a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

30/09/2015

Post sobretudo mais ou menos curto

Ao almoço não quiseste sopa, eu comi a de ervilhas. Algumas inteiras, as demais em união irreversível, cremosa, de um tom de verde que me aprisionou os olhos por causa da sedução cromática à qual já sei desde os vinte e cinco anos de idade que sou sensível. Gostava de ter um casaco de inverno deste tom de verde era o meu pensamento, estava até a ver-lhe a textura macia, a imaginar-lhe os botões de massa do mesmo tom, grandes, o casaco forrado para deslizar melhor no abraço de o vestir, o que eu gosto de casacos e eles de mim, de certeza que é isso, quando tu repetiste que estás ansiosa pela tua primeira aula de condução, logo à tarde. Pestanejei nas ervilhas para me libertar e virei o olhar para ti, sinto-me sempre um tanto culpada por desviar a atenção de quem está presente, absorta no meu mundo vibrante que é magnético, eu que tenho teorias tão bonitas, ainda por cima eu e os casacos e as cores, elas hábeis sugam-me em vórtice, algumas cores, e se eu quisesse exagerar diria todas mas não. Sentada à minha frente, continuas a falar e a sorrir, mexes as mãos, inclinas a cabeça, ainda não sabes que és linda e és tanto. Pedi-te para repetir, o que disseste, filha? Enquanto te olhava não te ouvi, uma das minhas teorias desdiz a de as mulheres fazerem múltiplas coisas em simultâneo, mentira imensa. E tu vais de fazer a inclinação de cabeça e o olhar maroto, depois a pausa, a seguir baixas mais a cabeça e olhas reprovadora a fingir para mim: Ó mãe, pára! Mas parar de te amar com os olhos não farei até morrer. Retomas o assunto da condução, da aula que vais ter, que estás nervosa, esperas ser capaz, dizes, e torces as mãos no colo, não preciso de as ver para saber que as torces, és tão bonita, filha, e não sabes que é tão bom estar aqui a almoçar contigo enquanto o meu lugar lá na cantina vazio.

Sucedeu este almoço não hoje mas há uma lua talvez e eu apanho este rascunho no monte de rascunhos que é o meu. Pensei que era capaz de dar um post mais ou menos, mais ou menos curto, sobretudo. Longo não. Longo há-de ser o meu casaco sopa de ervilha. Casaco não, sobretudo.

28/09/2015

A primeira lição

Também o meu foi um dia longo. Mas ainda o vou esticar mais um bocado porque isto tem de ser escrito.

Tomei o pequeno almoço com o sol a nascer à minha direita e a televisão a dar as notícias à minha frente. Uma jovem estudante síria, de dezanove anos, que acaba de chegar a Portugal, é entrevistada: o que vem ela cá fazer, perguntam-lhe. Vem, diz ela, estudar engenharia civil para depois voltar à Síria e ajudar a reconstruir o seu país. 

Há pessoas que me entram assim coração adentro e nunca mais por muitos anos que viva, delas me esquecerei. Esta jovem vem aprender engenharia civil para ir reconstruir a Síria e quem recebeu a primeira lição fui eu.

Bem haja gente assim. 

(lembrei-me das incontáveis manifestações a que assistimos por este país fora: para mais salário e menos horário, para mais direitos e menos deveres, lembrei-me)

24/09/2015

Big Bang pode ficar com maiúsculas

Quando hoje cheguei ao ginásio a arrastar mentalmente a perna esquerda devido aos vinte e seis quilómetros de bicicleta feitos no sábado passado, acho eu que foi disso, reparo que estão todos a olhar para cima e a trocar exclamações apontando para o canto superior esquerdo de quem está virado para a janela e apercebo-me agora de que isto com um desenho ia lá melhor (se desenhos soubesse eu fazer). Portanto também a minha cabeça se vira para ali.

E agora estou cheia de vontade de escrever. De dizer que na segunda feira saí da minha toca laboral e meti-me no carro, percorri umas poucas ruas de Lisboa debaixo de um sol que dizia o termómetro valer trinta e um graus celsius (celsius devia ser com letra maiúscula mas fica feio, já bastou Lisboa), um calorão dos bons e cruzo-me com hordas de meninos envergando as vestes pretas universitárias, pintalgadas de alfinetes redondos e coloridos na capa que trazem pelas costas, não vá de repente cair um nevão e os meninos ficarem cheiinhos de frio coitadinhos e eu não sei o que querem dizer aqueles alfinetes.

Mas não foi só isto. Hoje tive uma epifania muito antiga horas antes de entrar no ginásio e ver toda a gente a olhar para cima. Tomei o café depois de almoçar na cantina do costume, havia caldeirada e disse a dona Esmeralda que gosta de caldeiradas, somos duas respondi-lhe eu, enquanto ela pisca o olho ao convidado que hoje veio almoçar connosco, por conseguinte seria a minha vez de abanar a cabeça e olhar por cima dos óculos reprovadoramente caso os tivesse, mas dizia eu que a epifania veio e foi a seguir à caldeirada que o fez. Ao beber o café, apercebo-me de que os átomos líquidos castanhos e quentes, amargos, entram em mim num feliz reencontro. Sim, precisamente um reencontro. Admitamos sem medo que todos estes átomos, os do café, que já sabemos como são, e os meus, que são imensos, estiveram juntos num mesmo ponto, muito apertadinhos, imediatamente antes do Big Bang (daí ser tão bom beber café).

De regresso ao ginásio onde ficámos com as cabeças suspensas do canto superior esquerdo de quem está virado para a janela, sinto um suspiro de pena no meu coração ao ver um par de olhos pequeninos, vivos e pretos, assustados, numa cabeça de andorinha; está este passarinho encolhido na reentrância que alguém se lembrou de fazer na parede a toda a volta da sala como se a emoldurasse lá bem junto ao tecto (falta o desenho). De forma que, mais algumas exclamações e inclinações de cabeça depois, alguém abriu a janela bem aberta e são horas de começar. Manda-nos a professora ir buscar um colchão e eu ai jesus o colchão (já sei que vai doer). Com a andorinha ensaiando voadas por cima das nossas cabeças a cada cinco ou dez inspirações, procurando a saída que não encontrou até ao fim, a aula foi uma espécie de tortura também para mim. Continuo sem conseguir pôr um calcanhar ao tecto e equilibrar o resto (imensos átomos) em forma de cadeira virada ao contrário num dedo mindinho espetado no chão e ao mesmo tempo inspirar e expirar aos comandos da voz da professora, que têm paragens demasiado longas entre as inspirações e as expirações, se não fiquei roxa senti-me perdida, nem mesmo a caldeirada me valeu. No fim daquilo e de a professora me perguntar se está tudo bem comigo, consegui finalmente pôr-me de pé outra vez. E então ouvi alguém dizer pilates, isto foi pilates.

Portanto em primeiro lugar, não torno a fazer brincadeiras com o Big Bang, bebo o café sem me dar a ideias e acabou-se. Em segundo lugar, era uma coisa assim que eu queria no ginásio. Qual pilates qual quê.

21/09/2015

Fazem falta

Nunca aqui escrevi sobre este meu colega que hoje vem ter comigo e me pede duas coisas, põe um bloquinho de papéis azuis em cima da minha mesa para eu escrever as coisas que ele me pede quando tiver tempo de as encontrar se faz favor e depois eu digo espera aí um bocadinho que já levas mas a rede está lenta nesta segunda feira de verão que isto é um verão que aqui está, ele à espera o bocadinho que eu pedi, sem vontade nenhuma, a mexer-se para se ir embora, depois dás-me quando puderes, não é pressa, e eu é a rede que está parva, a ver se vai agora, que eu quero é despachar-me, espera lá e depois sem eu querer acontece-me pegar nos óculos de ver ao perto e pô-los na cara.

Esta parte se fosse num filme seria rodada em câmara lenta para lhe conferir o essencial, os meus imprescindíveis e recentíssimos companheiros do dia a dia, muito bonitos os meus óculos de ver ao perto, o meu colega já traz os dele, feios, pendurados num colarzinho desde que o conheço há muitos natais, é rapaz entradote, o meu colega, e está a olhar para mim como quem pensa que nunca me tinha visto os óculos e eu a fazer conversa enquanto a rede não quer vir, digo isto assim

- Foi num instante. Já preciso deles, há um mês era ainda capaz, ou dois, mas agora... foi num instante. Estamos velhos, meu caro.  

Ora o meu colega, nada caro, em vez de dizer o que devia ter dito do tipo tu nada velha muito nova e eu é que sim muito velho, porque afinal seria essa a verdade mais adequada, estica-se todo a olhar por cima da minha cabeça, sem óculos nenhuns na cara, o gajo, os óculos feios pendurados no colarzinho ao peito e lê, para mostrar que ele nada velho

- Fazem falta.

Pendurei-o na minha parede em novembro de dois mil e treze, leio-o de vez em quando desde então e sempre que necessito de refrescar a prece, o pedido, a reza, o desejo. O meu colega só lê o título, o resto ele não consegue de onde se encontra nem eu o convido, isso é que era bom, o post é meu e é a mim que (também) fazem falta pessoas assim.

20/09/2015

Deus me livre

Estaria a tarde de setembro adiantado calma, morna e com possibilidades de se ouvirem as moscas, caso as houvesse, não fosse a algazarra que vem aos altos e baixos, mais dos primeiros que dos segundos, dos lados da cantina.
O senhor, vamos supor que se chama Ramos, trabalha na portaria da empresa e regressou de férias neste muito dia, para quem tem a pachorra de me ler há tempos, sabe que "muito dia" vem directamente traduzido do inglês, há expressões que se me colam aos dedos e não saem nem com pasta de dentes, mas dizia eu que o senhor Ramos regressou de férias e trazia muita saudade da dona Esmeralda que anda nas lides das limpezas da cantina e sei lá mais o que faz ela ali enquanto canta, mas hoje não canta, o dueto que ouvimos é outra coisa.

Uma vez que sou sensível a barulhos, não lhes gosto dos comprimentos de onda, estou aqui estou a levantar-me e a ir lá das duas uma, ou para me divertir, ou para lhes perguntar se ouvem mal com cara feia, eu, mas ainda não me decidi.

Devido à inercia que me manteve a terminar uma coisa que estava a fazer muito bem feitinha, levantei-me só alguns minutos passados, pus-me ao caminho que não é longo, mas quando lá chego já só a encontro a ela a esfregar a vitrina da montra das sobremesas e das saladas, com muito vigor aplicado ao pano amarelo. 
- Vim tarde para a festa, já percebi. – isto digo eu. 
- Qual festa, menina? ... Aquela conversa? Ouviu?! 
- Ouvi a barulheira. O senhor Ramos vinha com saudades suas, não vinha? 
- Ele?! – olha-me por cima dos óculos com o pano a descansar-lhe na mão, por um momento, a avaliar se me conta se não conta. 
Diga lá, ele vinha. 
Olhe, vinha, pronto. Disse-me que pensou em mim nas férias, acha normal?! – e retoma a esfrega do vidro que deve ser o vidro mais lavado de toda a região de Lisboa e Vale do Tejo.
- E a dona Esmeralda? Não pensou nele? 
Aixa?!?!?!? - o olhar reprovador que me oferece por cima dos óculos é dos que eu gosto, mas crendo que me estiquei um pouco para além das minhas funções, arrepiei caminho. 
Dona Esmeralda, até eu pensei nele de cada vez que vi o outro, o substituto, qual é o problema? 
Ela sacode a cabeça com firmeza, muda de vidro e atira-me com o que lhe vai na mente. 
Sabe porque é que ele falava alto? Eu digo-lhe. Ele vinha com aquelas conversas das coisas sem sal e sem glúten, sabe como ele é com a mania das alergias, e eu disse-lhe, sabe? Eu disse-lhe – a esfrega continua com o mesmo vigor, que é muito – disse-lhe que o que ele devia era ser menos alérgico àquelas coisas e mais alérgico ao alho e à cebola crus, que ele come muito. – pausa para me fitar avaliando o impacto da ideia que acabou de revelar. 
A minha filha mais velha – a dona Esmeralda tem duas filhas – que trabalha muito com médicos, ela sabe, ah pois sabe, e diz que o alho e a cebola crus fazem muito mal. Devem ser cozinhados, está a ver? Assim num refogado bem puxadito, está a ver? – o refogado bem puxadito acompanha com uns gestos dificílimos de descrever realizados com a mão livre e que dão a ideia de estar a apalpar balões no ar - mas ele não gostou que eu lhe dissesse aquilo, o que é que lhe hei-de fazer? Ele é assim, tem lá aquela mentalidade dele... - conclui com um encolher de ombros.
Eu não a interrompo. 
- Sabe que ele pensava que os rapazes que vê na televisão sem pêlos nenhuns, todos lisinhos, está a compreender? Pensava que já tinham nascido assim, os rapazes? – o pano amarelo está agora mais dobrado a limpar as calhas onde correm as portas de vidro da vitrina.
Dona Esmeralda, quais rapazes? 
Ó filha, esses moços, esses do desporto, que aquilo é tudo lisinho, não é? Pois ele pensava que tinham nascido assim, não sabe que os homens também fazem depilação. Definitiva! 

O detalhe de ter a depilação masculina sido adjectivada como definitiva, conduziu a conversa para desenvolvimentos não autorizados para publicação.

No fim, com uma vitrina a brilhar por testemunha, a dona Esmeralda remata com um deus me livre, filha, deus me livre!

De volta ao meu trabalho, não sei se o deus me livre se deve aos hábitos de consumo de alho e cebola crus, se à mentalidade dele ou se a ambos. Só sei que a solidão do senhor Ramos me entristece.

17/09/2015

José Rentes de Carvalho voltou!

Pois claro que dei um salto na cadeira. E muito possivelmente emiti uma exclamação sonora. Bendita desintoxicação falhada!

Procurei a fotografia mais florida de todas para lhe oferecer neste seu regresso que tanta alegria me dá.




Aqui tem, para si. Foi tirada por mim, na sua Holanda, num (seu) mês de Maio.

Espero que o caminho de vício retomado que tem pela frente seja assim, bonito como este.

Azul, verde e constipada

A manhã vai avançada, o céu não se livrou do cinza antracite que o cobriu hoje cedo e eu já tomei dois cafés. São, portanto, horas de largar as teclas do computador e meter os dedos nas do telefone (enquanto o meu telefone tiver teclas eu posso escrever coisas assim giras, o que já não posso é dizer que tenho no carro leitor de cassetes), e ligo para casa onde ainda está uma das minhas filhas de férias, sim férias, tantas férias, intermináveis férias. Trouxe, esta minha doce filha, no domingo passado, uma constipação que encontrou no festival dos pós coloridos, happy holi é o nome, eu claro que não adoro festivais, mas eu não adoro muita coisa, para que servem festivais daqueles afinal, mas deixo-a ir, claro que a deixo ir, festivais que terminam em seis máquinas de roupa seguidas até sair toda a porcaria que se entranhou nos tecidos ninguém adora, ainda por cima desta vez aconteceu chover, portanto além de toda azul e verde vem também constipada, a minha filha, voz nasalada no dia seguinte, uma vontade de chás que não é costume. 

- Olá meu amor, como estás? 
- ‘Tou bem, mãe.
- Bem?! Com essa voz?! 
- Sim, ‘tou bem de disposição, quero dizer.
- Ah... E do resto? Não estás melhor? Tens febre? 
- (suspiro) ...isto tem várias etapas, mãe, eu já reparei. Primeiro é a etapa de fungar e febre e coisas assim...
- Coisas assim?!...
- Espera, deixa-me concluir... a segunda etapa é a de espirrar espirrar espirrar e ‘tar a chorar, muito ranho...

(nesta altura já estou a tomar nota das etapas, está este post a vir ao mundo)

- Sim... – não sei se é de mim se é delas, mas as minhas filhas, entre outras coisas, divertem-me muito – e depois? 
- ... depois começam os vestígios de tosse...
- Vestígios?! Ou sinais?
- ... isso, sinais, sinais. Finalmente chegamos à etapa em que estou que se chama non-stop, ou seja, não paro de tossir, espirrar e chorar. É a terceira etapa, mãe.

Como parece, para já, não haver mais etapas, dirijo-me ao fim do telefonema (recordemo-nos das teclas do computador à espera). 

- Não te esqueças de comer sopa ao almoço, precisas das vitaminas, filha. 
- Mãe... não te preocupes.... ah! mãe! já vou na página 124!

Desligámos. Esta página 124 pertence ao terceiro e espero que último livro das sombras de Grey. 

Que é bem capaz de pertencer a esta etapa, a etapa non-stop. Não, claro que não me preocupo.

14/09/2015

E se amássemos (mais) alguém?

Há alguns nascidos de situações capazes de me tatuar a alma, a bem ou a mal.

Há outros que nascem nas cubas rectangulares que mantêm quentes os almoços lá na cantina, antes de a dona Esmeralda os dispor nos pratos. Nunca faltam, os almoços.

Há ainda aqueles que posso confeccionar na minha cozinha ou trazer do supermercado, normalmente aromatizados ou então coloridos.

Há também os que me servem de mergulho vingado da ciência que não me quis, amor não correspondido que me dói muitas vezes mas me mantém os neurónios em deslumbre permanente, tanta é a beleza.

E depois há os das sementes colhidas nas pessoas. Nas pessoas que amo ou – já tem acontecido – nas pessoas que se não amo talvez para lá caminhe, afinal quantos tipos de amor somos capazes de sentir?, sementes que se colhem muito facilmente por exemplo no olhar sério do meu sobrinho mais pequeno que continua a querer apanhar a lua com munta fôxa ou num dos bloggers que me inspiram.

Para hoje havia um novo, um post novo. Era um recém nascido. Ainda não sabia andar sozinho e chorava muito. Tentei dar-lhe colo, a minha voz, palavras organizadas, coerentes, assentes em raízes firmes, tentei dar-lhe forma e estrutura, fazê-lo crescer e fortalecer-se para que ele – o post novo - se desse ao mundo, vivo e são. Viesse aqui dizer o que esta minha alma traz de novo, uma indignação que também é tristeza, e que tem sido alimentada todos os dias ao ouvir pessoas, algumas à minha frente, pessoas que comem todos os dias e dormem em casa delas e têm filhos saudáveis, pessoas que vão ao supermercado e podem cozinhar e que têm um carro, ou dois, ao ouvir pessoas que, enquanto mastigam o almoço, dizem que têm problemas que cheguem, não é, temos problemas que cheguem e que por isso refugiados não, pessoas que não sabem o que é a guerra. Tal como eu não sei.

Por isso o meu post novo, recém nascido, não sobreviveu, não o pude conceber, enterrei-o nesta indignação que também é tristeza. Mas procurei e encontrei outro que faço meu, com ele cubro o meu silêncio.

É este e é de alguém com uma voz capaz. Obrigada, Helena.

Termina com uma outra voz, a de Mia Couto, assim: “Só há um modo de escapar de um lugar: é sairmos de nós. Só há um modo de sairmos de nós: é amarmos alguém”

12/09/2015

Verde escuro brilhante, aromatizado, não metalizado

Do dia sobramos eu e o aroma do creme de espinafres a que se pode também chamar sopa por toda a casa. Não gosto de muitas vírgulas nem de maiúsculas inúteis ou ainda de numerais que não por extenso, dado que sujam o texto. Até mesmo no norte do país, por exemplo, na estação de são bento, onde as maiúsculas perdem o comboio, acredito que se possa chamar sopa a um creme aveludado, verde escuro brilhante, aromatizado, não metalizado, de espinafres. Ao domingo, quando estou em casa e já despachei a roupa dobrada em postas para dentro de gavetas famintas ou mesmo prateleiras, cozo bolos no forno. O aroma que se solta do produto crescente ao calor de graus celsius aglomerados na ordem da centena quase duas, é capaz de catapultar pessoas como eu para lembranças felizes, souvenirs de infância (já itálicos ficam muito bem, conferem glamour ao texto). Quer dizer, eu corro por cheiros, aromas, ondulações finíssimas de fazer fechar os olhos devagar. No supermercado não muito, para não dar com o carrinho nas curvas em escaparates de latas de atum em saldo, sardinha é que agora não, ou baldes de detergente em pó para a máquina mas sou pessoa para tirar um pimento verde da zona dos pimentos verdes só para o cheirar até lhe extrair a última centelha de alma, isto já em casa.

Se organizarmos agora o texto para irmos daqui em paz, temos o bolo a cozer no forno, a sopa acabada de fazer, o pimento verde e fresco metido no nariz (praticamente) ou – esquecia-me, bato com a mão na testa – o café ao sábado de manhã com o sol esparramado no chão da cozinha e temos leitores generosos que aturam os textos lisos sem adereços obrigatórios do bom português e que até talvez tenham reparado que o atum nunca está em saldo.

Se no futuro me calhar a gestão de um pequeno supermercado, adopto os costumes do catálogo do ikea, que é uma revista surpreendente se for lida, e explico tudo com uma arte criativo-impactante, por exemplo porque se expõe as embalagens de natas junto aos morangos em junho ou os preservativos perto do champanhe no fim do ano e, claro, esclarecerei porque está o atum não em saldo mas em promoção.


(não dei conta consciente, mas sou bem capaz de me ter inspirado aqui para produzir este post)

10/09/2015

O claustro (parece coisa policial mas não)

O colégio existia há mais de cem anos no que tinha sido um convento desde há mais de quatrocentos. Eu existia há nove. Fazia-o em todo o meu esplendor, que era parco, verde e limitado. Não apenas pelos desígnios da idade, mas principalmente por acção de uma persistente e espessa camada de timidez. No que podia, a minha voz mantinha-se ausente. Atarefava-me, no entanto, a cumprir os deveres que me cabiam e não era meu costume estar desatenta ou esquecer-me do que me diziam.

Mas era a pior aluna da turma a ginástica. Quando vestia os calções horríveis e o resto do equipamento para as aulas no ginásio do colégio, reparava na minha pele dos braços e das pernas a fazer manchinhas por causa do medo. Eu tinha medo das aulas de ginástica. Principalmente depois de a professora ter mandado as outras raparigas da turma correr à minha volta e cantar, apontando para mim, sentada no chão, ao centro, a olhar as manchinhas da minha pele e a ouvir, bem entoada, a expressão que terá possivelmente pressagiado a minha elevada apetência para a maternidade: “pata-chocaaaaa, pata-chocaaaaa”. 

Adorei, portanto, crescer (mas isso foi depois). O colégio tinha um só ginásio para dar resposta aos horários de todas as turmas, ocupação que, mesmo optimizada, depressa se revelou demasiado ambiciosa para o local da minha angústia maior. Ora na parte mais antiga do colégio, que eu mal conhecia, havia um claustro. E em redor deste claustro portas envidraçadas na maioria dos casos com cortinas brancas que escondiam salas misteriosas, de maneira que, com a situação do ginásio para se resolver, uma destas salas teve de levantar o véu e abrir portas mostrando como era capaz de fazer de ginásio e acolher os horários sobrepostos.

- Meninas, em fila, mão no ombro da colega da frente, hoje vamos para o claustro. – disse, um dia, a professora de ginástica quando o horário da minha turma se sobrepôs a outro.

Hoje vamos para o claustro. Foi a primeira vez que ouvi a palavra claustro e que, ao chegar ao local, deduzi imediatamente tratar-se do nome do novo ginásio, vestido com cortinas brancas nas portas, agora abertas, olá claustro, e o claustro cheirava a velho.

No final desse dia, a minha mãe perguntou-me como tinha sido a aula de ginástica. Ela sabia que eu e a ginástica... enfim.

- Normal, mas fizemos ginástica no claustro. - tenho a certeza de que gostei de usar a palavra nova.

- No claustro??!! 

- Sim, no claustro. O ginásio estava ocupado. - pensei que talvez a minha mãe não conhecesse o claustro muito bem, mas ela parecia conhecê-lo perfeitamente.

A minha mãe não gostava que eu fizesse ginástica no claustro, explicou-me, porque no claustro está muito frio, e eu já tinha apresentado três pneumonias em casa (bronco-pneumonias, dissera o médico). Eu não o achava assim tão frio, mas as mães estão sempre preocupadas com os frios e a minha não era excepção. Foi, portanto, a minha preocupada mãe fazer queixa da professora de ginástica à direcção do colégio: que não se admite pôr os miúdos no claustro, é um frio, no inverno, as pneumonias da miúda, etc.

Na aula de ginástica seguinte, a professora chamou-me à parte e, com cara de zangada (que não era muito diferente da sua cara normal), perguntou-me 

- Ouve lá, ó menina, então tu foste dizer à tua mãe que nós fazemos ginástica no claustro????

- Sim. - um sim muito fininho.

- E posso saber porque disseste à tua mãe que fazemos ginástica no claustro???

Lembro-me de olhar para o chão e tentar recordar-me, com urgência aflitiva, de alguma advertência sobre não dizer nada aos pais que às vezes fazemos ginástica no claustro.

- Porque eu não sabia que não podia dizer, professora... desculpe.

Mas nem mesmo depois, quando tudo se esclareceu, consegui gostar um bocadinho daquela professora. Nem dela nem de ginástica.

E falta dizer que este belo post podia ser ilustrado com esta ainda mais bela imagem.

08/09/2015

Agarradinhos a namorar

Foi ao abrir a porta do frigorífico à hora do jantar que a taça de mousse de chocolate que lá está dentro, me encontrou. Devo parecer-lhe apetitosa, visto que me saltou para os braços e eu, para que não se partisse em cacos, a taça, ainda que cacos achocolatados dispostos espontaneamente no mármore do chão, abracei-a sem hesitações de maior. A gaveta de cima entra agora, ainda este abraço está a aquecer, deslizando para a posição de aberta para deixar ver uma colher de sopa vir aconchegar-se-me na mão direita e depois, daí a nadinha, estavam duas – colheres de sopa – de mousse de chocolate dentro da minha barriga, isto parece que vai depressa porque saltámos o episódio da utilização da taça mais pequena e de colher mais pequena, cena a rigor que aqui em casa não se come à homem das cavernas mesmo que seja mousse de chocolate, e isto foi tudo a acontecer precisamente antes de ideias úteis para o lar me visitarem os neurónios mais rápidos, ideias como abrir a porta do frigorífico revestida de uma máscara ou disfarce bem feito para não ser encontrada pelo pecado (mousse de chocolate e pecado vivem no mesmo jardim, um é o caule a outra a pétala a esvoaçar na brisa da manhã ao som do cantar de um pássaro pequenino e com isto se podia fazer uma poesia muito bonita, não fosse eu ter uma data de trabalho para acabar esta noite).


(a taça de mousse de chocolate infiltrou-se-me em casa enquanto estive fora, ora isto, ainda que muito depois do Big Bang, somado a ter filhas experimentalistas de doçaria, produz átomos deliciosos muito agarradinhos a namorar em moléculas castanhas, a culpa não é minha)

03/09/2015

Fogo que arde sem se ver

Que me lembre, em dois anos e meio de blogue que levo na mala, só uma vez me aventurei para fora da muito minha zona de conforto e dei conselhos dirigidos a mulheres, penso que sobre beleza e roupa interior. E agora devia, como mandam as regras, pôr aqui o link para esse post, que me lembro bem de ter a fotografia de um céu de julho e três chapéus de sol debaixo dos quais eu estava embora dois não fossem meus, mas aquilo era uma praia à pinha, o mar subiu subiu e ficou uma linguita de areia com largura igual ao comprimento das minhas pernas (o exagero entra aqui como figura de estilo, tal qual o Camões disse que o amor é fogo que arde sem se ver e isso é uma figura de estilo, de um grande estilo, está certo, mas uma figura de estilo muito como a minha, não é), bem, procurei procurei e consegui, até, com tanto clique de busca duplicar o número de visitas de hoje neste blogue onde enfim (pronto, já passou). Mas a verdade é que não encontro o post, perdi o post. Ter-se-á transferido para um blogue de conselhos de moda onde se enquadrará melhor no seio dos seus pares? 

É que eu venho escrever pela segunda vez uma coisa fora das minhas especialidades, e agora vejo que vou pôr outro filho único no mundo, mas pelo sim pelo não, para evitar que este também desande para outro lado, só um momento: há blogues, querido post-filho, onde os posts têm um ciclo curtíssimo de larva-borboleta, estão ali a estrebuchar um diazito, dois no máximo, e depois zás!, levantam voo - conseguem, mesmo que pejados de comentários, conseguem - e vem logo outro ocupar o casulo único, uma crise muito grande; felizmente não parece ser contagioso, querido post-filho, nada temas.

Vamos lá então que este já é o terceiro parágrafo e até agora ainda só encanámos a perna à rã. Ora eu, para além de não pintar as unhas das mãos, detestar inutilidades imbecis como autocolantes na fruta e ainda não ter perfil no facebook, também posso perfeitamente andar meses sem combinar os sapatos com a mala. E isto, parecendo que não, fica muito bem. A situação é tão somente baseada na verdade de não ser possível encontrar sapatos a combinar com as beldades de malas que uso (e que não uso mas adoraria). São de tal maneira lindas, que podem até promover diálogos (daí não precisar do facebook) e despontar admiração em outros corações (citar Camões também era escusado): quando vou às lojas, por exemplo, à livraria aqui do bairro, ponho a mala em cima do balcão para tirar a carteira e proceder ao pagamento, e não são poucas as vezes em que oiço que mala linda tem aí! Depois a conversa continua mas nem por sombras a senhora da livraria se mostra interessada nos meus sapatos, não espeta a cabeça para fora do balcão para os ver nem nada disso. Ou, de manhã, ao entrar no edifício onde trabalho, oiço alguém dizer essa mala parece que dá uma alegria! (não é figura de estilo, é verdade). Sapatos nada. Mas a mala, uma alegria. Duas. Mais, como já se viu. 


Fotografia de uma das minhas malas, surripiada da internet (a fotografia).

(prometo que o próximo post será melhor, tenho andado um bocado em baixo por não ter verba para atacar a nova colecção)