a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

28/09/2014

Lugares ocupados

Quando estacionei para ir comprar a estante, os lugares destinados a veículos de tecnologia híbrida, caso do meu, estavam ocupados por carros nada híbridos e por acaso relativamente feios. Contei isto ao segurança e perguntei-lhe se achava interessante, por exemplo, furarmos em conjunto dois ou três pneus a cada um, ele riu-se, não me levou a sério, mas ainda o ouvi, dois bastam. Não sabe que me acontece muito ter o meu lugar ocupado.

Não peguei no relatório que quero acabar no fim de semana, não montei a estante nova, não fui ao supermercado, não gosto mesmo nada de ir ao supermercado, e então tirei as postas de salmão do congelador e fui ver o filme do António Pedro Vasconcelos com a maravilhosa Maria do Céu Guerra.

O lugar indicado no bilhete que acabo de comprar, está ocupado. Não posso ver se é alguém feio, a escuridão já se instalou. Fiquei noutro, para não incomodar.

Mesmo fora do sítio, quando me sento numa sala de cinema desligo-me, deixo de existir para melhor observar o que se passa lá na frente e depois, no fim, quando me reencontrar comigo e voltar a lembrar-me das postas de salmão e do relatório, posso muito bem já ser outra pessoa. Um filme é capaz de nos mudar o curso da vida, um livro também é ou mesmo um momento (quem viu este filme sabe que é verdade).

Portanto isto faz-se devagar. O filme termina e, antes de me retomar, de voltar à consciência do ser, de ligar os instrumentos de navegação, fico sentada a ver passar a lista dos nomes das pessoas que fizeram o que fizeram. Claro que a pressão de quem me rodeia faz-se sentir, anda lá, anda, levanta-te, já acabou, mas eu fico. Quero reconhecer o corpo, os seus feitores, dissecar-lhe agora as vísceras para lhe beber o suco final, colar-me toda ali até à última letra e já agora para dizer tudo, que às vezes digo mesmo tudo, acho desrespeitoso não o fazer e virar as costas enquanto ainda a Ana Moura cantava para ajudar os nomes a subir, sabemos que para baixo todos os santos ajudam, mas estes é sempre a subir, e que bem cantava a Ana Moura, só que isto de ficar assim, ali, sou eu que sou esquisita, vê-se isso neste parágrafo, que ficou bom para cobertor de grande que está.

Depois, quando me levantei, percebi. Já não era eu.

Talvez esta outra em que me tornei saiba ser a primeira a chegar aos lugares, aos seus lugares.

O salmão, pelo menos, foi muito apreciado. Já o relatório, ainda vai a meio.

25/09/2014

Nunca mais ter amor

O telefone não tocou todo aquele dia nem toda aquela noite.

Na manhã seguinte a empregada entrou com a chave, como de costume, e encontrou-a estendida no chão, um braço esticado num vão de horas para alcançar um interruptor, ou a vida que lhe fugia.

Numa poça de urina e solidão, metade do corpo ainda respirava e talvez tentasse acordar a outra metade, estática, tesa, morta.

Foi levada ao hospital. Tratamentos, drogas, repouso, mais solidão. A metade do corpo que não deixou de respirar emprestou um pedaço de vida à outra metade e ela voltou para casa. Em cadeira de rodas, que as pernas deixaram de responder ao cérebro e os olhos recusavam-se a ver mais que sombras.

Alguns anos depois mudei de casa e passei a ser sua vizinha. Um dia encontrei-a na escada, à entrada do elevador, a cadeira de rodas a ser manobrada pela pessoa que a acompanha.

- É a nova vizinha?

- Sou, sim, muito prazer em conhecê-la.

- Eu não vejo nada, querida, este amigo ajuda-me a recuperar, é um amigo, fiquei nesta cadeira depois do acidente, há dois anos. Chamo-me Idalina, mas tratam-me por Lina, já sabe. Para quando precisar de alguma coisa.

O meu coração saltou. A voz que saiu deste quadro encimado por uma cabeça descoberta, a pele rosa por baixo do cabelo quase inexistente, branco nos restos, a voz era doce e tratou-me por querida sem me ver, eu precisar de alguma coisa?! Agradeci-lhe sorrindo para que ela me visse o sorriso na voz, ofereci-lhe em retorno, de pronto, a minha ajuda.

- Para o que precisar.

Passaram-se, entretanto, quase dez anos. Ela nunca me bateu à porta. A cadeira de rodas deu lugar a uma bengala e até sei que vai sozinha ao supermercado, que fica perto; recuperou boa parte da visão.

À porta dela eu também não bati. Nem eu nem ninguém, que eu visse. Passaram-se natais e páscoas e verões e trovoadas e calor de quarenta graus e eleições e ambulâncias na rua e porcos no espeto e gente a chegar e gente a morrer e o prédio foi pintado e a garagem foi remodelada e o pátio teve obras e ninguém lhe bateu à porta. Que eu visse. Para além do amigo dos cuidados de recuperação, que entra com chave e que nunca largou a sua bem sucedida tarefa.

Um dia, por acaso, vim a saber.

- Ela era muito má, Susana. Tratava mal o marido. Ele morreu, não me admira, coitado. Os filhos nunca vêm, eu acho que toda a gente a odeia.

 A Maria José, que vive cá há muito mais tempo, sabe a história. E continua.

- Teve aquele acidente e se não fosse a senhora que lhe vinha limpar a casa, morria ali sozinha. Ela era mesmo má, e agora nunca ninguém a visita. Havia de a ter conhecido antes.

- Se calhar o acidente modificou-a - atrevi-me eu, lembrando-me da doçura da sua voz.

- Não sei, eu nunca a vejo. Mas não acredito nisso.


Lembrei-me de contar isto depois de ter lido duas vezes esta história aqui, que me comoveu. As pessoas que não amaram podem nunca mais ter amor.

E se amaram?

22/09/2014

Sapatos, hoje é sapatos

- Aqueles óculos são seus?

Na semi-obscuridade da cabine, decide o meu vizinho do outro lado da coxia perguntar-me uma coisa destas, com certeza não se lembrou de mais nada.

Acordou-me do torpor em que eu me tinha metido, devido a dores que transporto, um torpor conquistado lá muito em cima, a onze mil metros ou então a uma pressão um tanto mais fraca, que não sei quanto é, uma destas circunstâncias ou as duas é que me ajudaram a entorpecer, foi uma sorte.

- Óculos?...

- Sim, óculos, aí, debaixo do seu banco.

Mas eu ando há imenso tempo a ver se me ajeito a escrever acerca de sapatos e não de óculos, desculpem lá. Portanto vamos a isto que o vizinho espera um bocado.

Para que este seja um alinhavo ensaísta não muito desastroso, precisei de me munir de certa coragem, que o tema sapatos costuma andar, andar é propositado, está-se mesmo a ver, fora da zona onde me encontro confortável. Fazer o pino no meio de uma trovoada como a de hoje, com água a correr até aos cotovelos, e de vez em quando a saltar para os olhos, toda suja a água, será, em meu entender, suficientemente desconfortável para servir de ilustração caricatural.

Ora eu entendo ser total, completa e extraordinariamente injusta a situação difícil em que uma mulher, qualquer mulher em idade adulta ou para lá a caminhar, atenção caminhar aqui também, em que uma mulher, dizia, se encontra quando tem de escolher: ou se calça elegante, ou se calça confortável. E notemos bem, é voltar atrás caso haja necessidade, notemos bem que os "ou" ninguém dali os tira, são mesmo dois porque mutuamente exclusivas são as escolhas.

Vamos lá então. Em necessitando de elegância para uma situação exigente, por exemplo imaginemos lá se faz favor uma conferência de imprensa com o ministro da ciência e da tecnologia depois de se ter ganho um contrato com muitos zeros à direita, tantos que já me esqueci quantos, divide-se a concentração de uma mulher entre os elevados requisitos da circunstância e o não torcer os pés ao caminhar, cuidado com as escadas, muito menos tropeçar e cair, ou, como já aconteceu, partir-se um belíssimo salto alto ao meio, na vertical, coisa rara mas possível. Mais valia ter levado as botas de montanha, apetece dizer, ó senhor ministro tenha lá paciência, que os seus sapatos são de certeza confortáveis e elegantes discutiremos eventualmente, não aqui.

E se não fosse ter de desfazer este pino, que as águas subiram e eu, mesmo em ilustração caricatural de desconforto exponencial, estou a perder o equilíbrio, contava de um passeio ao longo do rio, um passeio assim comprido, que os rios têm a mania de ser compridos, mas isso terá de ficar para outro dia, quando não trovejar desta maneira. Cá para mim os céus estão nervosos e pode até ser por causa da injustiça que aqui trouxe hoje.

- Não são meus, não - já com os óculos na mão, viro-me então para o passageiro com cara de chinês sentado ao meu lado. Os óculos são seus?

Ele riu-se muito e acenou imensas vezes com a cabeça.

(estou a ouvir o Leonard Cohen cantar "Suzanne" non-stop e isto já está a fazer-me mal, mas antes de me retirar, quero agradecer à Pipoca Arrumadinha pela entrevista que me fez, um modelo já blogomundialmente conhecido, tal como a sua generosidade o é. Pode ler-se aqui.)

17/09/2014

Sítios feios

Hoje fiz uma sopa gourmet para o jantar, mas foi sem querer. Até sou capaz de lhe ir ali tirar uma fotografia daqui a um bocadinho, uma beleza.

No entanto, primeiro é preciso isto, que está já a sair.

Estive muitos minutos em pé na fila da caixa do supermercado e comecei por me sentir impaciente. Depois fiquei quase sufocada, a transpirar, quando a moça que passava os produtos oitenta e três clientes à minha frente pega no telefone, ergue-se da cadeira, que eu bem vi daqui, e desata a querer encontrar alguém que a ajude sei lá a quê, se soubesse até podia dizer às pessoas, e foi quando me lembrei de repente do João Magueijo e agora vejo perfeitamente que ele tem razão.

Embora possa não parecer, este post está a involuir no tempo, estou agora sentada à mesa da cozinha, esta manhã, o sol entra-me pela janela em abundância e ilumina a entrevista que estou a ler enquanto como o pequeno-almoço, e que foi publicada na revista do jornal Expresso há imensas semanas, esta parte não favorece a reputação de ninguém, tenhamos paciência que podia ser pior.

Na entrevista, assinada por Clara Ferreira Alves e cedida pelo cosmólogo português já mencionado, pode ler-se, se se quiser, se vontade houver mesmo depois de tantas semanas a revista ali, que: "... as pessoas precisam de estar em sítios feios."

Sendo coisa de cosmólogo, suspeitei que ficávamos assim, ele dizendo isto (que para ser correcta foi transposto de um autor que admira) eu a ler e a levantar as sobrancelhas muito admirada.

O resto é capaz de ser fácil, para quem, valente, se aguentou até aqui nesta regressão do tempo-espaço-curvo - gostaste, João? - de concluir. Pelo sim pelo não, temos mais um parágrafo:

O sítio onde me descrevo acima, a transpirar, encaixada entre carros de compras entremeados por encontrões e pedidos de licença nos casos mais bem sucedidos, faltou lá esta parte, depois substituídos, mais à frente, a fila vai andando, por escaparates de revistas com novidades sobre as novelas e pastilhas elásticas de todos os sabores (ainda aguardo pelo sabor a cinza dos vulcões da Islândia), é feio.

Mas é que depois, sem querer, deu nisto (veja-se o encorpado, a textura, imagine-se o aroma):


(sim, claro que o prato é só em ocasiões especiais, foi escolhido agora para minimizar o efeito funesto do tardamento da leitura)

15/09/2014

Cambalhotas na panela

Juntei algumas notas que apanhei aqui e ali. Ia com elas compor uma estrofe ou duas, um entrançado de palavras que me agarrasse a alma enquanto fluía o mote, isto no caso de haver mote, naturalmente. Por acaso também gosto de escrever naturalmente.

Mas primeiro descasquei as batatas para o jantar. Tive de o fazer com cuidado para que elas, as palavras das notas que juntei, não se escoassem pelos meus dedos emprestados à cozinha, toros desajeitados neste laboratório de aromas que não poucas vezes mas rouba não sei para onde e depois não as encontro em lado nenhum. E perder as palavras é que não.

Portanto fui buscar um pedaço engelhado de gengibre que tinha sobrado dos chás primaveris, libertei-o da casca e juntei-o às batatas. Ora eu tenho um fraquinho pelo gengibre e por conseguinte ponho fé nisto.

Acendi o lume a ver no que dá.

A janela está aberta e tenho a certeza de que não choveu. No entanto, o rodar dos carros na rua soa-me à continuidade que lhe é conferida pelo piso molhado, aquele que depois de anoitecer reflecte a luz eléctrica instalada a passos iguais, rua fora, distorcendo-a. As aulas estão a começar e eu tenho é saudades.

Há dias provei chanfana e gostei muito mais do que esperava, afinal ainda não sobrei por completo às pessoas que comem bem e a minha filha disse-me, enquanto eu lavava a loiça, que gosta de mim.

Hoje abracei a minha irmã Ana e notei que não o fazia há muito tempo. Acho, até, que nunca o tinha feito. Gosto da maneira de ela ser mãe. Nunca se zanga e os meus sobrinhos são miúdos felizes.

Ontem estive a pensar em ti enquanto olhava para as estrelas. Depois passou um avião que as quis engolir. Rosnando como um cão raivoso cruzou algumas, mas eu fixei-me nos brilhos estáticos cujas cores me fogem e me tornam a agarrar. Não sei quanto tempo fiquei ali. Ficámos ali.

A água já levantou fervura. Baixei o lume. Diz-me o gengibre, às cambalhotas na panela, que isso, isto, não tinha, afinal, mote nenhum.

Mote nenhum? Pontos bordados que colhi dos dias, estas notas que juntei, flores silvestres que brotam da minha respiração, pedras que assentei no tempo para que a vida não corra tão depressa e eu a possa segurar com as duas mãos, fazê-la durar mais... mote nenhum?

11/09/2014

Chave na mão

Coisa? Qual coisa? Eu estou sempre bem, dizem-me.

- Estás sempre bem.

Venho então a casa à hora do almoço, já que é assim. Estaciono no pátio, meto a chave na porta do prédio que mais pesada não por favor, só com muito balanço é que vai, entro, depois seguro-a, ajudo-a a fechar-se, quase me leva atrás, clic em vez do estrondo que se consegue ouvir no décimo sétimo andar, o que se torna aborrecido à hora do almoço.

No átrio ladeado de quatro filas de caixas do correio que reflectem de forma igualmente brilhante a luz que inunda a entrada, as plantas viçosas são a prova disto, para quem não visualizar como deve visualizar, eu cruzo-me com a vizinha de quem mais gosto, mulher com muita classe, a elegância terá nascido com ela e ainda não a largou, a simpatia também, nem quando enviuvou há uns anos e andou meses tão triste. A Maria José já passou dos sessenta mas parece muito menos.

- Tenho uma coisa para lhe contar - e agarra-me no braço, olha-me fundo nos olhos, sorri.

- Então?! - eu já toda contente a ver que vem aí coisa boa.

- Estou apaixonada!

- Ahhh que bom!!!!!!!

Abracei-a, dei-lhe os parabéns, pedi os detalhes, e ele? também está?, ela deu-mos e, sim, ele também está.

- Já me fez ganhar o dia, Maria José! - declarei, satisfeita.

Depois subi as escadas, gosto muito de subir as escadas à hora do almoço, levando um sorriso qualquer dentro de mim, tenho a certeza, e a chave na mão. Estou sempre bem. Abri a porta.

- Mãe! O que foi?

- Cruzei-me com a Maria José, ela está feliz, filha.

- Ah que bom! Parecia que vinhas com alguma coisa, tens os olhos a brilhar tanto!

- Isso é porque eu estou sempre bem, querida.

09/09/2014

Emília

Estou na porta de embarque para regressar a Lisboa, estou muitas vezes em portas de embarque para regressar a Lisboa, mas desta tenho a mão enfiada dentro do saco, que já sabemos que não tem dívidas para com o tamanho, à procura de dois bocados do meu coração que me fugiram do peito não sei se foi no controlo por raios X se no porto de Roterdão, a minha mão às voltas às voltas, ai que vos apanho ó bocados, o meu olhar preso no tecto isso é que não sei porquê, e é quando ela passa por mim.

Caminha devagar, o peso do seu corpo alterna o descanso entre um pé e o outro, demora-se nas transferências, carrega a vida toda, a dela e a de mais quem, arrasta uma cauda de fardos que vi.

A minha mão parou dentro do saco e eu então vi os muitos almoços cozinhados ao calor dilatante do fogão, as infindas horas em pé a engomar os panos dos seus amores pequeninos e os dos grandes, será que vejo dos grandes, o vergar deste corpo tantas vezes repetido, mãos espalmadas no colchão para que o lençol fique bem esticado, é bem esticados que os lençóis são, mãos que terminam a reconstrução do quarto depois do sono que vai medrando os seus meninos, consolando os seus amores, esquecida de si própria, transporta latente a hesitação num caminhar mal ensaiado, aprendente, a hesitação que desencoraja quem sempre serviu de ser agora servida.

- Venha para aqui, mãe - a filha estende o braço oferecendo a ilusão de que a mãe precisa, já falta pouco.

Não tiro os olhos dela, ainda não vi tudo. Leio-lhe no cabelo estragado aos sábados em cabeleireiros baratos, que procurou as palavras que vinham sempre no final, um final tão igual.

- Que bonita está, dona Emília!

Será Emília, aqui para nós. E então brilhar-lhe-iam os olhos um bocadinho, um brilho comprado em pacotinhos nesses sábados antigos, já mortos, às raparigas que lhe penteavam histórias ao toucador.

Engoli qualquer coisa que tinha na garganta, a querer sair, e olhei para o avião, lá fora. O meu coração está inteiro, afinal.

E depois percebi que foi hoje que comecei a envelhecer.

06/09/2014

Ice Bucket Challenge

Pipoco Mais Salgado lançou-me o desafio que circula nas redes sociais, muito por todo o lado, denominado "Ice Bucket Challenge".

Não tendo eu aderido às redes sociais com a extensão com que muita gente o faz, nem tampouco sendo consumidora assídua de televisão, não conhecia o contexto em que nasceu esta corrente, cuja face mais visível é a imagem de baldes de água que se entornam pela cabeça abaixo das pessoas que aderem. Felizmente, afinal, é mais do que isso.

Não me sinto chocada com a alegria, ou o tom de brincadeira, de que se reveste esta iniciativa. Penso, até, que essa alegria servirá de alavanca para acordar atenções adormecidas, impulsionará o descruzar de braços, contagiará mãos que se deitam mais e mais a esta obra.

Não cumpri o desafio em 24 horas, como descobri que deve ser, nem despejei um balde de água fria por cima de mim.

Concluo, no entanto, que a parte verdadeiramente importante deste desafio, aquela que vai realmente chegar a quem ele se destina, é fortalecer a luta contra a Esclerose Lateral Amiotrófica. A melhor forma que encontrei de o fazer, por agora, foi contribuir com um donativo para a APELA.

É, ainda, minha tarefa desafiar alguém para continuar esta corrente. Vou fazê-lo a uma das bloggers que leio e que admiro, e que também, por ter um elevado número de seguidores, poderá estender o seu braço mais longe neste empreendimento. Desafio a M D Roque a participar no "Ice Bucket Challenge".

Por fim, quero ainda dizer ao Pipoco Mais Salgado que, depois disto, me sinto uma pessoa um bocadinho melhor. E por isso lhe agradeço.

04/09/2014

Olha a sorte

Acabo de ser informada pela companhia aérea em que viajarei amanhã, que o tamanho da mala que posso levar na mão encolheu. Ou então pago e vou com sorte.

Já lá fui meter então, na sub-mala que arranjei à pressa, a ver se dá, um par de meias e o livro para ler, um muito fininho, claro, e eu que tenho tendência para os livros mais grossos, mas foi um todo fininho, até digo qual foi, foi o Príncipezinho em francês, ando a treinar o francês, e quase não me cabia lá o cartão do cidadão. Sentando-me em cima da mala consegui fechá-la com muito esforço, porque ela até desapareceu debaixo de mim e eu não sou assim tão enorme, senhores, o cartão ficou, mesmo assim, com um cantinho de fora, mas acho que ninguém vai ver.

Deixem-se lá mas é de rodeios e digam logo que nos levam a ilustre bagagem para um destino paradisíaco, não é, a mala vai toda instalada num porão com ar condicionado, vamos admitir, e quem sabe até uma música ambiente lá passam, uma própria para malas, pulverizam o ar com aroma de café do Brasil, dizem que faz muito bem àqueles materiais, e para terminar vem um óleo de amêndoas do Algarve para uma derradeira massagem mesmo antes de aterrar, não vá o brilho perder-se com as bruscas diferenças de pressão sofridas no chassis da malinha. E se mandarmos uma toda fashion e de tamanho considerável a esse destino paradisíaco por quatrocentos euros, por exemplo, fazem-nos a promoção de arranjar um lugarzito para nós, olha a sorte, por mais dois euros e cinquenta cêntimos, promoção a não perder, é correr aos balcões, e vamos acompanhar a mala às suas férias, nada mau. E isto está-me a irritar, porque já pedi para o meu aniversário uma mini-mala nova que pudesse levar na mão, mas vai ter de ser uma muito mais pequena, afinal. Vou mas é meter-lhe um chip com GPS, que até estou com medo de a perder dentro do bolso.

(não, não é na TAP que isto se passa e não vale a pena esperar que eu vá largar aqui piadinhas sobre a TAP, que não é coisa que me assista, eu espero é fervorosamente que a TAP se recomponha depressa de todas as vicissitudes passadas)

Oferta generosa

Pediram-me para contar esta história outra vez. Contei-a ontem, conto-a hoje.

Estou com uma das minhas filhas na fila da caixa de um supermercado e seguro nos braços os três ou quatro produtos que me tinham escapado à última lista de compras. Comigo também está a pressa de ir apanhar a mais nova à outra escola, paragem seguinte do final desta tarde. À minha frente um pequeno grupo de mulheres de etnia cigana, todas muito bem desenvolvidas se olharmos ao espaço que os seus corpos ocupam. Em cima do tapete rolante, que não rola ainda, descansam outras três ou quatro coisas que presumi pertencerem-lhes.

Guardo habitualmente espaço entre mim e as pessoas da fila onde estou. Mas não terá sido por isso que sou de repente praticamente atropelada por um carro cheio de compras, empurrado por um homem que pela tez percebi pertencer ao grupo à minha frente. Passa por nós, ignorando-nos, e posiciona-se junto das ciganas, fazendo menção de iniciar a colocação das suas compras no tapete, que continua estático.

- Olhe, o senhor! A fila é aqui atrás, se faz favor.

E foi quando vi todos prontamente alinhados à minha frente, parede humana que parecia conhecer-me desde sempre, tão solto era o tratamento, por tu e por filha, lançando-me perguntas mais ou menos aos gritos sobre as minhas preferências relativamente às diversas formas de me chegarem a roupa ao pêlo, que me disponibilizavam logo ali, seu eu quisesse, ou então lá fora, filha, se gostares mais lá fora, ofertas de cuja generosidade, a avaliar pelos corpanzis em causa e a energia colocada na cena, não me pus a duvidar.

- Não se incomodem, não há necessidade. Vocês são muitos, eu sou só uma. Façam favor.

Mudei para a caixa mais afastada e mantive a roupa descolada do pêlo.

Na verdade nós éramos duas, só que a outra tinha apenas dez anos. E pediu-me, a tremer, para nunca mais irmos àquele supermercado.

02/09/2014

Insónia

A insónia meteu-me os buracos negros na cabeça, o problema foi esse. Não podem ver nada que comem tudo, os buracos negros.

(perguntaste-me de que tenho medo, não foi?)

Puxei o verão para mim, dei-lhe carícias a sossegá-lo, a sossegar-me, mas vejo os buracos negros outra vez, engolem tudo, limpam o espaço, derramam o vazio.

(não quis fugir à resposta, espera)

Concentrei-me só num, isolei-o, observei-o de frente, primeiro sem me aproximar. Um buraco negro pode comer-me a mim também, se lhe apetecer. Comer-me a mim também é uma maneira de falar e nem é muito bonita, por acaso, esta maneira de falar. Mas hoje não há palavras bonitas.

(quando alguém diz que não quer fugir à resposta está a dizer que quer fugir à resposta)

A insónia estava instalada e portanto tive tempo.

(é o que preciso de ganhar para te responder, tempo, que fugindo ganho, e engano-me, e engano-te)

Tempo que me deixou ver que este buraco negro, afinal, não cresce. Devagar, então, aproximei-me.

(enganas-te: eu não tenho medo)

E de perto, de mais perto, a insónia a vigiar, comi-o eu, ao buraco negro. Está dentro de mim. Estás dentro de mim.

(engano-me: tenho medo de ti, medo de te amar assim)

Estás a comer-me o coração.