a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

29/07/2019

Botox, que potencialidades futuras?

Faço o caminho de descida da serra com cuidados redobrados. O sol brilha maneirinho: segundo o mostrador no meu carro está o verão a valer vinte e dois graus. Nas curvas, estico o pescoço para ver quanto antes se lá vem o carro, que eu suponho desvairado por aí acima, ocupando grande fatia da magrinha faixa de rodagem. A condutora seria a minha vizinha inglesa, mulher do vizinho inglês que já conhecemos deste blogue, ela é que ainda não. Imaginei-a regressando a casa, ao volante do lado contrário do seu carro que continua assim, como de origem. Estaria a regressar da sua intervenção de botox, de acordo com a informação do vizinho inglês, esta manhã, tendo deixado escapar, a seguir à informação: um dinheirão custa aquilo do botox!
Então vou a descer a serra, contorno as curvas com muita cautela, pescoço esticado. Sei de conversas anteriores que esta condutora tem tido algumas batidas nestas curvas, sempre, segundo a própria, culpa desaforada de outros. Mas tive sorte, nada de vizinha inglesa serra abaixo (eu), serra acima (ela).
Fui apanhar nos serviços competentes o novo cartão de cidadão da minha filha Saminhas, logo depois de estacionar o carro mesmo em frente à porta e - já agora que estou a ser assim esquisitinha - de graça. Ao entrar na secção dos serviços, sou reconhecida e tenho direito a bons dias personalizados. Não deu para aquecer a cadeira em que me sentei, logo fui despachada com prontidão e simpatia. Assim, sem menos.
No regresso a casa faço a subida que há pouco desci ainda pensando na vizinha inglesa e no seu botox. Juntei ao pensamento a colherada de azedume que ela serviu há dias ao senhor Valério. Ele tinha vindo prestar-nos um serviço de jardinagem para o qual precisou de encostar a carrinha de caixa aberta à lateral da nossa cerca. Quando a vizinha inglesa chegou de qualquer outra situação lá dela, estacionou o seu carro que já sabemos ter o volante no lado errado de forma a tapar a passagem à carrinha do senhor Valério. Acrescentei ao meu pensamento (ainda não acabei de subir a serra, hã?) o pedido deste senhor à vizinha, que eu ouvi de dentro de casa como soando cortês, para ela por favor tirar o carro dali, era só um bocadinho, etc. Ela respondeu-lhe que isto é tudo dela e se ele quisesse que passasse por cima.
E estou a chegar à nossa rua, povoada de ruínas. Vejo que o carro inglês já está de volta ao seu lugar, estacionado com as rodas viradas, como sempre ela faz, tanta irritação a caracteriza.
Será o botox, esteja lá ele onde estiver (não fomos informados sobre o local de aplicação) capaz de suavizar, com o tempo, o ódio que vai naquele pobre coração?

25/07/2019

Fatia de manhã

Saio de casa com os sapatos novos comprados no âmbito de uma estratégia especial não abrangida por este post, e vou à farmácia. Lá, espero um minuto com a senha de vez na mão. O farmacêutico já me conhece desde ontem e responde à pergunta sem eu a fazer. O medicamento havia chegado de acordo com as previsões mais otimistas, para variar. Poupo-me, assim, de ir à farmácia por um tempo suficiente que faça este farmacêutico - e os outros que me cumprimentam, olá como está - esquecerem-se de mim.
No regresso a casa fiz um desvio para comprar pão e venho com este a pensar no que vou dizer à polícia mais logo, acerca de um assunto de desaparecimentos misteriosos em minha casa. Quase esbarro com a querida vizinha do terceiro, personagem já habitual deste blogue, que está a conversar com outra, do mesmo nosso prédio. A primeira avisa-me que vou com uma cara tão fechada, mas o que vem a ser isto? A outra aproveitou para se despedir que ia com pressa e ficou a vizinha do terceiro a adivinhar o que eu levava dentro da cara, fechando-a assim. Dissertei poucochinho sobre o tema, que tem desdobramentos dolorosos que nunca mais acabam, e eis que aparece também o pai da família triste do prédio. Vinha sozinho e deu os bons dias a sorrir. A sorrir! Ele, que tem uma carga às costas incomparavelmente mais pesada que muitas, incluindo a minha. Continuou. Nós também, ali paradas, a manhã a desenvolver-se em redor, o verão, o chilrear dos melros e das rolas, ocupadas com o tema meu a ser o ponto central, que agora me pareceu de uma desimportância atroz perante o senhor da família que é tão triste, isto apesar de me fazer doer a todas as horas, há muitos meses.

22/07/2019

Isso e o politicamente correto

Vou dizer. Eu, profundamente, desde sempre, detesto exercício físico. Mas, por causa de me estar a metamorfosear numa pessoa nova, velha, mais pequena por cada vez mais incompleta, inseri no escorvar de cada dia os sete minutos de exercício físico clássico orientados por uma app da especialidade perto de mim. Há outras versões disponíveis, porém o clássico encabeça a lista, quer dizer, insinua-se o mais leve do catálogo (aliás repito-me). Vem antecedido de um anúncio e acaba sucedido por outro, mas isso já se sabe, não somos nada. De qualquer modo, haverá alguém que presta atenção a publicidade? Óbvio que não.
Creio que nunca, em toda a minha vida, precisei tão desesperadamente de férias. Férias de ser. De ter. De ouvir. De falar. De atender. De compreender. De explicar. De conduzir. Férias de existir.

17/07/2019

A raposa, o cartão do cidadão e o espetro do fofinho (é escolher)

Sento-me no terraço ao sol, uma vez que o nevoeiro já fez a gentileza de se retirar e dou conta do cheiro das cabras do vizinho inglês que o vento me traz. Elas cheiram ao próprio queijo, mas em mais levezinho. As galinhas da família destas cabras foram todas roubadas, uma a uma, por uma raposa, disse o vizinho para explicar por que razão já não nos dá ovos. As cabras é que a raposa ou não as conseguiu convencer ou não se interessa por elas, agora não sei.
A minha filha Saminhas estava com o cartão de cidadão para renovar, e como os lugares de culto para o efeito em Lisboa só se fossemos para lá de véspera e passássemos o dia todo seguinte a olhar para o quadro dos números de chamada uma vez que não tivemos jogo de cintura pela Páscoa, no máximo, para marcar vez no sistema, viemos para a quietude da serra tratar do assunto. Ficámos despachadas em vinte minutos e ainda tivemos tratamento personalizado no espetro do fofinho, se quisermos usar as suas palavras.

14/07/2019

Dia de folga

Vou, pela terceira vez hoje, espetar uma agulha de ponta esterilizada na chama de um fósforo numa bolha do pé. Nesta bolha é a segunda espetada. Uma autotarefa que não me agrada fazer, mas se quero andar mais ligeira, pago o preço. De manhã correu bem, a bolha de então esvaziou, desinfetei-a completamente e pus um penso por cima, calcei os ténis, fui. O rio estava tão próprio, a encher, tranquilo, a brilhar. Uma garça real a molhar nele os pés, ali toda toda, eu a passar-lhe ao lado.
Duas horas depois, quando voltei a casa, já se notava o mundo mais agreste no pisar, mais acutilante, traduzindo-se, ao retirar as meias, em mais uma bolha ali, afinal. No outro pé! E portanto vamos lá, agulha, fósforo, chama, espetada, desinfeção, penso por cima. Mas não resultou. Horas de arrumação depois, gavetas, caixas, mais gavetas, capas dos sofás, aspirador, closet, idas ao lixo, à arrecadação, carro a arrumar na garagem (de caminho) para os vizinhos que têm três carros ou quatro poderem arrumar lá fora e eu que tenho só um carro ocupar um lugar fora deixando o meu lugar vazio na garagem não é fofinho da minha parte e ontem esqueci-me dele, a bolha, era aí que íamos chegar, a bolha está de volta!
Mas gostei imenso do meu dia. Especialmente porque não trabalhei uma única linha, uma única letra, um numerozinho, zero. Sabe tão bem uma folga.

13/07/2019

A sério

A festa das crianças tem insuflável com um motor para o enchimento com ar que trabalha em permanência fazendo um ruído em conformidade. Em concorrência, há música de palhaços com batida quadrada mesmo ao lado do motor em permanência incluindo não se perceber a cantiga devido à distorção. Um homem adulto, jovem, está vestido como se fosse um mágico e tenta animar as crianças fazendo-lhes perguntas extremamente entusiasmadas e recebendo respostas do tipo tiradas a ferros, como se costuma dizer. Há também uma mulher adulta, jovem, com metade da cara pintada, que se debruça incentivando as crianças a divertir-se no insuflável, ora as puxa para escorregarem ora as instiga a pular. Alguns pais e mães bebem cerveja pela garrafa nas laterais do recinto e olham para telemóveis na outra mão. As crianças estão relativamente paradas. Sentada na beira de uma cadeira, aguardando pacientemente que outra mulher jovem termine uma pintura no seu pequeno rosto, está uma menina. Nenhuma criança ri, salta, corre ou brinca por iniciativa própria.

No final da festa, sobrou o chão do pátio polvilhado de papelinhos coloridos. Alguns, no canto, rodopiam num tufãozinho de vento que ali se deixou ficar a brincar.

A sério.

11/07/2019

Estupe, por favor

Houve uma hora em que pus a cabeça descansando nas mãos, os cotovelos apoiados na mesa nova, tão bonita, e senti que agora era estupe, quero estupe.

***
- Rodrigo, o que diz ali naquelas letras pretas?
- Diz... en...tra...da. Entrada!

O meu sobrinho mais novo passou para o segundo ano e já sabe ler muito bem, segundo o próprio, embora não tudo tudo. Há palavras difíceis, tia!

Fizemos o percurso de ida e volta na telecabine. Vimos uma alforreca deitada na água. Vimos cardumes de peixes. Pretos, disse a Maria. Uns grandes, outros pequenos. Cinzentos, corrigiu o Rodrigo. Os peixes são cinzentos! Vimos as árvores de cima e as casinhas dos gelados. Vimos um fumo a subir, ao fundo. Seria talvez fogo. Falámos sobre o nome deste rio, o Tejo, e de outros dois, o Douro e o Mondego.

No fim da volta, a telecabine devolvendo-nos a terra firme, tornei

- E ali naquelas letras o que diz?
- Saí...da. Primeiro era entrada e agora saída!

Ao subirmos no elevador do prédio, já recolhendo a casa, não precisei de lhe perguntar o que podia ler ali, o Rodrigo adiantou-se: estupe, leu, junto ao botão de stop do elevador.

***
Então, tirei a cabeça das mãos sacudindo a vergonha e fui abrir a porta ao pequeno novo probleminha.

Estupe, realmente, não existe. Não está nas minhas mãos.

10/07/2019

#azapes

Estou em meio de dois mil e dezanove a incluir apps nos meus hábitos. Não sei se finalmente ou se isso não interessa a ninguém (tipo). Apps dos horários dos comboios já as trato por tu, ora pour toi ora door jij, consoante. A última, então, é perfeita, toda facilzinha, espertíssima, dou-me lindamente.
Em segundo lugar estão as apps de dicionários, mais paradinhas e menos urgentes, é verdade, um pouco menos exatas, ok, mas também valeu. Alinham-se na segunda fila do ecrã principal à direita de quem vai, tipo.
Mas aquela que verdadeiramente me traz aqui hoje é a belezinha da última aquisição. Capaz, a danada, de me pôr feita num oito. É a app de 7 - sete! - minutos de exercício diário! Tipo como quem não quer a coisa. Eu vou e dou-lhe um toque, aciono a modalidade básica, na boa, e começo a obedecer aos comandos. Faça o exercício, no belo português do Brasil. Sete minutos de arraso, saio dali (da app que, no finzinho, me dá os parabéns, hã?) e vou direta para o chuveiro, posso dizer, bastante necessitada. Não parece, mas é. Ai esta appezinha!

Próxima app desejável (por favor): descarregável para as lentes de contacto que dê para ver bem tudo, focado, legível, tá?, a lente ajustada para a necessidade em tempo real, mudando à velocidade da luz o ajuste, chovesse ou fizesse sol, para visão ao perto, ao meio e ao longe.

E ainda esta outra, muito querida app (lembrei-me de tarde e já agora vai): descarregável para as rodas do carro diretamente, estacionando-o ela direitinho enquanto eu já me ocupava, na livraria, de pedir o livro de Stephen King que a minha sobrinha de doze anos agora ensaiou de ler e querer mais. Doze! (e não é a única, pois o referido livro já só havia em armazém todo ali a querer esgotar-se o maluco)

(Tipo adoro.)

E tu, com que nova app sonhas?

05/07/2019

Cinquenta e três (vírgula trinta e sete, precisamente)

Os dois homens que vieram substituir o vidro defeituoso são pai e filho.
- E parecem-se um pouco um com o outro - isto disse eu, que tenho uma impossibilidade de não procurar parecenças familiares, assinatura tão intrigante da mãe natureza.
Um pouco. O pai é mais alto, o filho mais gordinho.
Apertamos as mãos e eu, que nunca os tinha visto, digo o meu nome. Os deles não pude reter.
A colocação do vidro novo faz uma barulheira infernal que eu diria capaz de partir o material, mas claro que não e conclui-se em menos de meia hora.
Depois tomamos café. Sentamo-nos à mesa do jardim os quatro e conversamos. Neste país não há serviço deste tipo que não seja acompanhado de momento para café ou chá, bolachas e uma pitada de conversa. Eu digo que está frio, por causa do vento que esta manhã se pôs, juntamente com nuvens. O filho comenta que em Portugal costuma estar sempre mais calor, não é? Não tanto no último mês, digo eu, não tanto no último mês (às vezes repito).
O tempo é costume ser tema proliferante entre os holandeses e hoje não foi exceção.
Aproveitou então Erik para contar sobre o passeio de bicicleta que ontem fizemos, o tempo não podia estar mais de feição e nem sequer fomos atacados pelas lagartas dos carvalhos, cujos pelos já incomodaram muita gente e são capazes de matar um cão. Eles ficaram admirados e contaram de alguém seu conhecido que apanhou com os pelos das bichas e se viu aflito. Cinquenta e três quilómetros foi a contagem do aparelhinho montado na minha bicicleta. Mas eles não se mostraram impressionados. Os restantes doze quilómetros foi o comboio que fez connosco, o queridinho tem um espaço aberto especial para as biclas; eu para lá de agradecidissima. É que não aguentava mais, evidentemente.
- Em Portugal o terreno é acentuado, nem toda a gente se habitua a fazer muitos quilómetros de bicicleta - expliquei o que não era preciso explicar.
Mas o pai e o filho não puderam deixar de sorrir condescendentes, especialmente na parte do abençoado comboio como recurso para o regresso a casa.
Muito engraçado, sim senhor. Muito engraçado.

02/07/2019

Gatinho

Nos raros momentos em que reengreno o fluir do meu tempo com as rédeas mais a jeito nas minhas mãos engelhadas e dou ordem ao meu próprio norte - se existir, mas é possível que sim - equipo-me das ferramentas mais completas e mergulho na floresta da escrita de Agustina, na qual ainda só hesitante gatinho. Não é por falsa modéstia que digo isto, é por ser verdade que necessito de firmeza na base. De joelhos não há que me suster, já que, em todo o caso, cambaleante não irei. Avanço lentamente para não perder um crepitar, uma teia de aranha, uma pedra na iminência de rolar. Quando me sento para dar descanso aos joelhos, às mãos, à Terra de tanto girar, nem noto que avancei centímetros. Mas, como já levo a barriga cheia, ergo-me, sacudo a saia, componho o cabelo e sigo achando-me real outra vez.

(Ontem à tarde, o vento levou o guardanapo de papel que estava na mesa da esplanada rodeada de janelas de vidro, abertas para a ocasião do calor; quando logo depois me levanto para sair, procuro o guardanapo no chão intentando apanhá-lo, e vejo-o debaixo do sofá de verga ornamentado com almofadas muito bonitas, uma de cada padrão, à minha frente. Fiz o gesto rápido e necessário para apanhar o fugitivo de papel e recuperá-lo de se tornar poluição antes de a próxima rajada de vento ter outras ideias e espetei com a cabeça a todo o vapor na quina da janela aberta, perpendicular ao meu olhar e por isso materializada numa linha quase invisível. Pareceu ali toda a cidade ressaltar da investida que empreendi, involuntária. Enfim, não morri.)