O que fiz foi cortar uma batata em fatias da espessura de rodelas e com jeito dispô-las na frigideira, há lugar para todas, um pouco de azeite e
mais uns truques do momento, inspirados no apetite ou nos sons que se captam da
rua, não sabemos tudo. Cozinhar é com os sentidos que se faz, tal como o amor;
não queremos livros de receitas.
Enquanto a batata não se apercebe do que lhe vai acontecendo, ai uns calores, o que é isto, é sal, e isto, é tomilho, faz cócegas o tomilho, lembro-me da mais incrível coisa que me aconteceu e que um dia tinha de vir parar ao blogue, é hoje o dia (enquanto esperamos pela batata).
Estávamos no casamento da minha irmã mais nova, doze verões atrás, uma quinta em Sintra, uma tarde de junho e de sol, a minha colecção de sobrinhos e filhas no grupo etário sub-oito, eu de vestido azul e sandálias muito novas e muito altas. Ainda estamos na fase das fotografias com os noivos no jardim, é deste lado da tenda que tem as mesas postas, lá dentro, que estamos. Do outro lado da mesma tenda há mais jardim, mas eu ainda não sei que há mais jardim.
Passam empregados com bandejas cheias de copos ou então com aperitivos, coisas pequenas. E agora passa um por mim com croquetes em forma de bola, bolinha, coisa muito capaz de fazer felizes as minhas filhas, tiro duas da bandeja, uma em cada mão, onde estão elas? Olho em volta, não as vejo, aqui só está gente grande. Olho agora para os dois croquetes que podia meter na boca de um trago e resolver o assunto sem dar corda às sandálias muito novas e muito altas no chão muito relvado e pouco firme. As minhas mãos, porém, não mas levam à boca e os pés começam a andar, onde vão pés, digo eu, procurar as miúdas, dizem eles, doem-me mas não sou senhora de mim para os parar, talvez queira vê-las de boca cheia, são giras aquelas boquinhas a mastigar croquetes, deve ser isso. Aqui não estão, neste lado não estão. As minhas pernas levam-me à tenda. Entro e só há silêncio, mesas lindas, cadeiras vestidas de laçarotes, copos, muitos, reluzentes, que bonito é um casamento, doem-me os pés, já chega mas não paro, deixei de ser dona do meu corpo, os croquetes se os comesse acabavam-se as dores, mas não vais comê-los, continua. De repente oiço a criançada do outro lado desta linda sala, no jardim que agora mesmo percebo que existe.
Atravesso pelo meio das mesas, o piso aqui é melhor para sandálias muito novas e muito altas, e assim que saio para o chão do outro jardim, agora é de pedra, os meus pés ai já chega, come tu os croquetes, as minhas mãos nada, seguram-nos bem, os pés doridos avançam, mas afinal onde estão as miúdas. E se bem pergunto melhor me respondem, ali vêm elas, descem aquela escada de pedra, finalmente, as minhas princesas a correr com um batalhão de mini primos, vem tudo a rir, chocam comigo alguns, tia sai da frente, ó meninas olhem aqui, croquetes, abram a boca. Abriram, comeram, continuaram a correr, desapareceram no interior da tenda, cuidado meninos!
E aquela escada, onde irá dar? Não, não vais subir a escada, vais-te sentar um bocado, descansar, olha que depois nem dançar consegues, mas eu vejo-me ir, os pés não me obedecem, já aqui estou, subo a escada sim senhor.
Em cima há um relvado muito bem cuidado, muito verde, um relvado que termina para dar lugar ao azul muito azul da água de uma piscina, a superfície da água ao nível da relva tão verde, não há interrupções entre eles, nem desníveis, quem vai na relva segue para dentro de água, mais bonito o quadro só se fosse Vermeer.
E ali vai a Marta a correr, trôpega mas a correr, a minha sobrinha que nem dois anos tem, relva fora, de costas para mim, direitinha ao azul muito azul da piscina, a Marta e mais ninguém. Corri. Apanhei-a a dois passos de cair na água. Segurei-a junto a mim com tanta força que o meu coração me saltava pela garganta a cada batida. Por um momento não me consegui mexer, a miúda apertada nos meus braços. Ela deixou-se ficar, talvez sentisse o meu coração bater-lhe no rosto pequenino.
Foi a única vez que salvei a vida a alguém e também a única em que o meu corpo não me quis obedecer. Foi a coisa mais inexplicável que me aconteceu.
Por isso tinha de vir parar ao blogue. Desligo o fogão, junto as rodelas de batata agora coradas, um pouco estaladiças, ao resto dos legumes e sento-me a jantar. Obrigada pela vossa atenção.
Estávamos no casamento da minha irmã mais nova, doze verões atrás, uma quinta em Sintra, uma tarde de junho e de sol, a minha colecção de sobrinhos e filhas no grupo etário sub-oito, eu de vestido azul e sandálias muito novas e muito altas. Ainda estamos na fase das fotografias com os noivos no jardim, é deste lado da tenda que tem as mesas postas, lá dentro, que estamos. Do outro lado da mesma tenda há mais jardim, mas eu ainda não sei que há mais jardim.
Passam empregados com bandejas cheias de copos ou então com aperitivos, coisas pequenas. E agora passa um por mim com croquetes em forma de bola, bolinha, coisa muito capaz de fazer felizes as minhas filhas, tiro duas da bandeja, uma em cada mão, onde estão elas? Olho em volta, não as vejo, aqui só está gente grande. Olho agora para os dois croquetes que podia meter na boca de um trago e resolver o assunto sem dar corda às sandálias muito novas e muito altas no chão muito relvado e pouco firme. As minhas mãos, porém, não mas levam à boca e os pés começam a andar, onde vão pés, digo eu, procurar as miúdas, dizem eles, doem-me mas não sou senhora de mim para os parar, talvez queira vê-las de boca cheia, são giras aquelas boquinhas a mastigar croquetes, deve ser isso. Aqui não estão, neste lado não estão. As minhas pernas levam-me à tenda. Entro e só há silêncio, mesas lindas, cadeiras vestidas de laçarotes, copos, muitos, reluzentes, que bonito é um casamento, doem-me os pés, já chega mas não paro, deixei de ser dona do meu corpo, os croquetes se os comesse acabavam-se as dores, mas não vais comê-los, continua. De repente oiço a criançada do outro lado desta linda sala, no jardim que agora mesmo percebo que existe.
Atravesso pelo meio das mesas, o piso aqui é melhor para sandálias muito novas e muito altas, e assim que saio para o chão do outro jardim, agora é de pedra, os meus pés ai já chega, come tu os croquetes, as minhas mãos nada, seguram-nos bem, os pés doridos avançam, mas afinal onde estão as miúdas. E se bem pergunto melhor me respondem, ali vêm elas, descem aquela escada de pedra, finalmente, as minhas princesas a correr com um batalhão de mini primos, vem tudo a rir, chocam comigo alguns, tia sai da frente, ó meninas olhem aqui, croquetes, abram a boca. Abriram, comeram, continuaram a correr, desapareceram no interior da tenda, cuidado meninos!
E aquela escada, onde irá dar? Não, não vais subir a escada, vais-te sentar um bocado, descansar, olha que depois nem dançar consegues, mas eu vejo-me ir, os pés não me obedecem, já aqui estou, subo a escada sim senhor.
Em cima há um relvado muito bem cuidado, muito verde, um relvado que termina para dar lugar ao azul muito azul da água de uma piscina, a superfície da água ao nível da relva tão verde, não há interrupções entre eles, nem desníveis, quem vai na relva segue para dentro de água, mais bonito o quadro só se fosse Vermeer.
E ali vai a Marta a correr, trôpega mas a correr, a minha sobrinha que nem dois anos tem, relva fora, de costas para mim, direitinha ao azul muito azul da piscina, a Marta e mais ninguém. Corri. Apanhei-a a dois passos de cair na água. Segurei-a junto a mim com tanta força que o meu coração me saltava pela garganta a cada batida. Por um momento não me consegui mexer, a miúda apertada nos meus braços. Ela deixou-se ficar, talvez sentisse o meu coração bater-lhe no rosto pequenino.
Foi a única vez que salvei a vida a alguém e também a única em que o meu corpo não me quis obedecer. Foi a coisa mais inexplicável que me aconteceu.
Por isso tinha de vir parar ao blogue. Desligo o fogão, junto as rodelas de batata agora coradas, um pouco estaladiças, ao resto dos legumes e sento-me a jantar. Obrigada pela vossa atenção.