a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

30/07/2015

Tinha de vir parar ao blogue

O que fiz foi cortar uma batata em fatias da espessura de rodelas e com jeito dispô-las na frigideira, há lugar para todas, um pouco de azeite e mais uns truques do momento, inspirados no apetite ou nos sons que se captam da rua, não sabemos tudo. Cozinhar é com os sentidos que se faz, tal como o amor; não queremos livros de receitas.

Enquanto a batata não se apercebe do que lhe vai acontecendo, ai uns calores, o que é isto, é sal, e isto, é tomilho, faz cócegas o tomilho, lembro-me da mais incrível coisa que me aconteceu e que um dia tinha de vir parar ao blogue, é hoje o dia (enquanto esperamos pela batata).

Estávamos no casamento da minha irmã mais nova, doze verões atrás, uma quinta em Sintra, uma tarde de junho e de sol, a minha colecção de sobrinhos e filhas no grupo etário sub-oito, eu de vestido azul e sandálias muito novas e muito altas. Ainda estamos na fase das fotografias com os noivos no jardim, é deste lado da tenda que tem as mesas postas, lá dentro, que estamos. Do outro lado da mesma tenda há mais jardim, mas eu ainda não sei que há mais jardim.

Passam empregados com bandejas cheias de copos ou então com aperitivos, coisas pequenas. E agora passa um por mim com croquetes em forma de bola, bolinha, coisa muito capaz de fazer felizes as minhas filhas, tiro duas da bandeja, uma em cada mão, onde estão elas? Olho em volta, não as vejo, aqui só está gente grande. Olho agora para os dois croquetes que podia meter na boca de um trago e resolver o assunto sem dar corda às sandálias muito novas e muito altas no chão muito relvado e pouco firme. As minhas mãos, porém, não mas levam à boca e os pés começam a andar, onde vão pés, digo eu, procurar as miúdas, dizem eles, doem-me mas não sou senhora de mim para os parar, talvez queira vê-las de boca cheia, são giras aquelas boquinhas a mastigar croquetes, deve ser isso. Aqui não estão, neste lado não estão. As minhas pernas levam-me à tenda. Entro e só há silêncio, mesas lindas, cadeiras vestidas de laçarotes, copos, muitos, reluzentes, que bonito é um casamento, doem-me os pés, já chega mas não paro, deixei de ser dona do meu corpo, os croquetes se os comesse acabavam-se as dores, mas não vais comê-los, continua. De repente oiço a criançada do outro lado desta linda sala, no jardim que agora mesmo percebo que existe.

Atravesso pelo meio das mesas, o piso aqui é melhor para sandálias muito novas e muito altas, e assim que saio para o chão do outro jardim, agora é de pedra, os meus pés ai já chega, come tu os croquetes, as minhas mãos nada, seguram-nos bem, os pés doridos avançam, mas afinal onde estão as miúdas. E se bem pergunto melhor me respondem, ali vêm elas, descem aquela escada de pedra, finalmente, as minhas princesas a correr com um batalhão de mini primos, vem tudo a rir, chocam comigo alguns, tia sai da frente, ó meninas olhem aqui, croquetes, abram a boca. Abriram, comeram, continuaram a correr, desapareceram no interior da tenda, cuidado meninos!

E aquela escada, onde irá dar? Não, não vais subir a escada, vais-te sentar um bocado, descansar, olha que depois nem dançar consegues, mas eu vejo-me ir, os pés não me obedecem, já aqui estou, subo a escada sim senhor.

Em cima há um relvado muito bem cuidado, muito verde, um relvado que termina para dar lugar ao azul muito azul da água de uma piscina, a superfície da água ao nível da relva tão verde, não há interrupções entre eles, nem desníveis, quem vai na relva segue para dentro de água, mais bonito o quadro só se fosse Vermeer.

E ali vai a Marta a correr, trôpega mas a correr, a minha sobrinha que nem dois anos tem, relva fora, de costas para mim, direitinha ao azul muito azul da piscina, a Marta e mais ninguém. Corri. Apanhei-a a dois passos de cair na água. Segurei-a junto a mim com tanta força que o meu coração me saltava pela garganta a cada batida. Por um momento não me consegui mexer, a miúda apertada nos meus braços. Ela deixou-se ficar, talvez sentisse o meu coração bater-lhe no rosto pequenino.

Foi a única vez que salvei a vida a alguém e também a única em que o meu corpo não me quis obedecer. Foi a coisa mais inexplicável que me aconteceu.

Por isso tinha de vir parar ao blogue. Desligo o fogão, junto as rodelas de batata agora coradas, um pouco estaladiças, ao resto dos legumes e sento-me a jantar. Obrigada pela vossa atenção.

27/07/2015

Auto-ajuda para posts (que não querem ser exterminados)

Nem tudo são rosas, como é costume. O post anterior (este blogue é fofinho e mostra os posts anteriores de oferta) foi muito a jeito de revelar que deste lado nos preocupamos com as causas nobres, repito nobres, e as defendemos e assim angariamos outros corações, que se juntam aos nossos, basta ver a qualidade suprema de quem aqui pára a comentar.

Mas íamos nas rosas. A meio do passeio nocturno ao lado de minha filha caçula, podemos verificar no post anterior com a maior das facilidades (posts anteriores? é aqui, é aqui!) que esse passeio teve lugar à beira do rio Tejo, bem debaixo de bandos de morcegos, espero que os agrupamentos de morcegos se chamem bandos, e agora não me vou pôr a repetir tudo outra vez, sei que tenho o problema de escrever demais, mas mergulhemos o espírito no lindo quadro que aqui pintámos no post anterior (que será mantido ali onde está sem ameaças de exterminação, nada a temer, queridos leitores).

E foi a meio do percurso que se viu que as rosas não são tudo: surgiu dentro de mim a necessidade de resolver um assunto bastante meu. Havia o café, que estava cheio, por dentro e por fora, na esplanada, onde se tocava saxofone ao vivo, e havia o outro café, na porta ao lado, às moscas. Quer dizer, para além de moscas tinha o dono e dois homens de boné e boca aberta a olhar para o televisor pendurado na parede.

Pus o meu melhor sorriso, sei que estas coisas são delicadas, que nós não vamos consumir nada, cheguei perto do dono do café às moscas e

- Dá-me licença que utilize a casa de banho?

Ele limpava um copo com um pano da loiça e respondeu-me sem olhar para mim e com os modos no lado mau, sim.

Avanço para a porta com o "WC" estampado e vejo um papel colado que dizia “AVARIADA”. Dou um passo atrás e

- Mas… está avariada?

- Se eu lhe disse que pode usar é porque pode usar e não está avariada, não acha?! – os modos, que estavam maus, ficaram piores.

Esta é a parte em que as minhas metades discutem entre si. Que fazemos? Mandamos o homem à merda com muita classe ou mostramos-lhe o que é ter a classe que ele ainda não conheceu e de que está mesmo a precisar, caso queira fazer negócio com mais que moscas?

Ganhou o lado A, agradeci a gentileza, avancei para a porta “AVARIADA” e tratei do meu assunto. Quando saí

- Queremos dois gelados, se faz favor.

Ele abriu muito os olhos, ficou nitidamente envergonhado, ensaiou um sorriso que me pareceu sair torto, largou os copos, quais são os gelados, o resto seguiu como deve ser e eu como se ele não tivesse posto os modos no lado mau.


E depois hei-de lá voltar. Não porque coma muitos gelados, mas por interesse. 

Interesse em saber se as moscas irão ter companhia ou se terão, também elas, que sair.

(apesar de este ter saído um post a cair para o mau, ele vai vencer, vai ser forte e vai ficar no seu lugar ao sol neste blogue - aprendido no curso de auto-ajuda para posts que não querem ser exterminados)

25/07/2015

Ainda há alguém a ler isto?

Não sei exactamente quando deixei de me interessar por planetas. Cresci alérgica à televisão e isso arrumava-me dentro de coisas do tipo suplemento do Expresso aos sábados. Recortava-o sempre que lá havia assunto sobre planetas, é verdade, buracos negros (interessam-me ainda) ou o mistério da extinção dos dinossauros (idem) e metia-o no dossier de capa azul, lia muitas vezes aquilo.

Claro que nessa altura não fazia ideia que o rio está diferente todos os dias e que de manhã para a tarde pode crescer de azul para verde, e depois à noite pôr-se preto com brilhos (já mostro). Ando a estudar isto. Todas as manhãs me chego perto, não muito, o suficiente para lhe ver o dorso macio até à conclusão: vestiu-se de fato às riscas em tons de azul ou está sonolento, boceja ou ainda copula calmamente com o céu (esta não percebi).

Não me interessa que a NASA tenha descoberto um planeta parecido com a Terra. Já andamos há tanto tempo a escavacar este, poluímos à fartasana, estragamos à vontade, e depois? Depois juntamos o petróleo todo (se ainda houver petróleo) num space shuttle à maneira e mudamo-nos para esse novo planeta onde o sol também brilhe e a água também se beba para depois retomarmos alegremente as guerras e um novo ciclo de poluição, tipo assim? Aproveito para acrescentar (ainda há alguém a ler isto?) que quem vai de bicicleta para o trabalho havia de ter benefícios fiscais como gente grande, quem anda de transportes públicos também, etc, mas isto são outros quinhentos (para quando eu for ministra).

E íamos aqui: a seguir ao jantar olhei sem querer pela janela e vi o céu cor de rosa e azul a deitar-se no rio, precisamente (é isto que eu digo), o ar respirava-se a si próprio de tão bom que estava e eu dei um salto, vamos, e fomos logo (arranquei uma filha de casa). A noite começou a chegar depois de nós e arranjou o lugar grande para se instalar mesmo em cima de tudo. Havia gente a correr, gente de bicicleta, jovens pais a empurrar carrinhos de bebé, cães e donos a passear. Havia verão, o brilho das luzes, havia a ponte a guardar os peixes e os morcegos que voavam baixo (doidos), havia saxofone ao vivo e havia a minha filha a caminhar ao meu lado, mãe que bom, mãe gosto tanto, mãe quem me dera ter um cão, mãe conta-me coisas.

Não sei exactamente quando deixei de me interessar por planetas, outros planetas. Mas sei exactamente porquê.


(no entanto, continuo indecisa: se é a Ave Maria de Bach que me toca mais fundo, se a de Schubert… aqui, logo a seguir a ti) 

21/07/2015

Um post fofinho, mesmo fofinho? por aqui, se faz favor

Como se torna habitual em situações diversas, comecemos por explicar o que não é um post fofinho. Um post fofinho não é um post que ta ta ta sobre o amor e na na na sobre as mulheres e pa pa pa sobre o cair em amor pelas mulheres, não. 

Um post fofinho é aquele que nasce doce, directa e naturalmente (como o sol) do encontrar de soluções práticas e eficazes para problemas do quotidiano (que à primeira vista enfim). A expressão “oh que amor!” vai ouvir-se agora, em cascata crono-geográfica, precisamente após o que vamos ver a seguir com atenção.


A cena parece parvíssima. Mesmo que não quisesse, tenho de me contentar com a passagem pela minha sala da mulher que faz a limpeza, mal, lá no escritório. Por exemplo deixa as baratas à solta no chão da casa de banho, eu deixo-as também, mas primeiro ai desculpem, julguei que estava livre e mudo de casa de banho. Outro dia a mulher apanhou-me pelas costas quando me ausentei por motivos inadiáveis e vai de lançar-se ela mais a esfregona encardida sobre o meu chão, meu quer dizer (mas percebe-se), deixando tudo molhado e a cheirar mal que se farta, como se estivéssemos dentro de catacumbas com ratos podres e nós a saber que as listas de compras podem perfeitamente comportar esfregonas novas. Fiquei de mau humor até o chão secar e nem mais um minuto, após o que, suspirando, tomo nota para lhe trazer um bonito ramo de cinco esfregonas de cores diferentes, deve dar até ao Natal. 


Portanto um post fofinho não é um post que ta ta ta sobre o amor e na na na sobre as mulheres e pa pa pa sobre o cair em amor pelas mulheres, não.

Isso é, verdadeiramente, um pedaço de poesia em bruto, acabada de colher de dentro de um coração que se adivinha puro, vem por esculpir, por lapidar, por maquilhar. E depois vê-se que não precisa.


Então? É ou não é fofinho o meu post?

Não tenho mãos azuis

O dentista andava há imenso tempo com a conversa dos sisos, que a minha filha precisava de se ver livre dos dentes do siso, dois. Mas eu não sou de contrariar a natureza e a filha é minha, se os dentes vieram deixemo-los estar, coitadinhos, e isto fez muita conversa no corredor que dá para a sala de espera, mesmo em frente ao cartaz do miúdo sardento a sorrir com uma escova de dentes na mão, eu a optar por sair já dali e ele a querer convencer-me, tem de ser, está a ver a arcada inferior e uma data de coisas não sei quê (a arcada inferior da minha filha é linda, naturalmente). Isto era assim de todas as vezes que lá íamos – quem tem filhos vai muito ao dentista.
Mas depois de tantas edições do assunto, creio que cruzámos pelo menos quatro estações de um ano, sucumbi àquilo, vá, se a miúda precisa, em termos médicos, de ter livres os lugares dos dentes do siso, vamos embora e fomos, há dias (isto é-me difícil e por uma questão de me manter em estado de vigília total, limitarei os pormenores, não vá a cabeça cair-me na fila de teclas zxcvbnm e encher o buffer, piiiiiiiiii).
A situação deu-se em sala própria, tinha cirurgião, tinha assistente, tinha eu sentada na cadeira atrás dela, uma ou duas vezes estico o meu braço, ergo-me um pouco de forma a chegar-lhe, fazer-lhe uma festa na cabeça, a mãe está aqui, amor, e o cirurgião ri-se com a seringa gigante na mão e confirma, a mãe está ali.
Não demorou nada, saltamos detalhes rocambolescos e passamos já à sala de espera, onde se encontra o balcão da recepção e eu sou chamada a receber instruções, a minha filha sem dente e com um volume de gelo na cara, senta-se, está esbranquiçada, eu mantenho um olho nela, claro, pode precisar de mim.

Põem-me uma lista à frente, em cima do balcão, tem quinze instruções e a primeira é sobre a compressa que está lá dentro da boca da miúda, chegando a casa tira, a segunda diz que ela não mostra a costura a ninguém porque vai abrir e a instrutora simula a situação na própria boca, para eu compreender, os pontos podem rasgar, ai, eles pensam em tudo, aliás simula mais, fala com detalhes mas eu já vi que tenho pouco tempo, olho para trás e a minha filha sorri-me como pode, melhor, continuamos, a medicação, este só toma se as dores forem fortes, ela não vai ficar sozinha em casa, pois não? pode desmaiar, diz a instrutora olhando para a carinha linda que ali está, a mão segurando o gelo na face. Não, eu fico com ela, claro. Então vamos lá, os horários, o elixir, o gel que põe com o dedo e com jeitinho em cima da costura, ai, a escova para depois, a comida, carne e peixe, dê-lhe carne e peixe, ovo, nada de ficar só a iogurtes, tudo muito partidinho, amanhã ligamos, se inchar isto, se doer muito aquilo, vai dormir com almofadas debaixo da cabeça, mas eu já estou agarrada ao balcão com as duas mãos e ainda faltam cinco linhas das instruções, não sei se consigo ir até ao fim, baixo a cabeça, sei que ajuda, tenho um bocado de vergonha de ser assim, pode ser que me aguente, concentro-me, a voz da instrutora está a ficar longe e os meus ouvidos começam a apitar, bolas, aperto o balcão com força e tento ler as linhas que faltam, mas a palavra compressa e aquela coisa de os pontos, ai, os pontos poderem abrir, noto as minhas mãos desfocadas e azuis, não tenho mãos azuis e aí concluo que já não estou em condições de ouvir o resto. Evitando desaparecer verticalmente do campo de visão da minha zelosa instrutora, procuro a cadeira mais perto, está a dois passos, vou conseguir, então mãe? que tens? Concentro-me e faço acertar o rabo no assento, excelente. Já passa, desculpem, isto já passa. Com a mão livre, a minha filha traz-me copos de água, um pacote de açúcar vem lá de dentro e é despejado para debaixo da minha língua, aí absorve depressa, diz-me a instrutora, querem deitar-me.
Mas cabeça para baixo é o suficiente, meto-a entre os joelhos. Para acelerar o processo, pego numa revista que está ali ao lado, ocupo a cabeça com coisas mais fáceis e leio que a Sara Prata, por estar magra, não gosta que lhe falem em anorexia, que não se brinca com a anorexia. Concordo com a Sara, que mesmo magra como está me deu uma mãozinha valente. Dez minutos depois estava pronta, levantei-me e fomos para casa.


(afinal o teclado safou-se, o buffer também e quem ouviu o resto das instruções enquanto eu lia revistas foi a minha filha, de gelo na cara e o outro dente do siso para tirar mais tarde, ai)

19/07/2015

Para variar do medo

Certamente ainda falta muito inverno e muito abril para o momento em que terei de informar definitivamente sobre o que gostaria de ter plantado junto à minha campa: se uma magnólia branca se rosa. Não decido com facilidade nenhuma qual das tonalidades me faz virar melhor a alma ao contrário e sobrevoar os quintais das casas nas garras firmes das águias reais. Inclino-me, hoje que é um julho na meia idade e restam apenas dois pirilampos tontos a querer acasalar com quê (as fêmeas já eram), hoje que me empenhei em correr atrás do sol a pôr-se, hoje que me senti coroada pela via láctea muito depois disso, inclino-me para a variedade branca, ficamos já a saber. Aliás, foi possivelmente por pouco que me vi feita pessoa, um desvio mínimo (intitular-se-ia lindamente um nano desvio se eu tivesse vindo mais tarde) de um bater de asa de borboleta e temos portanto o tufão que me criou nesta forma, magnólia fica para a próxima, sim?

Um dia normal de trabalho. Tomemos um destes dias, imaginemo-lo cinzento e sem vento. Um ar húmido de chumbo iminente, sem cair nunca. Um céu sem gaivotas (muito menos águias reais). Se calha lembrar-me da magnólia, é capaz de se levantar no ar a gaivota mais fernão capelo que houver ali, cortando depois em fatias finas, demoradamente, o chumbo, que afinal estava macio.

Mas não costuma calhar. E depois, à falta de matéria prima: um texto desenxabido?

Hoje não. Hoje trago duas meninas.

Uma, pelo tamanho do seu talento, alegra-me tanto vê-la e ouvi-la, faz-me invariavelmente sorrir, invariavelmente querer repetir, ver de novo o arquear dos seus lábios, no fim, ao minuto 3:57, a espelhar a comoção devolvida por felicidade tamanha.

A outra, porque me visita frequentemente o pensamento, vinda de uma ferida que se me abriu no coração quando a vi, há meses, por aí na internet. Abriguei-a no meu computador oferecendo-lhe o desejo íntimo, intenso, porém impotente, de que possa um dia mostrar o talento que lhe calhou. E sonho com um seu arquear de lábios desenhado pela mão grande da alegria, para variar do medo. (esta menina continua a fazer-me chorar, precisava de a pôr aqui na minha casa, adoptá-la, mostrá-la)

Campo de refugiados, Síria, Dezembro 2014. Fotógrafo Osman Sagirli. Menina de quatro anos que confundiu a máquina fotográfica com uma arma.

17/07/2015

Por um poeta assim

Sento-me no banco de madeira no cais de embarque da estação de metropolitano, cais de embarque soa a navios mas este é na estação de metropolitano; ainda faltam quatro minutos e meio para o comboio, dá tempo.

Retiro o caderno de dentro da mala, abro-o e tento escrever isto logo a seguir à data. Três dias sem carro e os meus sapatos estão de acordo com o dinheiro que dei por eles (ainda por cima são lindos), bem à altura dos tantos quilómetros que nos viram passar ao sol.

Percebi em criança que a chegada da composição (chamam composição ao comboio, está bem) vindo largada de dentro do túnel escuro recortado à justa, a rugir em toda aquela alta tensão e em redução contínua de velocidade, me causa impacto. Um senhor impacto. Nessa altura sustinha a respiração com a mão na da minha avó (era sempre ela a levar-me ao dentista) temia que o maquinista não calculasse aquilo bem, o comboio tinha de parar alinhado com a plataforma sem ficar nenhuma carruagem de fora, o túnel deve ser medonho. Mas, admirável: nunca vi um maquinista falhar.

Os quatro minutos e meio estão a chegar ao fim do nosso programa, boa noite muito obrigada a todos e fecho o caderno. Enfio a caneta nas argolas, esta pequena composição na mala e alegro-me.

Dez segundos depois ele aparece, recortado no túnel com uma tesoura afiada e continua a fazer-me isto, esta impressão, este sentir-me pequena e depois grande e depois pequena, em movimento, parada e depois em movimento. Está-se mesmo a ver onde vamos, não está?

Falta-me, há décadas, um poema para isto. Um mecanismo todo emocional que disponha a composição a ouvir-se, adivinhar-se, a surgir no túnel, chegar, a travar, imobilizar-se com a precisão cirúrgica com que se enfia a linha no buraco da agulha. E depois a respiração, peitos a subir, a paralisar, o tempo suspenso, o relógio do mostrador, esse, onde fica, também pára?

Já em casa, depois de tirar os sapatos, fiz uma sopa de nabiças bem encorpada, frutada na medida em que leva abóbora, vitaminada pelo resto que tem, aromática até ao fim do corredor e depois, enquanto suspiro por um poeta assim, capaz de coisas daquelas, como um prato cheio.

(a dica da respiração, peitos a subir, já a dei, não é?)

14/07/2015

Treze de julho

Vou contar uma coisa que aconteceu no dia treze de julho do ano dois mil, faz portanto hoje quinze anos e o post é grande. E talvez não seja para pessoas sensíveis.

No trabalho, fiz uma apresentação à administração da entidade patronal, propondo a criação de uma nova área que me parecia faltar (tinha levado meses a preparar aquilo em casa). Correu muito bem e eu vim para casa feliz, realizada, na minha cabeça já se desenhava a implementação de tudo, dizia coisas a mim mesma, fazia planos, enquanto conduzia o carro, cantei. Apanhei as duas filhas nas escolas - uma tinha três anos e a outra cinco meses - que provavelmente me ajudaram a cantar o resto até chegarmos a casa.

A minha avó tinha morrido há menos de dois meses; o único filho dela, meu pai, tinha ido um ano antes. Restava o meu avô, um pouco confuso e com oitenta e cinco anos de idade. Levei-o para minha casa para fazer de meu filho mais velho durante algum tempo. Nesse dia, a propósito de nada em especial, tinha convidado a minha irmã Catarina para lá jantar connosco.

Quando cheguei a casa, olá avô, olá filha, como estão as meninas? Beijou-as e a mim também. A pequenina tem de comer e depois faço o jantar para nós.

Peguei na bebé que já começava a choramingar e o meu telemóvel tocou. Estupidamente, muito estupidamente, atendi. Era a advogada que nos estava a ajudar a tratar de coisas que eu não sabia fazer. Tinha muito para dizer, a advogada, e eu tentei interromper, desculpe, preciso de dar o jantar à bebé. Ela não me ouviu, continuou, passaram trinta segundos e a miúda abriu berreiro junto ao meu ouvido esquerdo. Desculpe, preciso mesmo de desligar. Nada. Mais isto e mais aquilo. Nisto, a mais velha vem ter comigo e puxa-me pela roupa, mãe, mãe, ouve, anda cá, mãe! Espera, filha. Enxotei-a com o olhar, bruscamente, ela zangou-se, vi-a desaparecer no seu quarto e fechar a porta. O berreiro no meu ouvido esquerdo continuava e a advogada finalmente deu-me uma aberta, vou desligar, com licença. Senti um alerta surdo e fui directa ao quarto das miúdas, abri a porta. O frasco do xarope da tosse na mão dela, a rolha em cima da mesa e um olhar comprometido, os lábios brilhantes. Estupidamente, muito estupidamente, o frasco estava ao seu alcance. Passei o meu dedo indicador na língua dela e provei. Tinha bebido o xarope. Bebeste, filha. Sim... Olhei para o frasco, estava quase vazio e tentei recordar quanto tinha antes. Não me lembrava.

A campainha tocou. Virei-me para ir atender, ainda com a bebé ao colo e a chorar, quase tropecei no meu pobre avô que não sabia o que fazer, fui abrir a porta à minha salvadora, toma a miúda e prepara-lhe um biberão, por favor. A minha irmã tomou a sobrinha nos braços e fez o resto. Virei-me para a mais velha. Anda cá, conta quanto bebeste. Não sabia, chorava, tremia. Peguei no telefone e liguei para a linha de saúde 24 de onde me remeteram para outro serviço do qual só me lembro ter ouvido a palavra venenos. De lá perguntaram há quanto tempo foi, cinco minutos talvez sete, faça a miúda vomitar já, meta-lhe os dedos na garganta. Se não conseguir fazê-la vomitar em meia hora, tem de a levar às urgências.

Desliguei. Deitei-a no meu colo e enfiei-lhe os dedos na garganta. Ela chorava e mordia-me, mas chorava mais do que mordia. Meti-lhe azeite pela garganta abaixo, ela engasgou-se, chorou mais. A meia hora estava feita.

- Catarina, vou com ela ao centro de saúde, toma conta do avô e da bebé, já venho.

Pensava eu. A caminho do centro de saúde, a miúda a choramingar, ela nervosa, eu também, tentei contactar o pai, meu então marido, telefone ainda desligado. Centro de saúde em três minutos, atirei com o carro para o primeiro buraco que encontrei e corri escada acima. Faça-a vomitar, por favor, eu não consegui. Tive a (única) decência de levar comigo o frasco do xarope, para mostrar. Ela bebeu isto. Há quanto tempo? Mais de meia hora... Já saiu do estômago, agora tem de a levar ao hospital. Vá e vá já. Mas não sem levar uma brutal reprimenda e ouvir umas coisas sobre mães que deixam medicamentos ao alcance das crianças. Santa Maria, voei. No caminho informei a minha irmã, tens que ficar mais um bocadinho, está bem? Entrei com o carro, urgências, a miúda bebeu isto, não sei quanto bebeu. Outra brutal reprimenda. Eu sei, eu sei, não volta a acontecer, ainda pode fazê-la vomitar?
Não, mãe, a miúda vai cá ficar internada, tem de fazer uma lavagem. Internada?!?! Sim, primeiro limpar o estômago, depois o resto. Levaram-na e eu fui atrás, deitaram-na. Eram duas enfermeiras e iam enfiar-lhe um tubo pelo nariz para a fazer beber por aquela via o que ela recusou pela boca: um copo cheio de carvão líquido. Perguntaram-me se eu queria mesmo ficar, não ia gostar de ver. Fiquei. Ajudei a segurar nela. Enfiaram-lhe o tubo, meteram o líquido preto pelo nariz. A minha filha esperneava, chorava como podia. Depois sentaram-na e ampararam-na e ela vomitou o carvão. Mãe, agora senta-se aqui com ela ao colo e segura-lhe os braços atrás das costas para ela não arrancar o tubo porque vai ferir-se. Dentro de duas horas podemos ter de repetir, depois fica a soro, para limpar o resto.

Duas horas. Ela teve tempo de acalmar sentada ao meu colo, de costas para mim e, com as mãos entre ela e eu, abracei-a de forma a prender-lhe os braços sem ela se sentir presa. Contei-lhe histórias, todas as que me lembrei. O meu coração gritava de ódio de mim mesma. Isto parece mentira, mas é verdade, isto: entraram duas profissionais de saúde para a sala em que estávamos e uma miúda mulata, de quinze anos. Tinha tentado suicidar-se e elas esforçavam-se por falar com a miúda. Faziam-lhe perguntas que não foram respondidas. Eu via-a de costas, os ombros descaídos num desânimo que não mais esqueci, hoje terá trinta anos, se viver. Continuei sempre a falar baixinho com a minha filha, que já quase não soluçava. A história daquela adolescente entrava-me pelos ouvidos adentro na forma das perguntas que lhe faziam as duas mulheres, lembro-me que as vozes delas eram doces, impregnadas de compreensão, de paciência, talvez de amor. Depois do interrogatório que não deu resultados, saíram todas, ficámos nós e as histórias.

O tubo foi por fim retirado e a minha filha seguiu para a enfermaria de pediatria. Havia muitas camas, algumas resguardadas por cortinas. Iamos passar ali a noite. Deitaram-na numa das camas do meio, puseram-lhe uma fralda, ela informou que já não usava fralda há muito tempo, que não era preciso. Mas tinha de ser, ia ter mais tubos colados aos pulsos e ao peito e equipamentos com luzinhas na outra ponta dos tubos, aos quais ia ficar ligada durante a noite. Para além do soro enfiado na veia, claro. A mim deram uma cadeira de madeira para eu ficar. Agradeci a todos os santos por poder ficar. Eu, que me sentia merecedora de apedrejamento e a história ainda não acabou.

Na cama ao lado da nossa estava uma menina de quinze meses. Vestia apenas a fralda e tinha uma ligadura gigante à volta da cabeça. Tinham-na operado nesse dia, era um tumor maligno e estava a recuperar. O pai contou-me isto e disse que tinham esperança. Ia ficar com ela numa cadeira igual à minha. Estava escuro, lá fora a noite tinha caído há muito e eu finalmente pude começar a chorar. Senti-me horrenda quando aquele pai me perguntou o que tinha a minha filha. Ele não se mostrou horrorizado, porém. A minha filha passou uma noite tranquila. A outra menina de vez em quando gemia e estremecia um pouco. Nessas alturas, o pai falava-lhe baixinho com uma voz tão carregada de amor que quase parecia sobre humana. Sempre que ele falava à filha, eu rompia em choro, até tive de sair da enfermaria para não fazer barulho. Todas as crianças dormiam, de pais só estávamos nós. Durante a noite, num ou noutro momento em que não chorei, veio-me à memória a alegria que tinha trazido do trabalho nesse dia. Parecia irreal e completamente tola.

Na manhã seguinte vieram os médicos e enfermeiros fazer a ronda, deram alta à minha filha. A mãe da outra pequenina veio render o pai e eu abracei-a, não sei que lhe fiz, queria dar-lhe vida para a filha, se pudesse.

Não há dia treze de julho que me não lembre desta criança e da outra de quinze anos. E em muitos outros dias também. Talvez por isto, por me ter visto revelada numa mãe imbecil e descuidada, patética, assim contrastada com dois casos tão terríveis, talvez por ter visto quão maravilhosos e enormes são aqueles profissionais de saúde com quem me cruzei no Hospital de Santa Maria, talvez por isto eu tenha aprendido a valorizar a vida e não tenha o costume de ser má.

Má fui ali, naquele dia e por toda a minha vida, ao deixar o frasco de xarope ao alcance da minha filha.

13/07/2015

Espécie de ratatouille sem manga

Esforcei-me, queria escrever um texto delicioso e escolhi ratatouille. Uma espécie, quer dizer (eu faço o que me apetece). 

Depois de reservar ao lado esquerdo de quem está de frente para o armário dos pratos, os vegetais vermelho sangue (um lindo naco de pimento) e os verdes a evoluir do branco (alho francês e courgette, corações de duas cores), faltou-me um tom laranja (escolho as tonalidades com o bocado de arte que me cabe). Olhei para a manga que vive há uma semana ou mais, o tempo passa a correr, no frio azul do meu frigorífico e vi que está cansada, engelhada, pouco firme dentro do seu invólucro que cobre um dégradé muito lindo (porém suculenta). Peguei nela e coloquei-a gentilmente em cima da bancada para se aclimatar ao verão que me arrombou a janela da cozinha, descansar, esticar a pele, e lanço-me aos outros de faca na mão. 

A leste de tudo isto, ouve-se o plim oco do telefone, insinuando-se desolado, avisando que devo apagar mensagens caso pretenda receber mais. Enquanto o vermelho e o verde se entendem, laminados, na cama de azeite a arder onde os deitei, e depois enfeitei de sal, avanço a pegar no aparelho, olha que boa ideia para me entreter neste entretanto. 

Começo então a apagar as pequenas missivas, vamos amanhã à praia, vamos, já pode encomendar os livros escolares com quinze por cento de desconto, estas são fáceis, hoje vais à ginástica, vou, deve liquidar a factura da água até dia tal a menos que já o tenha feito e então descarte, descartei. Na boa. No entanto, chegando àquelas do tipo mãe tive dezassete vírgula seis a matemática com três pontos de exclamação, mãe vens almoçar comigo sem ponto de interrogação, ao chegar a estas, suspiro. Suspirando, apercebo-me de que os vegetais já chegaram a uma plataforma de entendimento, está a cheirar tão bem, a prometerem saber-me pela vida (acho que também é a Carla que diz isto, saber pela vida) e acelero. Ao todo, num minuto e meio, devo ter dizimado algumas dezenas de mensagens. 

Parei naquela em que se lê “mumy es linda linda”, situação que sendo verdadeira pode mudar a qualquer momento da vida de uma pessoa, sei lá eu. Esta fica, pode fazer falta. Pousei o telefone ao lado da manga ainda de casaco vestido. 

Com a colher, dou algumas voltas ao ratatouille, quer dizer, uma espécie de. A manga fica para amanhã, será reduzida a puré e deixada escorregar assim para cima de um paralelepípedo de gelado de nata desenformado da caixa e agora lanço lá para dentro, colocando a voz na curva do corredor,

- Amor, mumy leva dois émes no lugar do segundo!


11/07/2015

Verão

Levei muito tempo a aceitar que o açúcar fornecido pela fruta é precisamente o mesmo que se mete industrialmente, à pazada metálica-asséptica ou com dispensadores talvez basculantes, dentro de um maravilhoso magnum de amêndoas. Maravilhoso porém carregado de incertezas quanto à bondade de o consumir, mas isto só até hoje, dia em que me caiu a ficha.

- Ai mãe, gosto tanto da minha vida.

No último dia de um outubro antigo, trazia dentro do corpo a minha segunda filha a preparar-se para o milagre da vida. Apesar do peso que já tinha acumulado, comprei exactamente um magnum de amêndoas, com uma desculpa formulada para dentro, é só desta vez. Libertei-o lentamente da embalagem - para não ferir as lascas amendoeiras incrustadas na pele de chocolate - e foi à frente dos meus olhos a brilhar que isto se fez. Estávamos junto a uma praia das imediações de Sintra. O sol da tarde inclinava-se gentilmente estendendo um braço de luz com a generosidade de um espectro inteiro no campo do visível. Foi-me então possível caminhar com os tornozelos dentro da água fria de gelado na mão. Na outra levo a ponta do vestido próprio para grávidas, não fosse às ondas apetecer molhar vestidos próprios para grávidas.

Lembro-me que nesse momento me invadiu uma felicidade descomunal. Tão grande que me foi difícil guardá-la dentro do meu coração único, quase pedi outro emprestado para ajudar. A praia está deserta para além dos fosseis de dinossauro que não se vêem daqui e as minhas três pessoas e meia (o meu outro rebento levava dois anos de milagre da vida) que me olhavam, dizendo, as três pessoas, sai-daí-vírgula-já-não-é-verão, mas para mim era. Foi. E continua a ser.

A minha filha segunda, essa que, esta semana, outra vez:

- Ai mãe, gosto tanto da minha vida.

E só hoje me caiu a ficha, como diz a Carla. Foi aquele magnum de amêndoas. Impregnado do açúcar que se apanha na fruta, salpicado de sal na última luz espectral de um outubro antigo, aprontou-me a miúda para ai-mãe-gosto-tanto-da-minha-vida. E é frequente. É verão.

É o milagre da vida.

10/07/2015

Antes de as ervilhas se apaixonarem

A bem de toda a família, preciso de arranjar uma actividade adequada para enfiar nos minutos excessivamente longos que me prendem ao fogão entre o ligar o vermelhão da chapa no máximo e os alimentos começarem a queixar-se do calor e por conseguinte requererem afagos concretos à colher de pau. Até lá experimento o tédio e a impaciência que não me lembro de ter colhido quando à minha frente se instalava um fogão a sério, fogo azul, um plasma vivo no qual os meus olhos dançavam, coisa tão despachada nas feituras (e dava para fazer incandescentes chapas de ferro em forma de coração para esturricar superfícies de leite creme e agora nada, não há leite creme). Estender a roupa já experimentei, até gosto bastante: enquanto aperto as molas espreito a vida do bairro, em baixo, oiço o papagaio do quiosque onde se compram flores caríssimas e os carros passar na rua, por vezes o sino da igreja também aparece e o rio sempre a mostrar um pedacinho do dorso, ao fundo. Porém, não meto todo este pacote na janela de tempo disponível e sou recebida de volta à cozinha por uma cebola de repente castanha na tonalidade muito escura, colada ao fundo da frigideira e afins destes. Afins destes é possivelmente uma redundância que vai ficar. Já ponderei orientar-me mais a sul e deitar-me precisamente ao rio a tentar pescar um quê de poesia na corrente, velejando sem me mexer, sou capaz, mas sei que regressar a mim antes de as ervilhas se apaixonarem pelo tacho e se fundirem com ele e depois nem umas nem outro, e o pior é que os ovos já lá estavam, será um desafio. Gostaria de saber como faz quem sabe cozinhar verdadeiramente e sem novidades para contar (não terá blogue, está certo, mas quem precisa de blogue quando é um sucesso no garfo?). Falta referir que ler ou escrever nem pensar, as palavras mostram tendência para me engolir à hora de fazer o jantar ou qualquer outra coisa.

Creio, então, que o ideal será retomar o cachecol de tricot que comecei em dois mil e onze com agulhas sete e que nunca visitou as beiras do fogão molengão. Grande ideia para as malhas, talvez até dê para uma carreira inteirinha ou duas. Depois conto.


(este blogue é capaz de se virar para dicas caseiras - por exemplo, como remover frascos de shampoo vazios da casa de banho das miúdas sem fazer três viagens de ida e volta ao contentor das embalagens para reciclar - eu cá não perdia o próximo número)

08/07/2015

Maria Barroso

"...Nos momentos difíceis é preciso que as pessoas dêem as mãos e procurem aquilo que as pode unir para vencerem as dificuldades. Porque, caso se guerreiem e agridam, não vão a parte nenhuma. Pelo contrário. Acrescem as dificuldades. "

Maria Barroso, Jornal de Negócios, 2010

Do excelente trabalho no Observador.


Pessoas assim inspiram a minha existência. E não conseguem morrer.

07/07/2015

Muitas gerações de tábuas de engomar (pouquíssimo para homens)

Vagueio pelos corredores da loja de artigos para o lar, procurando sensações precisamente do lar, gosto muito.

Principalmente das que se colhem em jogos de lençóis de algodão branco com florzinhas campestres bordadas na dobra, em jarras de vidro transparente a pedir um arranjo floral, candelabros destinados a casar com os cristais nas mesas de jantar ou em cabides de parede na forma de um home sweet home que me lembram o aroma de um bolo a sair do forno enquanto o fogo crepita na lareira. Não tanto os detergentes em garrafas de plástico de cores ofuscantes, embalagens de luvas de borracha, baldes e vassouras, aspiradores de mão que me admira ainda se venderem, uma vez que se avariam se não na primeira semana de uso, então é na segunda. Portanto volto atrás e viro para os cestos de vários tamanhos, ponho imensas coisas lá dentro sem mexer em nada, a imaginação faz isso e continuo ao longo das fileiras de chávenas de café e cafeteiras, depois as de chá, as almoçadeiras também estão e chego a tempo à zona dos serviços de mesa, cerâmicas encantadoras a maioria. Corro-as com os olhos, levanto a cabeça para a de topo mas antes do grande final temos que dizer uma coisa pertencente a este capítulo.

Descobri recentemente que duas donas de casa muito conceituadas cá para mim, uma dentro da minha família outra fora, não passam a ferro, não passam a ferro, lençóis com elásticos de abraçar colchões, daqueles põe-se e já está, estica-se com as mãos, não. Não passam. Ora eu que me debati tantos anos em lutas à beira de muitas gerações de tábuas de engomar contra esses lençóis especiais e as suas rugas infinitas, forças vivas, eu que a seguir corria a metê-los na gaveta para esquecer depressa a derrota, sou capaz de sentir agora uma espécie de alegria que me levou às pazes com a tábua de engomar em vigor. E isto convence-me facilmente a passeios em lojas de artigos para o lar em pleno território holandês, depois do que retomamos a emissão suspensa no parágrafo anterior e seguimos para o grande final.

Isto, precisamente. Relíquias lusas a encimar escaparates que se vêem já a seguir, não saia do seu lugar, enquanto passam duas nativas por mim, senhoras que aparentam muito uso destas coisas e eu oiço-as comentar em concordância absoluta: as cerâmicas portuguesas são lindas.




(foi vontade de variar dos gregos, se não fizer diferença)  

04/07/2015

Paralelo cristalizado

Quando escreves crias minutos, crias horas, és numa outra vida. Em partes te redesenhas à vontade. Transportas-te para um paralelo com quem tu quiseres, fazes dias de tempestade, caminhas estradas velhas, colhes uma flor ou ouves um pássaro. Fica-te, então, o paralelo cristalizado em palavras que não se gastarão ao serem lidas pela eternidade fora. Quem te lê experimenta-te o sapato, saboreia-te a escultura, toma-te a dor.

É no momento em que me desembaraço das sandálias que me ocorre escrever-te estas ideias, estou a meio da viagem. À minha esquerda, lá em baixo, brilha o oceano que nos banha. O sol morde-me o ombro desde Lisboa, tem dentes de labaredas que atravessam a janela do avião, mas são macios. À minha direita, a mulher jovem de cabelo ruivo come a laranja que descascou com as unhas, bonitas unhas. Gosto do cheiro do citrino e das dentadas do sol no meu ombro, nada aqui me desagrada, o que torna estas linhas aptas a fazer-nos bocejar. Aproveito para recostar a cabeça.

Antes de adormecer penso que as tuas são palavras que hei-de sempre ler. E dou-me a isto sorrindo, o ar perfumado de laranja, o sol a divertir-se comigo e as sandálias fora dos pés.

01/07/2015

Verde tinto

O melhor é ir lá atrás. Onde deixei o cabelo mais escuro, a pele mais lisa, o passo, porém, mais trôpego. Tanto, que não travei a fundo, como tinha de ser, para imobilizar a viatura diante de um sinal que está ali a passar do laranja para o vermelho num instantinho. O carrito branco, feiinho feiinho, que já lá parou é que fez bem, mas está o piso molhado, faltam cinco minutos para começar a aula de ginástica da miúda, e nós aqui. Elas pequenas, as duas, eu grande (não muito).

Passei, faz de conta que é verde tinto, vamos lá meninas, está quase, elas a dormitar, iam sempre a dormitar por causa do trajecto que se fazia em mais de hora e meia todas as manhãs em modo arranca e pára, progresso intermitente no qual a chuva costumava colaborar. Pelo retrovisor tento captar o efeito admirativo que causei na certa ao condutor do carrito branco, feiinho feiinho, viste eu, carrito?

- Olha, achou boa a minha ideia e saiu do semáforo, está a avançar, que giro.

E, na manhã chuvosa, cinzento-cintilante, prateada não obstante (gosto muito de rimar aqui nas prosas, fica muito bem), ouve-se no ar uma sirene umhó umhó, igualzinha às da polícia (muito parecida). Mas não foi preciso mais que um reles nanosegundo para eu captar toda aquela mensagem matinal e encostar o carro com as duas garotas menos estremunhadas, entretanto, mãe, porque vais parar aqui?

- Bom dia senhora condutora, sabe porque a mandámos encostar, não sabe?

- Sei – digo isto de cabeça baixa, lembro-me bem dessa parte da cabeça baixa, mas continuo – o vermelho tinha acabado de cair, senhor agente. E o piso está molhado e… vamos atrasadas para a aula de ginástica…

Mas isso não interessa nada, uma vez que já tinha caído o vermelho, o resto já sabemos, os seus documentos, a morada, senhora condutora, tem duas moradas nos seus documentos, mora em alguma delas, moro sim, vou já corrigir para a semana, estava mesmo a pensar nisso, acredite senhor agente, posso pagar por multibanco, pode, tão simpático, obrigada, vá lá mas para a próxima leva também a da morada, vá tratar disso, vou vou senhor agente, prometo senhor agente.

Fui poupada, por conseguinte, a uma das duas multas a que tinha direito, a das moradas não coincidentes. No entanto a história ainda não acabou.

- Ó mãe, tu disseste uma mentira ao polícia.

- Eu, filha? Que mentira? – é a mais nova, que tem quatro ou cinco anos.

- Disseste que tinha caído o vermelho.

- E tinha. Mas tu se calhar não viste, vais aí atrás, quase a dormir...

- Não, mãe, eu não vi cair nada e depois olhei para a rua enquanto falavas com o polícia, não há lá vermelho nenhum.