Estaria a tarde de setembro adiantado calma, morna e com possibilidades de se ouvirem as
moscas, caso as houvesse, não fosse a algazarra que vem aos altos e baixos, mais dos primeiros que dos segundos, dos lados da
cantina.
O senhor, vamos
supor que se chama Ramos, trabalha na portaria da empresa e regressou de férias neste muito dia, para quem tem a pachorra de me ler há tempos, sabe que "muito dia" vem directamente traduzido do inglês, há expressões que se me colam
aos dedos e não saem nem com pasta de dentes, mas dizia eu que o senhor Ramos
regressou de férias e trazia muita saudade da dona Esmeralda que anda nas
lides das limpezas da cantina e sei lá mais o que faz ela ali enquanto
canta, mas hoje não canta, o dueto que ouvimos é outra coisa.
Uma vez que sou
sensível a barulhos, não lhes gosto dos comprimentos de onda, estou aqui estou a levantar-me e a ir lá das duas uma, ou para me divertir, ou
para lhes perguntar se ouvem mal com cara feia, eu, mas ainda não me decidi.
Devido à inercia que me manteve a terminar uma coisa que estava a
fazer muito bem feitinha, levantei-me só alguns minutos passados, pus-me ao
caminho que não é longo, mas quando lá chego já só a encontro a ela a esfregar
a vitrina da montra das sobremesas e das saladas, com muito vigor aplicado ao
pano amarelo.
- Vim tarde
para a festa, já percebi. – isto digo eu.
- Qual festa,
menina? ... Aquela conversa? Ouviu?!
- Ouvi a
barulheira. O senhor Ramos vinha com saudades suas, não vinha?
- Ele?! –
olha-me por cima dos óculos com o pano a descansar-lhe na mão, por um momento,
a avaliar se me conta se não conta.
- Diga lá, ele
vinha.
- Olhe, vinha,
pronto. Disse-me que pensou em mim nas férias, acha normal?! – e retoma a
esfrega do vidro que deve ser o vidro mais lavado de toda a região de Lisboa e Vale do Tejo.
- E a dona
Esmeralda? Não pensou nele?
- Aixa?!?!?!? - o olhar reprovador que me oferece por cima dos óculos é dos que eu gosto, mas crendo que me
estiquei um pouco para além das minhas funções, arrepiei caminho.
- Dona
Esmeralda, até eu pensei nele de cada vez que vi o outro, o substituto, qual é
o problema?
Ela sacode a cabeça com firmeza, muda de vidro e atira-me com o que lhe vai
na mente.
- Sabe porque
é que ele falava alto? Eu digo-lhe. Ele vinha com aquelas conversas das coisas
sem sal e sem glúten, sabe como ele é com a mania das alergias, e eu disse-lhe, sabe? Eu disse-lhe – a esfrega continua
com o mesmo vigor, que é muito – disse-lhe que o que ele devia era ser menos alérgico
àquelas coisas e mais alérgico ao alho e à cebola crus, que ele come muito. –
pausa para me fitar avaliando o impacto da ideia que acabou
de revelar.
- A minha
filha mais velha – a dona Esmeralda tem duas filhas – que trabalha
muito com médicos, ela sabe, ah pois sabe, e diz que o alho e a cebola crus
fazem muito mal. Devem ser cozinhados, está a ver? Assim num refogado bem
puxadito, está a ver? – o refogado bem puxadito acompanha com uns gestos
dificílimos de descrever realizados com a mão livre e que
dão a ideia de estar a apalpar balões no ar - mas
ele não gostou que eu lhe dissesse aquilo, o que é que lhe hei-de fazer? Ele é
assim, tem lá aquela mentalidade dele... - conclui com um encolher de ombros.
Eu não a interrompo.
- Sabe que ele pensava que os rapazes que vê na televisão sem pêlos nenhuns, todos lisinhos, está a compreender? Pensava que já tinham nascido assim, os rapazes? – o pano amarelo está agora mais dobrado a limpar as calhas onde correm as portas de vidro da vitrina.
Eu não a interrompo.
- Sabe que ele pensava que os rapazes que vê na televisão sem pêlos nenhuns, todos lisinhos, está a compreender? Pensava que já tinham nascido assim, os rapazes? – o pano amarelo está agora mais dobrado a limpar as calhas onde correm as portas de vidro da vitrina.
- Dona
Esmeralda, quais rapazes?
- Ó filha, esses
moços, esses do desporto, que aquilo é tudo lisinho, não é? Pois ele pensava
que tinham nascido assim, não sabe que os homens também fazem depilação. Definitiva!
O detalhe de ter a depilação masculina sido adjectivada como definitiva, conduziu a
conversa para desenvolvimentos não autorizados para publicação.
No fim, com uma vitrina a brilhar por testemunha, a dona Esmeralda remata com um deus me livre, filha, deus me livre!
De volta ao meu trabalho, não sei se o deus me livre se deve aos hábitos de consumo de alho e cebola crus, se à mentalidade dele ou se a ambos. Só sei que a solidão do senhor Ramos me entristece.
No fim, com uma vitrina a brilhar por testemunha, a dona Esmeralda remata com um deus me livre, filha, deus me livre!
De volta ao meu trabalho, não sei se o deus me livre se deve aos hábitos de consumo de alho e cebola crus, se à mentalidade dele ou se a ambos. Só sei que a solidão do senhor Ramos me entristece.
Poderá ser também da depilação definitiva... :))
ResponderEliminarEssa é a parte da conversa que não posso revelar, Luisa. Mas sim, é uma hipótese a considerar. :-)
EliminarO senhor Ramos, deve pensar que, homem que é homem, se não tem pêlos é porque nasceu sem eles, não lhe deve passar pela cabeça que, homem que é homem, se depile, ainda por cima, definitivamente...
ResponderEliminarSusana, este post está a fazer-me rir e isso até pode fazer de mim uma criatura desalmada, sem o mínimo de solidariedade para com a "solidão" do senhor Ramos, mas, repara, a dona Esmeralda iria querer cozinhar, o alho e a cebola que o homem tanto gosta de comer crus, "Assim num refogado bem puxadito..." estás a ver, não estás?...talvez Deus esteja também a livrar de boa, o senhor Ramos, por incompatibilidade e evite mais duas pessoas que passam a estar acompanhadas mas sem fazerem verdadeira companhia uma à outra, aquilo de que tão bem falou o Nietzsche...
Beijinhos Susana, e um resto de domingo em bom.
Faz rir, pois faz, Cláudia, as teorias deles, quando confrontadas e defendidas pelos próprios em duelo verbal, sempre educado, têm muita graça.
EliminarHá hordas de gente que, estando acompanhada, está só. Mas não tenho a certeza se seria o caso destes dois. :-)
Beijinhos, Cláudia, e boa semana.
Eu acho é que i Sr. fica com mau hálito de comer alho e cebola. Por isso é que a D. Esmeralda lhos quer cozinhar! :)
ResponderEliminarE olha que ela parece pronta a mandar o homem à Esteticista! Lisinho é que ela o quer! ;)
Beijocas, Susaninha, e boa semana. :)
E achas bem, Maria. Alho e cebolas crus notam-se bem até uma distância considerável. :-)
EliminarBeijos e boa semana para ti também.
Apesar de falares mais vezes na dona Esmeralda, já tinhas referido por aqui o senhor da portaria num texto em que se pressentia teres um carinho especial por ele.
ResponderEliminarPois, não me parece que a senhora tenha razão quanto ao alho e à cebola. Mas folgo em saber que está muito inteirada sobre o método de depilação dos rapazes. Mas a maioria deles faz definitiva, é? Não sei nada dessas coisas...
A solidão de alguém é sempre comovente, Susana.
Beijo e boa semana.
Isso é que é boa memória, Isabel! Que me lembre já tinha referido o senhor Ramos - ainda sem nome atribuído - duas vezes, mas foi há muito tempo.
EliminarEu tenho carinho especial por quem é só e mesmo assim se interessa pelos outros e pelos mistérios da vida (ele é um filósofo).
Nem eu sei dessas coisas Isabel... mas se não me ponho a pau, aprendo :-)
Beijo e boa semana para ti também.
Não pude deixar de visualizar a D. Esmeralda a apalpar balões no ar e imaginar todas as expressões que acompanharam o diálogo. Já construí uma D. esmeralda, não faço é ideia nenhuma se corresponde à verdadeira. Mas também não é preciso, não gostaria de me dececionar. Gosto desta que me transmites através dos teus textos.
ResponderEliminarBeijinhos e votos de uma boa semana, Susana.
Maria, aposto que a "tua" dona Esmeralda é a verdadeira. :-) E aposto que a imaginas na perfeição.
EliminarBeijinhos e uma óptima semana para ti também.
Desconfio que a solidão do senhor Ramos continuará durante muito tempo, caso ele continue a ingerir alho e cebolas crus. Deus valha a quem lhe esteja por perto! :)
ResponderEliminarBeijinhos
O pior é que ele não tem ninguém por perto, que eu saiba.
EliminarTeté, que bom ver-te aqui! Bem-vinda! Foi divertido brincar aos fotógrafos lá no teu blogue. E que bem orquestraste toda aquela gente a fazer apostas "na água". :-)
Beijinhos de volta.