a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

10/09/2015

O claustro (parece coisa policial mas não)

O colégio existia há mais de cem anos no que tinha sido um convento desde há mais de quatrocentos. Eu existia há nove. Fazia-o em todo o meu esplendor, que era parco, verde e limitado. Não apenas pelos desígnios da idade, mas principalmente por acção de uma persistente e espessa camada de timidez. No que podia, a minha voz mantinha-se ausente. Atarefava-me, no entanto, a cumprir os deveres que me cabiam e não era meu costume estar desatenta ou esquecer-me do que me diziam.

Mas era a pior aluna da turma a ginástica. Quando vestia os calções horríveis e o resto do equipamento para as aulas no ginásio do colégio, reparava na minha pele dos braços e das pernas a fazer manchinhas por causa do medo. Eu tinha medo das aulas de ginástica. Principalmente depois de a professora ter mandado as outras raparigas da turma correr à minha volta e cantar, apontando para mim, sentada no chão, ao centro, a olhar as manchinhas da minha pele e a ouvir, bem entoada, a expressão que terá possivelmente pressagiado a minha elevada apetência para a maternidade: “pata-chocaaaaa, pata-chocaaaaa”. 

Adorei, portanto, crescer (mas isso foi depois). O colégio tinha um só ginásio para dar resposta aos horários de todas as turmas, ocupação que, mesmo optimizada, depressa se revelou demasiado ambiciosa para o local da minha angústia maior. Ora na parte mais antiga do colégio, que eu mal conhecia, havia um claustro. E em redor deste claustro portas envidraçadas na maioria dos casos com cortinas brancas que escondiam salas misteriosas, de maneira que, com a situação do ginásio para se resolver, uma destas salas teve de levantar o véu e abrir portas mostrando como era capaz de fazer de ginásio e acolher os horários sobrepostos.

- Meninas, em fila, mão no ombro da colega da frente, hoje vamos para o claustro. – disse, um dia, a professora de ginástica quando o horário da minha turma se sobrepôs a outro.

Hoje vamos para o claustro. Foi a primeira vez que ouvi a palavra claustro e que, ao chegar ao local, deduzi imediatamente tratar-se do nome do novo ginásio, vestido com cortinas brancas nas portas, agora abertas, olá claustro, e o claustro cheirava a velho.

No final desse dia, a minha mãe perguntou-me como tinha sido a aula de ginástica. Ela sabia que eu e a ginástica... enfim.

- Normal, mas fizemos ginástica no claustro. - tenho a certeza de que gostei de usar a palavra nova.

- No claustro??!! 

- Sim, no claustro. O ginásio estava ocupado. - pensei que talvez a minha mãe não conhecesse o claustro muito bem, mas ela parecia conhecê-lo perfeitamente.

A minha mãe não gostava que eu fizesse ginástica no claustro, explicou-me, porque no claustro está muito frio, e eu já tinha apresentado três pneumonias em casa (bronco-pneumonias, dissera o médico). Eu não o achava assim tão frio, mas as mães estão sempre preocupadas com os frios e a minha não era excepção. Foi, portanto, a minha preocupada mãe fazer queixa da professora de ginástica à direcção do colégio: que não se admite pôr os miúdos no claustro, é um frio, no inverno, as pneumonias da miúda, etc.

Na aula de ginástica seguinte, a professora chamou-me à parte e, com cara de zangada (que não era muito diferente da sua cara normal), perguntou-me 

- Ouve lá, ó menina, então tu foste dizer à tua mãe que nós fazemos ginástica no claustro????

- Sim. - um sim muito fininho.

- E posso saber porque disseste à tua mãe que fazemos ginástica no claustro???

Lembro-me de olhar para o chão e tentar recordar-me, com urgência aflitiva, de alguma advertência sobre não dizer nada aos pais que às vezes fazemos ginástica no claustro.

- Porque eu não sabia que não podia dizer, professora... desculpe.

Mas nem mesmo depois, quando tudo se esclareceu, consegui gostar um bocadinho daquela professora. Nem dela nem de ginástica.

E falta dizer que este belo post podia ser ilustrado com esta ainda mais bela imagem.