibeis durante aí uma semaninha.

06/09/2024

A janela fingida

No ano muito antigo em que imensas pessoas, entre as quais eu, nasceram, não havia Internet nenhuma. Nem sequer a palavra Internet havia. E portanto também não havia blogs, posts, likes, etc. Era o tempo da telefonia, dos automóveis que pediam água para acalmar as temperaturas cansadas do caminho, e às vezes também óleo mas por outras razões, era o tempo da Crónica Feminina, uma revistinha que contava mentiras de amor e que a nossa empregada lia muito. Era o tempo da acetona, dos panos para engomar as calças do fato, da mioleira. Das resistências que os miúdos ofereciam às mães - e só a elas, se as tinham - quando estas lhes punham no prato os nojentos miolos de vaca misturados, para disfarçar, com ovos mexidos. Era o tempo dos domingos, dos passeios de automóvel, das idas ao Estoril. 
Nesse ano muito antigo, não havia portanto blogs nem os posts que os "alimentam". Mas, ao contrário do que possa parecer, havia-os com outros nomes: textos publicados num jornal diário (feito em papel).
Estava aqui a ler alguns destes textos publicados, agora, em dois mil e vinte e quatro, eu já quase a ficar velhinha, e os textos (publicados) no quarto volume das Obras Completas de Maria Judite de Carvalho, um volume com três títulos: A janela fingida, O homem no arame, Além do quadro.
E estou a fazer-me não só sua seguidora, como sua fã. A deitar likes por todos os lados, é lindíssimo.
E por isso venho recomendar muito e com entusiasmo esta imensa leitura. Por favor.