a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

28/09/2024

Os pêssegos, de Raul Brandão (a quem possa interessar)

Era sexta-feira e havia pouca gente no escritório, menos ainda do que é habitual no último dia útil da semana. Por causa disso, e também porque saí mais tarde para almoçar, fui comer sozinha.
Sozinha não: tinha um livro na mala, um livrinho, deve até ser o mais pequeno livro do mundo.
Pedi a perna de frango assada, legumes e desta vez batata no forno. O frango estava seco, em acordo com a minha preferência, e, enquanto lhe ia desfiando as fibras de carne, que metia à boca em alternâncias ávidas com a couve, a cenoura e a batata, li metade do livro: o primeiro conto. Não comecei a ler o outro, porque a perna de frango estava já toda desfeita, a batata muito acabada, a couve e a cenoura desaparecidas. Fui então arrumar o tabuleiro e saí para a rua. O vento apanhou-me de camisa, o casaco havia ficado nas costas da cadeira, no escritório. É o outono a chegar. Algumas folhas caducas esvoaçavam já secas, estaladiças. Passei pelos homens de calças sujas, que almoçavam na esplanada. As suas camisolas informavam, a quem pudesse interessar, que pertenciam à equipa de montagem do evento. "É a nova exposição", dissera-me a rapariga da caixa quando perguntei que evento era aquele no ato do pré-pagamento da perna de frango.
Depois, como ainda tinha muito tempo de pausa para almoço em crédito, não regressei logo ao escritório. Subi a rua e entrei no café sujo com um específico intuito. Comprar um chocolate. Comecei a comê-lo enquanto descia a rua. De repente, sem aviso prévio, sem que alguma coisa ali se perturbasse, sem um pássaro, sem um sorriso de alguém, uma palavra, um aroma a padaria, nada, sem mesmo nada, de repente, enquanto comia o meu chocolate, senti-me completamente em paz.

4 comentários:

  1. Pensei que ias falar de um livro de Raul Brandão, mas presenteaste-nos com um belo naco de prosa.

    Boa noite Susana. :)

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    1. Querido Diogo, muito obrigada!
      Eu também tenho sido presenteada com belos nacos de poesia, sabes? Tenho vindo a absorvê-los com muito gosto.
      Um bom domingo, Diogo!

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  2. Bom, qual seria o livro? E a marca do chocolate? Não ligue a estas perguntas tontas...gostei muito deste bocadinho, tão parecido com o que tantas vezes sinto. Beijinho

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    1. Ah, o livro está no título do post! É também o título do primeiro conto. Um livrinho só de dois contos, do Raul Brandão.
      E o chocolate: Twix! Não comia um Twix desde a juventude, foi mesmo um feito. 😊
      Um bom domingo, querida CC.

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