a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

29/08/2014

Mais azuis

Cheguei ao entardecer, mas ainda a praia pulsava de gente. Estacionei no único lugar que havia, saí do carro e entrei, observadora em fato de trabalho, no cenário de verão. Não me lembro de antes ter visto a bandeira da praia de Carcavelos vestida de vermelho; foram os surfistas a encomendá-la assim, tantos os abraços que davam às ondas.

A Teresa ainda não tinha chegado. O nosso jantar vai ser longo e saber a curto, vou rir até me doer a barriga, com ela é sempre assim.

Em vez de me ir sentar na esplanada do bar, os meus sapatos altos levam-me ao limite da pequena falésia amarela, um ouro sobre um azul de lágrimas fartas que se escondem nas dobras do meu coração, surdas, eu não as sei ler. O azul imenso atira ondas contra a falésia num vaivém que cospe espuma em ofertas ao céu, orgasmos de vida que me fazem marcar encontro aqui com o inverno. Sei que os restos das gargalhadas do mar me vão cobrir da frescura que bebo como se fosse a alvorada de mim.

Tentei fotografar isto para ti, claro, estas cores impossíveis não te deixarão ver as lágrimas que me entopem a garganta nem verás o estremecimento das minhas mãos denunciando que palpito assim. Tomei deste silêncio musicado de mar, e de amor, e entrei dentro de mim. Não precisei procurar muito, encontrei-te, abracei-te como quero e ficámos assim fora do tempo, pelo tempo fora.

A Teresa chegou. Vejo-a daqui olhar em volta, procurar-me pelas mesas. Encaminho-me em passadas largas até chegar junto da minha amiga, que está bronzeada, sorri-me com a luz que lhe conheço e os seus olhos estão ainda mais azuis.

- Estiveste a chorar?

26/08/2014

Post estragado

O meu blogue irrita-me um bocado.

É que aparece sempre um comentário de mim própria de cada vez que há um post. E eu não gosto assim tanto dos comentários que faço aos posts que escrevo. Costumo fazê-los num estado de sonolência muito adiantado, é certo, visto ser capaz de jurar que não tinha comentado nada, mas quem se atreve a desmentir as novas tecnologias e os seus poderes? eu não.

Já andei a ver se a coisa se pode eliminar por completo da face do blogue, mas vêm uns alertas muito esquisitos que me metem medo e eu fico-me assim acobardada e portanto queria dizer isto às pessoas.

Já agora aproveito, uma vez que este post é um post estragado, digamos assim, porque não interessa nada, para dizer também que não ponho nenhuma fotografia que me represente e que apareça quando respondo aos meus queridos leitores que comentam, esses sim fazem-no num estado de vigília que se vê mesmo que era um bom estado de vigília, e deixo ficar essa coisa azul com uma cabeça também azul, pronto, mas que se pode fazer, não se pode fazer nada.

É que uma vez tentei pôr uma fotografia que encontrei de mim mesma com três anos de idade para ninguém me reconhecer, aquilo deu-me cá um trabalho a digitalizar e reduzir a um tamanho inspirado nisso da nanotecnologia, de pequeno que foi, mas muitas semanas depois, ou se calhar nem foram muitas, mas foram algumas, vejo essa fotografia no google+ em tamanho tal que dava para cobrir o Mosteiro dos Jerónimos quando resolverem limpar a fachada e talvez ainda sobrasse um bocadito para esconder o Centro Cultural de Belém.

Portanto se é isso que querem, o que vai uma pessoa de bem, como eu, fazer? Acobardar-se uma vez mais, acho que até dei um grito quando me vi do tamanho da Torre Eiffel aos três anos, e tirei tudo, evidentemente, e por acaso gosto imenso de escrever evidentemente.

Mas ando triste com aquela cabeça azul que podia ter o delinear do meu cabelo, ao menos isso tinham posto, os parolos do google+, já que gostam tanto de aumentar, aumentavam como deve ser, não é?

É que vejo outros blogues, mesmo aqueles que contam dezenas e dezenas de comentários por dia, postar coisas que por um tempo, é certo que curto, mas um tempo, têm zero comentários, zero. Que chatice.

(será que se abrisse conta no facebook...hã?)

Coisa verde


Tão boas foram as minhas férias que na primeira oportunidade, hoje, o dia do feliz regresso, fiquei no trabalho até depois de todos saírem (que também não eram assim muitos, já que este dia quis calhar no mês de agosto).

Todos todos não, o segurança ainda andava por lá. Os meus colegas dizem que ele é maluco, mas eu defendi-o sempre, acho que ele se inclina mais para um filósofo frustrado, um cientista reprimido, coisa assim; ensinou-nos a todos, por exemplo, vai para mais de vinte anos, os efeitos das hoje em dia famosíssimas bagas goji; apresenta aos mais pacientes, a espaços, novos cremes muito naturais que curam mais ou menos tudo e tem uma frequente vontade de discutir a cotação das acções da bolsa e pedir conselhos não sei para quê que não é a mim que os pede.

- Ah, ainda aí está, passei assim de repente e vi uma coisa verde.

- Verde?! - pergunto-lhe eu, ele com a cabeça espetada dentro da minha sala, confirmando o verde que viu.

- Sim, verde, a sua camisola não é verde?

Olhei para baixo, que camisola é esta que pus hoje de manhã?

- Não, é azul.

- Ah é? Mas então é um azul muito esquisito, muito raro.

- Raro?! - continuo a olhar para mim mesma - não, é azul turquesa, este azul chama-se turquesa.

- Turquesa? nunca tinha visto... E as suas férias, foram boas? - felizmente mudou de assunto.

- Sim, foram, obrigada - não devolvi a pergunta, este homem não foi de férias.

- Mas está muito magra - ele mantém a cabeça espetada dentro da minha sala, pelos vistos a vontade de fazer comentários sobre a minha pessoa ainda não lhe passou.

- Não estou nada magra, a minha cara é que é magra.

- Ah pois, tem razão, é da cara é! Realmente essa cara não ajuda nada...


Por conseguinte lá se foi o filósofo frustrado, o cientista reprimido e isso. Perdeu a defensora dele, que por muito maravilhosa que eu seja, um ser humano compreensivo, tolerante, optimista, magnânimo, justo, há, evidentemente, limites.

(eu, que desta vez até regressei ao trabalho sem neura, vou retomá-la da próxima, é mais seguro)

22/08/2014

Todas as estrelas

Tenho tanta vontade de te escrever, que comprei uma dúzia de postais todos iguais. Não escolhi o desenho que lhes foi impresso; se é uma fotografia antiga não sei, se é imagem que encerra mil palavras não encerrará todas as que tenho para ti e eu estou a transbordar, como sabes - saberás?

Escrevi em todos, um após outro, tentei dar-lhes ordem mas este fervor também me está nas mãos, este ardor no meu peito que continua a fabricar flores para ti.

Saí então à rua para colher um pedaço da vida que corre serena, firmar-me no espaço, tentar libertar-me da febre que me queima a pele assim, deves sentir, sentes?

Reparei que o sol ainda vai alto, as cores nos seus tons vibrantes cantam o refrão do ritmo do tempo; mesmo do avesso, olha como o verde é lindo.


Regressei, sentei-me à mesa e vi que ficou tudo mal, os postais. Desorientação em pedaços, manta de retalhos de um amor sem tempo, uma história que não se põe em capítulos assim, mas eu não podia esperar mais e tu compreendes isto, tu compreendes tudo.

Tentei arrumá-los como tu saberias fazer, dar ordem ao pôr do sol deste dia que ainda não acabou. Torci o tempo a ver se recupero o norte, meti-lhe curvas, virei-o para trás, iluminei-o com velocidades diferentes, pedi ajuda às teorias possíveis, nada resultou, só doeu, a desordem ficou. Depois soltei-o, deixei-o ir como quer e o tempo foi.

Quando voltou trouxe-me velha, vi-me ao teu lado, mãos engelhadas entrelaçadas nas tuas, deitados numa cama de onde se podem ver todas as estrelas e o sorriso que nos cintila na alma reflectido no firmamento.

20/08/2014

De livre vontade


Quem neste momento olhasse para mim mesmo distraidamente, diria que acabei de enfardar uma entediante dose de perna de peru no forno, o que não é verdade.

O que é verdade é que estou desde ontem a tentar perceber que palermice foi esta e isso deixa-me, não posso negar, com cara de peixe: a abrir e a fechar a boca sem emitir qualquer som (uma proeza, no meu caso), ou seja, praticamente o aspecto de que me revestiria caso tivesse comido a referida e entediante dose.

Cacifos, malas de viagem ou dispositivos de amarração de bicicletas a postes de electricidade, com certeza, cadeados cadeados cadeados. Mas amor!? En-cadear o amor!? Que brincadeira vem a ser esta, senhores gestores do centro comercial?

É pendurado na varanda de uma das superfícies comerciais que encanta Coimbra e que deita para o Mondego, que se pode encontrar este triste desajustado idiota e infeliz painel com cadeados agarrados a fitinhas de cueiros de bebés antigos e corações com inscrições como esta, caso se pretenda confirmar.

Coimbra é, por acaso, cidade onde costumo notar que as mães gritam menos com os filhos, que os casais se esquecem mais de rabujar entre eles, que as crianças conversam e fazem perguntas interessantes - sim eu ponho-me à escuta - em vez de gritarem e darem pontapés nas canelas dos pais, e que as pessoas, em geral, são mais bonitas do que na minha cidade habitual, Lisboa. Sinto, até, que a paz pára mais ali do que aqui.

Portanto era não estragarem, senhores gestores do centro comercial, e tirarem aquela merda dali, que há crianças que já sabem ler, sim?

E em Paris nas pontes não sei quê e em Amesterdão por acaso também, não é, mas isso interessa o quê?, nós somos nós. E sabemos bem que amor só é amor se for de livre vontade, não sabemos?

(isto de andar a postar fotografias deve-se sobretudo à saudade, não ao tédio, à saudade)

18/08/2014

O terraço

Estou aqui estou de mau humor.

O verão é uma canseira, as férias principalmente. Forçamo-nos a estar bem, felizes, muito felizes, a gozar e a descansar e a combinar coisas e a ir a praias apinhadas de gente, nas quais o mar de carros estacionados é mais extenso que o verdadeiro e eu tenho tendência a preferir estar a trabalhar, mas não me atrevo.

No dia do almoço com a família quase toda, que toda não cabe, fui em busca das sardinhas prometidas, que boas que costumam ser, mas a presença em massa de emigrantes na zona tinha levado tudo e hoje só veio uma caixa, menina, mas tenho congeladas. Douradas, então, se faz favor. E, depois, que a peixeira não estava pelos ajustes para arranjar uma legião de douradas, a estúpida, lá teve a minha mãe de o fazer por mim, que eu não dominava a arte, e noto que o pretérito imperfeito foi utilizado porque agora já domino, é que lhe observei bem as voltas, minha rica mãe.

Meter gasolina também. Também o quê?, também contribui: enquanto a funcionária da gasolineira enche o depósito, noventa e cinco se faz favor, observo dois homens sentados à única mesa da esplanada daquilo, em cima de manchas de óleo,  cães escanzelados deitados no chão, caixotes do lixo a abarrotar e a receber a visita de todas as moscas do país, de certeza, observo os dois homens, a ver se não me perco, que comem tremoços e bebem cerveja e se riem muito quando a empregada que os atende vem debicar tremoços do prato deles e ali fica, a falar com a boca cheia, e a rir, com os pés sujos nos chinelos, depois limpa as mãos às calças de flores e desaparece outra vez na espécie de loja, num correr desajeitado, vai buscar mais tremoços?, estou aqui estou de mau humor, já disse.

E é a barulheira das festas das nossas senhoras. Dos remédios, da boa viagem, das dores, dos aflitos, do rosário, do amparo, das águas santas, do socorro e já chega, não queremos mais.

Apetecia-me escrever que o que me faria mesmo feliz era encontrar a festa da nossa senhora da internet que já está a fazer falta, qual é o problema? Mas não, pode ficar mal.

Vou mas é apanhar a roupa que já secou, terminar de esfregar a grelha, plantar o pé de loureiro que a minha irmã trouxe no dia das douradas, varrer o terraço, descascar as batatas para o jantar, tudo metido nesta tarde de férias que escorre serena vestida de azul, emoldurada pela linda paisagem verdejante à minha volta e, vais ver, esqueço-me das ânsias em que me pões e fico de bom humor outra vez.


(se um dia eu conseguir ser mais rápida que a luz, tenho tempo de ficar na foto que eu própria tiro, por enquanto fica só o lugar em que me sentei a escrever isto; a prova é o terraço, que precisa de ser varrido)

16/08/2014

Azul claro


Acordei ainda estava escuro.

Lembrei-me, antes que viesse a insónia, do miúdo gordo que iniciava  a custo o percurso para chegar à cascata.

Doze ou treze anos metidos em noventa quilos, talvez mais, que em passadas trôpegas mal progrediam, enfiados entre a rocha a fazer de parede e o riacho lá em baixo. A água corria sobre as pedras caídas no leito descontínuo, salpicando os fetos, espumando nas curvas, carregando memórias de um inverno muito chovido.

A mãe da criança vinha atrás, colada ao filho, passos pequenos, aflitos; empunhava um pacote de Lays dos grandes, aberto ao céu e mantido à altura do ombro do menino, não fosse dar-lhe a fome de repente e não haver uma raiz de árvore por perto que o saciasse.

Ao cruzar-se comigo o miúdo parou, mal cabíamos ali os dois sendo um tão avantajado. O menino, enquanto espera que eu passe, volta a cabeça para trás, para a sua solícita mãe, que eu ouvi tão bem, e diz-lhe, isto é muito mais fácil na playstation, sentado na minha cadeirinha! Meu rico filho, fez o risinho tolo da mãe.

Saí da cama e aproximei-me da janela, que está aberta. O luar banha a serra lá fora, os grilos já se calaram, as estrelas estão acordadas. A cascata também, entoa alto o seu borbulhar que atravessa o vale e vem embater-me na face; perguntei-lhe se o menino dos noventa quilos a visitou. Não lhe distingui a resposta, pareceu-me que deu uma gargalhada.

Voltei para a cama e não pude dormir. O meu peito parecia produzir flores por dentro, vindas de uma primavera triste. Flores que ao luar parecem a preto e branco. Cerrei os olhos com força, mas as flores não queriam parar de brotar de mim e eu tive de sucumbir a este fluxo que deve ter nascido na cascata lá fora, enlacei-as o melhor que pude, uni-as nos ramos mais bonitos de que fui capaz, são para ti.

Só não lhes vi a cor, quando o sol raiou o céu de azul claro e os primeiros pássaros cantaram a sinfonia da alvorada, eu adormeci contigo nos braços.

13/08/2014

Vaca fria


Estava capaz de não dizer nada, encolhia os ombros e sentava-me a fingir que lia o meu livro que se desfaz um bocado de cada vez que lhe pego, punha-me a contemplar a vista como se fosse uma guru em economia, que boa é a ideia, ou continuava a esfregar com toda a força a grelha do peixe que abandonei ontem por já me doer o braço, o que pensando bem seria de tudo o mais útil.

(esta introdução foi inspirada nas apresentações das pessoas ou das empresas que começam por dizer o que não são e o que não fazem e só depois de a gente suspirar muito é que arrancam para a verdade)

Mas há coisas que tem que ser e por isso cá vai. Comer os flocos fornecidos nesta caixa cheia de indicações salutares ou folhas A4 de papel de impressora, gramagem oitenta por metro quadrado, salvo erro, que bem passadas na destruidora lá do escritório ficam em pedacinhos, tenho a certeza absoluta que sabe ao mesmo, que é nada.

Dito isto até parece que uma pessoa compra flocons d'avoine para dar sabor à vida. É que não é. (a inspiração revelada acima entre parênteses continua, portanto, presente)

Uma pessoa ou compra flocons d'avoine com etiquetas verdes e breves alusões a pontos importantes da tabela periódica dos elementos, ferro, magnésio, coisinhas fofas destas, para se manter assim que não se pode de bem que está, ou uma pessoa faz semelhante compra para matar uma saudadezita ou outra que possa trazer da fotocopiadora do escritório, que está agora tão longe. E isto é que foi preciso dizer.

Mas voltemos à vaca fria.

Para dar sabor à vida, que é o que verdadeiramente interessa, qual ferro qual magnésio qual quê, compra-se uma grade de cervejas como se fossemos vinte e cinco à mesa, um litro de gelado de chocolate para comer directamente da embalagem com os pés em cima do varandim, cinquenta quilos de bacalhau para levar para França mas isso não somos nós, nós é encher a barriga de peixe grelhado todos os dias, mesmo que isso cubra a grelha de porcaria que eu me esmero tanto a esfregar.

E é só terminar este ponto final, esta vírgula e vou já já sentar-me contigo no terraço a beber a tal cerveja muito fresca e a ouvir-te pôr essas tuas ideias em cima da mesa, vá lá, que é para eu as beber também, que essas sim dão-me tanto sabor à vida.

E depois, olha, depois é que não sei que havemos de fazer, amor.

12/08/2014

Retrovisor

Aconteceu-me, há dias, uma coisa surpreendente.

Já o sol tinha iniciado a sua descendente diária, conduzia eu o meu carro pelo centro de uma povoação beirã rumo ao supermercado do costume, o que não é, quase nunca, tarefa que me eleve o estado da alma aos píncaros. Mas desta vez traziam-me as circunstâncias um roçar de tristeza na sua vertente irritação, por motivos alheios a este blogue.

Num momento vazio de constatação distraída, pela milésima vez, sobre quão horrendos são os prédios desta rua (arquitectos, onde estavam vocês), a minha atenção é desviada para três jovens que caminhavam no passeio do meu lado direito, jovens que deviam rondar os quinze, dezasseis anos. Um deles, uma rapariga, arremessa, voluntaria e veementemente, com um movimento inequívoco do seu vigoroso e jovem braço, um papel amachucado para a via de rodagem, que veio aterrar no alcatrão mesmo à minha frente.

Olhar rápido ao retrovisor, não vem ninguém atrás. Paro, então, ao lado dos jovens, abro a janela do outro lado e grito para a miúda.

- Ó menina, apanhe o papel se faz favor, não se deita lixo para o chão!

Sem dar tempo de ouvir nomes de locais recônditos para onde esperei que ela e os amigos me mandassem, nem ver dedos esticados na direcção do céu, ou coisa assim, arranquei com a sensação de que chovi no molhado.

Pois assim não foi.

O espelho retrovisor mostrou-me que a rapariga se deslocou ao meio da estrada e apanhou o papel do chão.

Apaziguou assim, sem saber, a tristeza que eu trazia.

Javalis

A praia estava óptima. Quer dizer. Só provei a areia. O vento trouxe-ma às rajadas à boca e ao cabelo e a tudo, fez-me um depósito completo, ai o que é que isto me faz lembrar, tendo-me sido também dado verificar que mantém a sua dureza habitual, a areia, difícil de trincar, se não impossível, não obstante repartida pelos pedacinhos coloridos de que se compõe, valha-nos isso, comer rochas inteiras à dentada é que não lembra ao diabo.

(claro que é contigo, ah e não sei quê, que a minha praia é que é gira, não é? pensavas que eu não vi?)

Meti-me, a páginas tantas do livro de má encadernação que ando a ler, em que as primeiras trinta folhas, para aí, estão sempre a cair, meti-me, dizia eu (pensas que me distrais mas não distrais, ouviste?), a cortar o vento com muita bravura, caminhar descendente até às ondas, cá vou eu remover estes depósitos areníticos antes que me confundam com um fóssil, que eu para amonite não tenho jeito nenhum, o que me sai sempre bem é o arrozinho de tamboril, mas nesta ventania nem o molho de coentros a uns minutos do fim da cozedura se havia de safar.

(ai o arroz de garoupa é que é? o que tu queres sei eu)

Portanto as ondas; daqui a pouco estamos todos a dormir se eu não me despacho com isto, que as pessoas têm mais que fazer, vá lá: das ondas restava a espuma que ficava coladinha na areia onde me sentei e, depois, em pazadas orientadas a mim vinha ornamentar-me o cabelo, onda após onda, coisa tão rica, digo mim e não nós, porque só eu é que ali estava à intempérie marítima, as gaivotas não contam, portanto a água não provei. Nem ela me provou a mim, toma lá que não esperavas tanta lucidez.

Ainda tentei, ao menos, dar guarida aquática aos meus pés descalços durante um bocadinho, ficam tão giros assim, mas fui chamada à acção, dois chapéus de sol desenfiaram-se da areia e pernas para que vos quero, foi correr atrás deles que, por muita sorte, nas voltas giratórias não se espetaram nas costas de ninguém, apesar de não haver muitas costas por ali havia algumas, um alívio dos grandes e por acaso só com isto ganhei o dia.

A praia estava óptima. Quer dizer. Só provei a areia.

(eu sei, é de propósito que me repito, e não, não me consegues distrair)

Mas muito melhor do que a praia está o luar, agorinha mesmo, e esta é que é a cereja no topo do bolo (lembro que não optei pelo arroz de tamboril, é bolo a escolha acertada) debaixo do qual, estamos ao luar, pude ouvir os javalis fazer ronc ronc, que hoje, finalmente, haja céu e haja estrelas, das que caem e das que não, hoje, que alegria!, hoje, caramba!, hoje não chove.


(sim, javalis, a praia vamos lá ver, mas aqui o local é exótico, gostaste?)

10/08/2014

Super-Lua

Mesmo que dentro de mim seja um mar agitado, serei capaz de te pintar uma natureza que se finge de morta.

Não penses que me transformei agora numa coisa assim, não te vou encher de estrofes que não sei tricotar, apenas te posso oferecer um lenço bordado com os afazeres de que me ocupo, olha este.

Saí de casa cedo para ir comprar pão. No caminho tentei sintonizar uma estação de rádio mas elas fugiam, uma atrás da outra, jogavam às escondidas com o ruído branco que desafina sempre muito, como bem sabes. No entanto, lá apanhei uma distraída e sabes o que me saiu? o Jorge Palma, deixa-me rir, eu deixei-o rir-se, até me ri com ele, apesar de esta história ser minha, esta que te conto, estás a ouvir? De regresso a casa, parece mentira mas não é, atravessou-se uma marta no meu caminho, uma marta!, mesmo à minha frente. Juro que nunca tinha visto uma.

Bem vês, o lenço está sendo bordado, quase pronto, apanhei três seixos na praia para o enfeitar, um de cada cor, mas falta completar esta terceira coisa que te prometi, ainda estás aí?

É a Lua, mais logo, a Super-Lua. Vou subir ao monte para me aproximar mais dela, ficar a olhá-la contigo, acho que vamos gostar.

Se me lembrar, se me desocupares o pensamento por um minuto, se me largares a mão, faço uma fotografia muito grande, não sei ainda de que cor vai ser, não te prometo nenhuma, mas vai ficar linda para combinar bem contigo.

Depois posso dizer uma coisa qualquer que tu não vais ouvir, enquanto a embrulho com o lenço que bordei e os seixos a enfeitar para te oferecer.

A seguir, não te preocupes, retomaremos juntos o caminho, saberei trazer-te a casa.

07/08/2014

Para amanhã

Claro que sim, posso parar.

Mas tu continua. Fica-te bem esse fazer de conta, eu gosto de te ouvir dizer o meu nome três vezes como se me ralhasses muito.

O estupor da vizinha que manda vir os papos-secos que o padeiro pendura num saco à nossa porta, não sei lá que raio quer isto dizer, acabou de chegar com a música do carro aos berros, o que foi bom para fazer o barulho das obras em frente parecer uma versão melhorada do musicado Carmina Burana. E vai uma.

Ontem, enquanto esperava pela minha vez no balcão do peixe, o casal gordo dois números à minha frente comprou tanto bacalhau, que eu podia ter lido duas vezes o manual de instruções do carro, se o tivesse ali à mão, enquanto a empregada cortava aquilo às postas e, depois, para meu espanto, o casal seguinte, também gordo, os casais ficam gordos com muita facilidade, imagino bem o que lhes anda a faltar, é o que faz tanta televisão, então não é que o casal seguinte pede uma saca com uns cinco ou seis bacalhaus inteiros? Claro que quando chegou a minha vez indaguei à empregada, que esfregava as próprias lombares, não é da actividade em casal, diz-me ela que é de cortar tanto bacalhau todo o dia, uma pena, perguntei-lhe então o que se passa, se já é Natal e eu ando distraída, ou se estou num outlet gastronómico sem saber. Não menina, diz-me ela ainda a esfregar os rins, é para levarem para o estrangeiro, eles lá na França não têm. Duas.

Estou a ficar sem luz, que o sol já vai baixo, mas ainda há tempo de te informar que te hei-de visitar em sonhos. E untar-te a pele nua com a essência dos elementos que me tens oferecido. Não penses que sou criativa ou tenho ideias loucas, quer dizer, até tenho, mas não é isso, é mesmo uma maniazinha que arranjei de te proteger a alma. Tu continuas a fazer que não vês. E eu até posso parar. Mas só na terceira, que fica para amanhã.

04/08/2014

Até a estrada acabar

Torna-se difícil, percebes?

Podia contar-te que a roupa no estendal já secou, que sacudida pelo vento não segura as moléculas de água, as tretas de se diluírem no ar seco, que hoje não chove, mas isso deixava-te na mesma.

Ou então que lá fui ao centro comercial comprar não um mas dois biquínis e que provavelmente não os vou usar, visto que é preciso que haja verão, também aqui nada de novo, para quê incomodar-te.

E podia, mas não o faço, cair na asneira de te dizer que desconfiava seriamente que quando saía do quarto e fechava a porta, as minhas bonecas, a que eu fornecia roupas, umas mal costuradas por mim, outras bem pela minha mãe, a quem atribuía falas e risos e choros, e portanto uma história, desconfiava que se animavam em vida própria, libertas das minhas imposições alinhadas ao estado de espírito de poucas primaveras vividas e então saboreavam a liberdade em pleno. Mas não quero correr o risco de te ver bocejar, abanar a cabeça. Tola eu já sei que sou, deixa lá de negar isso. E vais ver que há mais: e depois dava meia volta e tornava a abrir a porta muito depressa, mas elas, as bonecas, quietas no mesmo sítio, a rirem-se de mim por dentro, conseguiam ser mais rápidas, eu não disse?

E se te contar que fui visitar o rio numa destas manhãs porque as nuvens estavam malucas e filtravam os raios de sol de uma forma que me magnetizou para ali? E que acabei a tropeçar no cabo de um barco velho e a máquina fotográfica que eu tinha na mão disparou para dentro de um ninho com ovos que encontrei numa gaiola onde vive um pássaro verde; também não te vai encher de alegrias, pois não?

Nem isto nem as luzinhas espalhadas pelo jardim na outra noite, a esvoaçar de vez em quando, uma miragem de estrelas na terra que desde a infância não me visitava, verdade? Pirilampos, isso é que elas eram, que afinal ainda existem pirilampos e estas coisas encantam-me, que queres?

Torna-se difícil não me levantar e não te pegar na mão e não te levar pelo caminho abaixo, até a estrada acabar e ficar só a terra muito antiga, calcada pelo cansaço dos milénios vividos ao vento, dos tempos em que choviam pedras e tudo, tenho a certeza, uma busca que faríamos pelas entranhas do universo e que depois talvez, finalmente, me deixasse encontrar as palavras para te dizer que não sei onde pôr esta ternura que sinto por ti.